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A EMANCIPAÇÃO DOS OBJETOS

No documento andrealomeuportela (páginas 57-61)

3 EMARANHADOS CONCEITUAIS

3.3 A EMANCIPAÇÃO DOS OBJETOS

O vestir é tão complicado quanto a nossa vida social (HARVEY, 2003)

Com os conceitos apresentados talvez possamos pensar em dois caminhos possíveis a partir da emancipação da ideia de objeto (estático) para apresentá-los como coisa (espaço vívido). Um caminho seria observar como as coisas são objetificadas. Por outra via, é olhar para o objeto, como foi estabilizado pelo museu, para trazer toda sua potência enquanto coisa. Por fim, não mais olhar, mas nos sentirmos envolvidos pelo mesmo fluxo vital.

Tim Ingold, crítico das ciências modernas, revela um tecido existencial que constitui os seres humanos e não humanos. Para Ingold (2012, p.26), os materiais - de todos os tipos - são ativados por “forças cósmicas”, misturadas e fundidas entre si na geração de coisas, este processo de formação ganha mais importância do que a noção de produto final.

A pergunta chave para o entendimento de Ingold talvez seja: O que as pessoas fazem com os objetos? Antes, distingue coisas e objetos, num mundo composto de coisas reduzidas a objetos. Para tal, retira a ênfase dada à noção de agência como o faz autores como Bruno Latour e Alfred Gell. Ingold se baseia em Deleuze e Guattari enfatizando os fluxos de materiais.

Deleuze e Guattari (2000) não concebem a diferença entre natureza e cultura, para eles tudo é processo, produção, fluxo de máquinas desejantes. A coisa por si mesma não existe, ela se dissolve porque todo objeto supõe a continuidade de um fluxo e todo fluxo é o esfacelamento do objeto. Deste modo, não existe homem, natureza, formas, tudo são máquinas (produtoras) de elos e forças transversais sempre atravessados por devires, um vir a ser constante que é movido por desejos produtores de linhas de fuga.

Como para Ingold (2012, p.27), as formas das coisas são geradas por linhas continuas e entrelaçadas em caminhos criativos que formam uma malha de crescimento e movimento. As coisas não são objetos, mas um agregado de fios vitais.

Tim Ingold (2000, p.290) considera que os seres vivos são atravessados por materiais e a experiência da vida não se dá no interior de um corpo em relação aos outros corpos como objetos, assim como os outros objetos. A vida se dá no fluxo dos materiais, diluindo os limites de corpos, mentes e superfícies. As coisas vivas transbordam, não são encerradas em objetos. É desta forma que Ingold abandona o conceito de agência pelo qual as coisas agem em contrapartida à ação das pessoas.

Esta distinção entre objeto e coisa tem seu princípio no ensaio A coisa, de Heidegger (1971, p.167 apud INGOLD, 2012),

o objeto coloca-se diante de nós como um fato consumado, oferecendo para a nossa inspeção suas superfícies externas e congeladas [...].

A coisa é o acontecer, ou melhor, um lugar onde aconteceres se entrelaçam.

Usar o termo “coisa” 14 pode ser frutífero, contrariamente aos termos “objetos”,

“artefatos” e “materialidade”, pois o termo “coisa” traria “consigo uma mínima bagagem teórica (...) (BASQUES, 2010, p.159). Basques (2010) sintetiza os estudos feitos em

Thinking Throungh Things (HENARE et al, 2007), dizendo que coisas são conceitos tanto

quanto entidades físicas e é preciso considerar ‘coisa’ dentro da possibilidade de descobrir novos métodos para, assim como os fenomenológicos, dizer sobre as coisas por elas mesmas. Além do método, seria preciso considerar nossas experiências das coisas tendo prioridade sobre atitudes teóricas, no entanto, “nossa experiência das coisas pode ser conceitual”, ou seja, invisíveis,

14 O enfrentamento da oposição entre conceito e coisa tem uma longa jornada na antropologia, Martin Holbraad

em Thinking Throungh Things (HENARE et al, 2007), diz que após Claude Lévi-Strauss, na introdução à obra de Marcel Mauss, somente Eduardo Viveiros de Castro e Márcio Goldman forneceram leituras do mana

a dissolução da distinção entre conceitos e coisas (aparência e realidade) nos leva, ao mesmo tempo, a conceber outro modo de revelação. A questão que assim surge incide sobre como as coisas encontradas no curso do trabalho etnográfico tornam-se aparentes (BASQUES, 2010, p.160).

É na ação, no conjunto das misturas que as coisas se revelam, nos processos da prática em atenção às coisas da vida que produzem um processo dinâmico e relacional. Os objetos não existem no mundo habitado. Habitar é sempre processo de formação e para constituir-se precisa formar um Ambiente Sem Objeto (ASO) (INGOLD, 2012, p.32).

É em The perception of enviroment (2000) que Tim Ingold apresenta um entendimento do que seja o ambiente para os seres que o habitam, e onde se processa uma sinergia entre natureza e cultura. A cultura não se processa no acúmulo de representações, mas no desenvolvimento de modos singulares que se constituem nas práticas em que os sujeitos se engajam.

Como para Thomas Csordas (2003), para quem o corpo não é um fator bruto da natureza, essa problemática parte do “novo corpo”, ou do corpo da aparência como performance de si. Este corpo está situado no capitalismo tardio, na cultura do consumo inflada por imagens que seduzem e instigam as necessidades e os desejos, o que vai corresponder às mudanças dos arranjos materiais do espaço social. Rompem-se as dualidades (corpo-mente, espírito-corpo...) sem negar a autenticidade existente entre os pólos de experiência.

Partindo da premissa fenomenológica, Csordas (2008) toma o corpo como sujeito e não objeto. É no processo de auto-objetificação - ou do corpo como um objeto entre outros objetos – que o corpo (self) é culturalmente constituído, e é a fala o que nos tira da natureza e nos engaja no mundo como pessoa (CSORDAS, 2008, p.130). Objetificação não quer dizer um corpo que é objeto, mas sujeito da percepção.

Assim, Csordas também se apropria da teoria da prática (habitus)15 de Pierre Bourdieu, para alcançar a ideia de corporeidade engajada às práticas. No entanto, Csordas diverge de Bourdieu e Merleau-Ponty do ponto de vista da dualidade para apresentar a alternativa fenomenológica e a isso chama “paradigma da corporeidade”.

O paradigma da corporeidade é a experiência da percepção como forma de alcançar os objetos. O corpo é sempre engajado no mundo e são as circunstancias que farão as coisas

15 Habitus é um sistema aberto de disposições duráveis que o sujeito incorpora inconscientemente e orienta suas

práticas. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1994, p. 46-81.

serem percebidas de um modo ou de outro, fenômeno a que chama de reflexibilidade. A experiência corporal é o ponto de partida para a análise cultural realizada num corpo que parece bastante sugestionável, como na ritualidade. Os objetos são o que constitui o ambiente e sua complexidade.

O ambiente existe antes do sujeito e é preciso adaptar-se a ele, portanto, a corporeidade (embodiment) não é um processo, mas uma situação que se estende para além do corpo físico podendo envolver roupas, tatuagens, performatividade e/ou ornamentos vários que constituirão o indivíduo que, assim, é mutante e relacional.

Pensando em ambiente, chegamos ao ambiente do museu que é altamente organizado, como uma galeria, estabelecendo critérios para realizar uma seleção no mundo dos objetos. A partir destes princípios, conheceremos o museu e sua formação como o universo atual dos objetos pesquisados. Num museu, o objeto se encontra embalsamado e organizado numa espécie de taxonomia: “os objetos vivem em conjunto e se organizam numa população” (MOLES, 1981, p. 46).

Para Andrew Moutu (2007), a prática de colecionar é por si um ato classificatório e um modo de ser, a prática de colecionar como instância do ser é uma perspectiva epistemológica da vida social. Por definição, Baudrillar (apud MOUTU, 2007, p.94) estabelece que coleção seria um “discurso dirigido a si mesmo” pela fetichização mediada pelos objetos. Os colecionadores, em seu sistema classificatório estabelece um olhar subjetivo, o sujeito individual - ele mesmo - que postula as relações entre as pessoas e os objetos recolhidos.

No entanto, Moutu (2007) oferece uma teorização alternativa sobre as formas de colecionar, como as que são encontradas em museus, são conceituações poligonais, e são organizadas de forma a criar possibilidades de reconceber significados e reconfigurar as relações sociais, é por isso que colecionar seria uma maneira de ser, assim mostra uma variedade de cenários etnográficos em torno ao colecionismo através de algumas experiências de museus.

E é a partir daqui que apresentamos o cenário do Museu Mariano Procópio, considerando a perspectiva relacional dos autores trabalhados, na qual as pessoas se revelam nos contextos da prática social e os objetos constituem o universo cultural. Na profusão da relação corpo/objeto, a indumentária ou o conjunto de objetos pessoais (como denominadas em museus) poderia então mostrar parte de como a ação humana é exercida, não dentro ou fora, mas integrada ao mundo das coisas.

No documento andrealomeuportela (páginas 57-61)