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SOBRE O COLECIONAMENTO

No documento andrealomeuportela (páginas 69-74)

4 O MUSEU E A COLEÇÃO

4.3 SOBRE O COLECIONAMENTO

Na tradição dos estudos de museologia as coleções de objetos são mais que aglomerados de coisas, formam um conjunto de informações e de confirmações fazendo do colecionismo um importante objeto da investigação histórica e social.

A princípio, o museu é um lugar de exposição de objetos e coleções, no entanto, esta reunião de objetos que “merecem estar” no museu serviria para pensar a partir de uma hierarquia, e por essa via, também nos faz pensar no que “não merece estar” no museu. Para Canclini (2008, p. 162), noções como de coleção são fundamentais para desfazer vínculos entre “cultura e poder”, pois o patrimônio é base de políticas culturais autoritárias.

Colecionar é mais que “acumular objetos para expô-los ao olhar” (POMIAN, 1984, p.52). O fato de estarem ali rodeados de cuidados talvez seja a primeira pista para tentarmos compreender o lugar de uma coleção.

O colecionamento de objetos se insere num quadro de tensão própria entre museus e teoria antropológica, como lembra Stocking Jr.(1985, p.03), incluindo uma categorização da existência humana entorno da pesquisa baseada em indivíduos e instituições com foco em materiais documentais, e suscitando várias temáticas afins, dentre elas, a representação da cultura em objetos materiais, as relações de poder, entre outras dimensões que podem ser problematizadas.

A complexidade do objeto no museu se dá pela tridimensionalidade que acaba por envolver o espectador. Para Stoking Jr. (1985) é isso que distinguirá o documento inserido no museu dos arquivos bidimensionais em forma de textos, ambos lineares.

No entanto, há outras problemáticas em relação aos museus, uma das mais destacáveis pode ser o atravessamento do tempo. Afinal, estando fora de seu contexto original de espaço e tempo o objeto se tornará um objeto recontextualizado historicamente. A tensão entre preservar e recriar (espaço e tempo) através da recontextualização passa a ser uma problemática desafiadora.

Quaisquer que sejam as contingências de suas histórias específicas, os objetos tridimensionais jogados no meio de observadores de fora do museu a partir do passado não são colocados lá por acidente histórico. Sua colocação em museus, seu caráter problemático e, na verdade, sua "alteridade", são os resultados de processos históricos de grande escala (STOCKING Jr., 1985, p. 04, tradução nossa).

Outra problemática em relação ao objeto museal é que ele foi selecionado para estar exposto no museu por questões de poder implícitas na própria razão de constituição do museu

e fomenta uma infinidade de recontextualizações, sobretudo, levando em conta o espectador. Esta perspectiva se aproxima da visão de Clifford (1994) que pensa o museu como sistema ideológico e institucional. Ou seja, é preciso pensar nos critérios políticos e morais que justificam o que se preserva, se valoriza e/ou se deve trocar no universo material, enquanto descarta o resto para o esquecimento.

Afinal, conforme Stocking Jr. (1985), a questão do poder não é apenas inerente ao objeto, mas é projetada pelo museu como instituição dentro de um ambiente específico com suas delimitações socioculturais e históricas.

Na dimensão do poder, a questão da propriedade que sugere a dimensão da riqueza - ou da riqueza como um aspecto do poder -, os objetos da cultura material permanecem emaranhados em processos econômicos próprios do contexto ocidental de aquisição e troca de riqueza.

Em relação ao desenvolvimento de coleções de museus nota-se certa dependência do compromisso do individual, corporativo ou na riqueza internacional, envolvendo a valorização estética. Objetos museais participam da escala de cultura como sendo do mais alto valor e influenciadores dos processos mercadológicos. No museu o valor é de objeto de arte e não de artefato (STOCKING Jr, 1985).

Para James Clifford (1994, p. 82), têm-se classificado os objetos em duas categorias primordiais, como sendo artefatos culturais ou como obras de arte. E é no início do século XX que os objetos exóticos, primitivos ou arcaicos começaram a ser dotados do mesmo valor estético e moral das obras de arte ocidentais.

A partir deste dado podemos pensar na dimensão estética do objeto museal, o que envolveria a apropriação de objetos primitivos colocados no museu em um sentido de universalização dos valores, dos gostos e dos padrões estéticos sendo ali globalizados.

De acordo com Gonçalves (2007, p.45), antes dos anos oitenta, as coleções de museus eram tratadas como fontes de dados para a pesquisa etnográfica, especialmente a relacionada à cultura material. Até então, sem questionar o papel institucional dos museus como constructo de formas de representação do outro. É na bibliografia mais recente que o autor percebe a preocupação com a função mediadora do museu, como categoria de pensamento, o que amplia a dimensão dos estudos acerca das coleções museais, não somente como categoria nativa do Ocidente moderno, mas como categoria universal que serve de análise comparativa.

Gonçalves (2007) destaca a visão do historiador polonês Krzysztof Pomian e sua ‘teoria geral das coleções’, onde se realiza o papel mediador de dois termos universais

opostos: o invisível e o visível. Os objetos de coleção são mediadores entre o mundo dos mitos, das narrativas, das histórias e o universo daquilo que está exposto ao olhar.

Para Pomian (1984), os objetos são concebidos de forma autossuficiente, contrária aos processos históricos, econômicos, políticos e de produção que os realizam, que os tornam possíveis.

A perspectiva do colecionismo como prática cultural se inicia no pensamento antropológico do século XX com James Clifford, como prática constitutiva do “processo de formação de subjetividades individuais e coletivas” (GONÇALVES, 2007, p. 48).

No Ocidente, o colecionismo funciona como “estratégia para a distribuição de um eu, uma cultura e uma autenticidade possessivos” (CLIFFORD, 1994, p.71). Desde a infância, a montagem de coleções parece revelar um caráter obsessivo, um exercício de apropriação do mundo que é realizado de forma contundente no sentido de transformar o desejo em regras, selecionando, ordenando e classificando hierarquicamente. O colecionador se liga a aspectos de obsessão e recordação. A propensão para colecionar e preservar são atos nada naturais ou inocentes, têm a ver com a “política da nação, a lei restritiva e aos códigos contestados do passado ou do futuro” (CLIFFORD, 1994, p.71).

Para Clifford (1994), apesar da ideia de universalismo que cerca as coleções, com suas hierarquias de valor, exclusões e de territorialidades de um ‘eu’, a noção equilibra este universalismo com uma riqueza identitária que não é nada universal, mas altamente individualista.

Stocking Jr (1985) argumenta que a questão da propriedade do bem cultural legitimado decorre de uma tensão sobre a condição de aquisição dos objetos num contexto colonial e sobre quem controlaria, não só a posse de determinados objetos, mas também quem deteria o controle da representação do significado dos objetos, pois embora seja considerado como uma "invenção" da cultura ocidental moderna,

o museu já não é exclusivamente uma preservação euro-americana. Outros não europeus, tanto em novas nações pós-coloniais e dentro da esfera euro-americano, estabeleceram seus próprios museus (STOCKING Jr, 1985, p. 11).

O colecionamento foi um modo de transformar ‘objetos tribais’ em ‘curiosidades’, como eram concebidos no século XIX; e em ‘objetos etnográficos’ ou ‘arte primitiva’, no século XX. O interesse é sempre voltado para aspectos universalizantes como totalidade, coerência, equilíbrio e autenticidade. Coleciona-se o que é tradicional e autêntico, termos que

fornecem a ideia de tempo e de essência para distinguir as culturas de acordo com a moderna concepção etnográfica de Cultura (GONÇALVES, 2007, p. 48).

Entre os séculos XIX e XX, surgem grandes coleções no Brasil. Entre elas, as coleções de Alfredo Ferreira Lage que as doa, ainda em vida, para o poder público e dão origem ao Museu Mariano Procópio (MMP). O destino das coleções - quando, quem e para onde doar - cabia sempre ao dono da coleção. Segundo Ferrari (2013, p.35), “poucos colecionadores optaram por manter suas coleções de maneira íntegra e concentradas num só lugar”, o que faz deste museu um espaço incomum, uma verdadeira coleção de coleções.

A doação inclui o prédio da Villa juntamente com os jardins da chácara dos Ferreira Lage, que fora construída com o objetivo de hospedar a Família Imperial e sua comitiva para a inauguração da estrada de rodagem União & Indústria, e embora não tenha ficado pronta a tempo, chegou a hospedá-los em outras viagens ao local.

Alfredo Ferreira Lage adquiriu suas peças em leilões europeus, viajando por países como Itália, Espanha, Inglaterra, Países Baixos, Portugal e França. Também adquiriu peças em casas especializadas de renome internacional. Outra fonte de objetos foi por relações de amizade e mesmo de desconhecidos que provavelmente se encantavam com seu esforço e o enviavam peças (PINTO, 2010).

Em 23 de junho de 1921 foi inaugurado o Museu da Villa em homenagem ao centenário de nascimento de seu pai Mariano Procópio.

Somente em 13 de maio de 1922 foi inaugurado com um prédio anexo para abrigar a galeria de Belas Artes, se chamando Museu Mariano Procópio. A doação foi concluída em 1936 e o tombamento pela União realizado em 1939.

Alfredo Ferreira Lage, além do pioneirismo de sua doação, ainda trabalhou no museu, sem vencimentos, mas no intuito de cuidar da sua obra.

[...] cultor do passado nacional, tinha o hábito de brindar aos visitantes de seu museu acompanhando-os no percurso descrevendo e apresentando as peças de sua coleção, de modo a encantar o interlocutor com detalhes da história brasileira que não estavam registrados nos livros. Fascinava os que percorriam os espaços do museu ouvindo suas histórias sobre as peças e como as tinha conseguido (PINTO, 2010, p. 28).

Esta doação tem, em sua origem, não só o aspecto da preservação do patrimônio cultural e material, mas dá lugar à representação do Império e da nobreza no processo de formação da nacionalidade, oferecendo um olhar positivo à memória de tudo o que remetia ao imperador. Esta doação simboliza os laços de amizade entre a família de Alfredo Ferreira

Lage e a família imperial, assim como, diz muito sobre as formas de legitimar culturalmente certas esferas de poder.

O prédio da Villa ou Quinta do senhor Lage como era conhecido (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006), foi registrado por um dos mais prestigiados fotógrafos da época, o alemão Revert H. Klumb21 (183? – 1886), na Figura 7.

Figura 7 - Vista da Quinta do Senhor Ferreira Lage fotografada por Revert H. Klumb, c. de 1861

Fonte: ACERVO MUSEU MARIANO PROCÓPIO.

O fato de a doação ter sido feita na íntegra demonstra preocupação com o resguardo e com o esforço em conservá-la. Para Rogerio Pinto (2008), isto se dá não só pela consciência do patrimônio, como também por ter se tornado dispendioso a manutenção da coleção. Outro fator é o intuito de manter o nome do pai e da família e seu vínculo ao “período mítico da história da pátria, afinal, a materialidade das peças leva a se idealizar um mundo que é para quem os observa invisível em sua completa amplitude” (PINTO, 2008, p.128).

Podemos dizer que o colecionismo de Lage nasce como projeto de mundo moderno latino-americano, em que a preservação fixaria valores “inquestionáveis” a certos bens culturais, principalmente sobre os que procedem da visão mítica de “ser nacional”, que permanece somente nos objetos que a rememoram, Canclini (2008, p. 161) diz que, essa

21 Fotógrafo que documentou a inauguração da primeira estrada de rodagem brasileira - a União & Indústria -

ligando Juiz de Fora e Petrópolis ao Rio de Janeiro e, por este feito, recebeu o título de Fotógrafo da Casa Imperial. Disponível em: < http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa21647/revert-henrique-klumb>. Acesso:

“conservação inalterada testemunharia a essência de um passado glorioso sobrevivente às mudanças”.

Esta reflexão aponta que é preciso levar em conta a relação entre modernidade e passado, sobretudo a ritualização cultural que escamoteiam o olhar sobre o patrimônio como força política. Canclini (2008) ainda atenta que, na América, com o alto índice de analfabetismo, se investiu numa cultura predominantemente visual.

Partimos, então, para conhecermos os modos de arranjo e classificação dos objetos, como parte desta visualidade e ritualização.

No documento andrealomeuportela (páginas 69-74)