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ESTUDAR AS COISAS: ENTRE DIÁLOGOS

No documento andrealomeuportela (páginas 53-57)

3 EMARANHADOS CONCEITUAIS

3.2 ESTUDAR AS COISAS: ENTRE DIÁLOGOS

O objeto museal não é só representação, também pode ser visto como mediador, assim como propõe Abraham A. Moles (1981, p. 08), em A teoria dos objetos, que vê o objeto como “mediador universal, revelador da sociedade, construtor do ambiente cotidiano, sistema de comunicação social, carregado de valores”, longe de se reduzirem às necessidades

11 Entre os Mamaindê, por exemplo, as coisas são partes constituintes do espírito, portanto, também são

constituintes da pessoa. Assim como as coisas também podem ser sujeitos. Os adornos – internos e externos – como os Mamaindê dizem possuir, fornecem ao corpo decorado múltiplas perspectivas, não só nos rituais xamânicos como no cotidiano. Perder um determinado adorno pode corresponder a um estado de doença ou até mesmo a morte. Ou ainda, afirmam que determinados ornamentos estão associados ao corpo como fios de memória, consciência e intencionalidade. Para os Mamaindê há duas categorias de coisas, as que são feitas pelos humanos e as que são provenientes da natureza (como plantas e animais). As coisas serão sujeito em diferentes contextos, como nos rituais em que o xamã cobre o corpo com diferentes adornos. Adornos estes que podem falar ao xamã (MILLER, Joana. Things as Persons: Body ornaments and alterity among the Mamaindê

(Nambikwara. In: Fernando Santos Granero (org.). The occult life of things. Tucson, Arizona Univetsity Press, 2009, p.62-67).

práticas, os objetos têm muito a nos oferecer, ajudando a ver tanto o coletivo quanto o Outro – o individual.

O que não se pode negar é que “um objeto não se reduz à função de utilidade” (MOLES, 1981, p.18), pergunta-se, então, por que ou para que servem? Estas indagações despontam, sobretudo, a partir de objetos considerados únicos, pertencentes a antiquários ou a coleções, que para Moles (1981) são verdadeiros testemunhos da existência industrial e tecnológica de outros seres humanos – operários, construtores, fornecedores, planejadores... Precisamos indagar sobre o que seja o objeto como produto humano, para tanto o autor dirá que o objeto é um produto de caráter passivo e fabricado, diferentemente de uma pedra, que seria coisa.

Uma roupa é um registro histórico da sociedade que a produziu e, talvez por ser um objeto de uso corriqueiro, não tenha despertado o mesmo interesse que outros objetos como os que possuem status de arte, considerando a situação das roupas em um museu histórico. Embora haja uma inversão de valores quando as roupas se encontram expostas em um museu, recebendo o status de patrimônio, ainda assim, se mantém uma forte hierarquia entre os objetos.

Moles (1981) diz que o objeto é construtor do ambiente, situado na esfera fenomenológica como mediador das relações sociais, reforça a ideia própria da semiologia de mediação dos objetos. Mas o objeto não é só mediador, “os objetos são parte constitutiva da sociedade” (BONNOT, 2002, p. 6). Eles não são distantes, ao contrário, falam muito de nós.

Com esta aproximação dos objetos, partimos para o conceito de agência como é formulado por Alfred Gell que nos conduz a ideia de coisas como agentes culturais e ajuda a verificar a aplicabilidade do conceito de agência em nosso estudo.

Dentre os diferentes modos de pensar sobre coisas, Alfred Gell (1998) propõe uma teoria da arte mais adequada ao contexto antropológico. A ideia é delinear parâmetros para uma antropologia da arte em que as pessoas (como agentes sociais) possam ser substituídas por objetos de arte dependendo do contexto. Os objetos materiais podem induzir a ação, por isso, cada tipo de objeto pode fomentar um tipo de conduta. Podem ser, portanto, agentes, pacientes ou intercalar as funções conforme o contexto, sempre relacional. Interessante para pensar a interação da roupa e sua capacidade de induzir atitudes e criar novas formas de ser e atuar cotidianamente12.

12 Neste ponto, observamos um diálogo com minha pesquisa anterior, na qual investigamos, através de relatos

de pessoas comuns, performers e outros artistas, o vínculo corpo-objeto, nas sensações e percepções que constroem os processos que desencadeiam constantes modificações em nós no ato cotidiano de vestir, como

Gell recusa a visão semiológica, em vez de símbolos e significados coloca a ênfase “na agência, na intenção, na causalidade, no resultado e na transformação” (1998, p. 06). Os objetos não são textos capazes de serem lidos ou interpretados, desta maneira, uma antropologia da arte deve se preocupar com o papel mediador dos objetos de arte.

A partir da premissa de que qualquer coisa ou pessoa pode vir a ser um objeto de arte a antropologia da arte seria o “estudo teórico das relações sociais na vizinhança de objetos mediadores da agência social” (GELL, 1998). Os objetos, tanto quanto pessoas, são agentes sociais.

Considerar objetos de arte como pessoas produz um tipo de estranhamento típico do universo antropológico desde seus primórdios. O fato de pessoas e coisas terem esta apropriação é visto no animismo de Taylor (1875), em Frazer, em Malinowski e Mauss em temas clássicos como relação de intercâmbio e magia, como bem lembrou o próprio Alfred Gell (1998, p.09).

A emancipação dos objetos de seu status de arte é fundamental para a antropologia que deve explorar os objetos que se fundem às pessoas, estabelecendo relações sociais no sentido coisas e pessoas, e, pessoas e pessoas mediadas por coisas.

O princípio da concepção de Gell é de que coisas ou animais exercem agência social na medida em que se relacionam com pessoas, e são agentes em situações específicas, emanando ou sendo investidos de ação.

A ação humana é exercida dentro do mundo material. São os tipos de causa material e efeito com os quais não estamos familiarizados e que sem um lugar, uma ação intencional, um contexto social e objetivos sociais em vista, seriam impossíveis (GELL, 1998, p.20).

Conclusivamente, vemos Alfred Gell preocupado com a antropologia da arte formulando uma teoria na qual o objeto de arte adquire um caráter totalmente relacional. Não sendo possível concluir de antemão se objeto é arte ou não sem o contexto relacional no qual se insere e para isso aproxima pessoas de objetos, acreditando que os objetos podem ser tratados como pessoas, pois podem exercer agência.

A perspectiva de Gell será importante em nossas reflexões pela proximidade que os objetos museais exercem como objetos expostos e tratados junto a objetos de arte ou como objetos de arte.

espaço de articicidade. Pelo manancial criativo que é despertado ao nos deixar afetar pelos objetos, consideramos a roupa como um dispositivo de ação, sendo corpo e roupa conectados, “[...] o vestir converte o corpo ao que a roupa pode dizer sobre ele, transforma objetos em aparatos orgânicos”. In: PORTELA, Andrea L.. Artes de

vestir: Performatividade e cotidiano. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de

Embora a discussão seja frutífera, talvez seja exagero tomarmos nossas roupas museais como objetos de arte, preferimos tratá-las como artefato decorativo, considerando que há certa subjugação destes objetos, mesmo não declarada, mas que pode se mostrar presente nas entonações de voz, nos modos de exposição, de preservação, na escolha de qual peça será restaurada ou não, entre outras formas subjetivas.

André Mouru (2007) critica a teoria da agência dos objetos de arte em Alfred Gell (1998) por haver uma tendência muito presa às leituras fenomenológicas e às ciências cognitivas, além de ser generalista.

Ainda sobre agencia, visitamos a Teoria Ator Rede (ANT)13 de Latour (2012), que aborda vários conceitos e noções para pensar as conexões do social em uma vida mediada pela materialidade. E é, portanto, essa diversidade do mundo social que deve ser considerada ampliando seus atores.

A incursão dos elementos não humanos na análise social é fundamental para Latour (2012) porque a materialidade não é estática e sim dinâmica. O que explica a separação entre a materialidade e a análise social seria uma divisão artificial imposta por sociólogos, a partir de disputas disciplinares e não por constatações empíricas.

A ANT deve considerar as assimetrias e não deve repelir a divisão entre humanos e materialidade, ou procurar relacioná-los, é preciso “redistribuir o conjunto todo de alto a baixo” no fluxo social (LATOUR, 2012, p.114). No entanto,

o fluxo social não oferece ao analista uma existência contínua e substancial, mas assume uma aparência provisória tal qual uma emissão de partículas subatômicas no breve instante em que goza da existência (LATOUR, 2012, p.115).

As oscilações dificultam encontrar as conexões, sobretudo entre humanos, isso aponta a necessidade de encontrarmos mais ferramentas para explorar as novas associações que constituem o social.

O conceito de agência dos atores não dicotomiza humanos e não humanos, tanto um quanto outro pode agir; e o fazem através de conexões entre elementos heterogêneos presentes numa rede de relações, mesmo que os elementos materiais estejam parcialmente invisíveis e/ou desconsiderados.

A noção de “rede” de Latour tem relação com o rizoma de Deleuze e Guattari (2014). O conceito de rizoma vem da botânica, é um tipo de raiz que se contrapõe a outro tipo de raiz ratificada. Uma estrutura que funciona como uma rede móvel de fluxos sem

começo ou fim. De onde se pode entrar ou sair de qualquer lado. Portanto, esta rede pode ser conectada de qualquer ponto.

A estrutura rizomática possui algumas características como conexão e heterogeneidade (qualquer ponto do rizoma pode se conectar com qualquer outro), multiplicidade (um sistema aberto e voltado para o exterior), ruptura assignificante (pode ser rompido de qualquer lugar, mas retoma qualquer uma de suas linhas), cartografia e decalcomania (não se sujeita a qualquer modelo estrutural). São a partir desses princípios que se operam as transformações, que se inventam novas práticas e novas formas de ser e estar no mundo (DELEUZE; GUATTARI, 2011).

A construção rizomática pode ser pensada frente às biografias das roupas, porque ao longo delas estabelece-se um fluxo contínuo de acontecimentos, sejam físico-químicos ou da ordem das interações humanas, e, ainda assim, com instantes de vida diferentes e sempre provisórios. Dado a isso, precisaremos de abordagens que nos direcionem a certa libertação dos objetos em face aos seus contornos fixos.

No documento andrealomeuportela (páginas 53-57)