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OBJETIFICAÇÕES: CORPO, VESTIDO, MULHER

No documento andrealomeuportela (páginas 135-140)

5 ENTRE TRAMAS

6.2 OBJETIFICAÇÕES: CORPO, VESTIDO, MULHER

Que poeta ousaria, na pintura do prazer causado pela aparição de uma beleza, separar a mulher de sua roupa? Charles Baudelaire

Desde o século XIX, roupas e adornos passaram a ser fortemente associados ao universo feminino, embora historicamente a moda tenha a exuberância dos homens à frente de suas dinâmicas definidoras, moda e mulher parecem construir uma relação de obviedades pouco esclarecidas, quase sempre reveladas pela perspectiva masculina.

Apesar de a Revolução Francesa ter elevado a mulher a condição de cidadã, a estrutura social se manteve patriarcal, e deixando a mulher submetida aos anseios eróticos

masculinos, evidenciado pelas curvas desenhadas pela Alta Costura, que definirá as silhuetas modelares femininas do século XIX. A mulher é como uma imagem a ser contemplada ao desfilar nos novos espaços de sociabilidade burguesa da época.

Ampliados os desejos de prestígio, de distinção e liderança, Gilda de Mello e Souza (2005, p.25) acredita que é a moda que fornecerá recursos para tornar estes desejos visíveis, e quanto à repressão sexual sob o puritanismo que predominava, é a moda que “descobrirá meios de, sem ofender a moral reinante, satisfazer um impulso reprimido”.

Segundo Gilda de Mello e Souza (2005, p. 59) as roupas no século XIX irão ampliar o antagonismo entre os sexos através das formas. Acrescentando o princípio de sedução como diretor da roupa feminina. A mulher era objetificada e se vestia para agradar ao homem, afinal, seu melhor destino era um bom casamento e, por outro lado, o homem ostentava sua capacidade de conquista de bens materiais através da aparência da esposa. Paradoxalmente, apesar do recato exigido em seu comportamento, o desenho do corpo feminino ressalta os atributos sexuais.

As virtudes domésticas e a ociosidade eram declaradas no trajar feminino, ressaltando a situação social do marido. É neste universo que se consolidará o antagonismo entre os sexos. A voz da mulher é modulada, o jeito da cabeça, os movimentos, e com tamanha intensidade nas diferenças, é difícil delimitar o que é obra da natureza e o que foi acrescentado pela passagem dos séculos, criando barreiras tais entre os sexos que os obriga a viverem em mundos opostos (SOUZA, 2005).

Os princípios que determinarão as roupas de cada sexo se diferenciarão ainda mais. O traje masculino se caracterizará pelo signo da austeridade adotando o costume que evidencia a praticidade. O traje feminino, no entanto, passeia por diversas silhuetas, aderindo à complicação de amarrações e camadas de panos, entre outros detalhes estruturais, que dificultam os movimentos e restringem os passos e os gestos.

A autoridade masculina veste calças, e o sinônimo de feminino se desenha em saias armadas de vestidos acinturados que determinam todas as suas técnicas corporais, de comportamento e uso material, o que pode ser visto desde a respiração ao tom das sedas. Afinal, as distinções de classe e sexo não são reveladas somente pelos botões, pelas joias e nem mesmo pela opulência dos tecidos, mas pelo modo de portar, pelo gestual e práticas que representam cada detalhe das diferenciações sociais. E é assim que a mulher vai sendo esculpida pela cultura e pela sociedade, tendo seu corpo esculpido pela roupa, mais precisamente pela moda.

O prestígio masculino em vestir calças diz muito sobre o mundo da mulher, no qual lamentavam “pobre do lar em que a mulher as veste!”. Na Figura 79, uma cena em que o homem, ‘talvez traído’, mostra sua autoridade erguendo uma calça (PERROT, 1991, p. 125, grifo do autor).

Figura 79 – Mulher de joelhos diante da autoridade masculina demonstrada por uma calça. Paris, Biblioteca das Artes Decorativas

Fonte: PERROT, 1991, p. 125.

Porém, o universo feminino do século XIX também é importante por representar um modo de vida em que se instala um modelo mais ou menos democrático de moda no qual a burguesia e o industrialismo darão origem a este novo estilo de vida.

Talvez os personagens femininos do museu - representados por suas roupas - nos ajudem a entender alguma nuance pouco explorada no contexto brasileiro. Fazer um recorte da vida social e elegante de uma dama do Segundo Reinado (1840-1889) é, no entanto, um percurso de dificuldades pela escassez de informações e pela conduta discreta das mulheres de então.

Além do recato exigido ainda mais às mulheres casadas, o que cabia à mulher da época era cuidar dos afazeres domésticos e se destacar em eventos sociais, principalmente pelo detalhamento do traje – reflexo da condição econômica do esposo (FEIJÃO, 2011). Outro paradoxo das aparências femininas consiste em levar brilhos e rendas nas roupas e demonstrar extremo recato comportamental, limitação das liberdades e conduta controlada.

Nas crônicas de bailes, festas e reuniões da época, era considerado de mau gosto destacar a conduta de uma dama, seja em qualquer tipo de referência, mesmo que “elogiosa e lisonjeira” (PINHO, 1942, p. 06).

Wanderley Pinho traz um recorte do Álbum Semanal de 18 de junho de 1852, que dizia:

Nós não levaremos a liberdade do escritor a ponto de declarar os nomes das muitas beldades que se tornaram mais salientes. Disfarçam-se as alusões em acrósticos, em palavras enigmáticas, em iniciais nem sempre decifráveis [...]. Os ‘bons-mots’, que as ‘memórias’ sempre salvam e conservam, entre nós quase se perderam, confiados à tradição oral que esquece e altera (PINHO, 1942, p. 06).

Sobre a obra Salões e damas do Segundo Reinado, de Wanderley Pinho (1942), ele teria sido censurado por críticos como Tobias Barreto, intelectual da Escola de Recife, por ser obra banal e femininamente fútil. O ponto de vista de Wanderley Pinho se dava exclusivamente pela classe dominante sem empatia pela classe dominada. No entanto, a crítica de Barreto se direcionava a outro aspecto, para ele, o destaque aos salões deveria se firmar sobre a intelectualidade que circulavam e não sobre as futilidades femininas. Mas, a inteligência feminina também brilhou nos salões do primeiro e segundo reinados, uma ou outra mulher, teria se despontado em razão de algum privilégio dada à aproximação de alguma figura masculina importante, como é o caso da Marquesa de Santos, sob a condição de mulher do imperador (FREYRE, 2004, p. 82).

Vale lembrar que a mulher ornamental, construída no patriarcado nacional não tinha voz entre as conversas dos homens, a não ser “pedindo vestido novo, cantando modinha, rezando pelos homens [...]” 33.

Freyre (2004) diz que as excomungadas da ortodoxia patriarcal no Brasil tinham, por processos mentais e psíquicos, um ponto de vista masculino e que foi lenta a aproximação entre o universo doméstico feminino e a instrução - um pouco de literatura e ciência, piano, canto e francês, expressões mais graciosamente artísticas - despontando uma ou outra figura com algum ar de escândalo, ou um tipo tão afrancesado que chegava a ser pedante, além de uma ou outra machona entre as sinhazinhas dengosas. Enquanto aos homens, sempre considerados ou reconhecidos como criadores, inventores, poetas ou intelectuais.

As aparências sempre se constroem em consonância com o tempo e a sociedade em questão e no século dezenove a aparência contrastante entre os sexos precisa estar bem

delimitada, pois tem um novo significado, a demonstração de consumo ostentatório em que a mulher era a vitrine de publicidade para promoção do status do homem.

John Harvey (2003, p. 19), diz que vestir sempre foi uma política sexual, e é a roupa que administra a equivalência entre os sexos no conjunto das transformações pelas quais as sociedades passam, transformando igualmente as roupas “num movimento contínuo de mímica e desidentificação”.

Para Harvey (2003), a cor é um dos elementos primordiais para estabelecer a diferença entre os sexos34, e são as roupas que carregarão estas evidências, principalmente as mais paradoxais como o preto e o branco35.

[...] Nos salões do século XIX, naquelas suntuosas festas de definições e simbolismos sociais onde homens e mulheres reuniam-se em grande grupo para confrontarem-se como identidade e sexos – os homens de preto, as mulheres quase todas de branco – com a intensão de dançarem em pares. Essa é uma antítese ainda perpetuada, em nosso longínquo mundo pós-vitoriano e policromático, em festas e fotos de casamento (HARLEY, 2003, p. 20).

O objetivo das normas indumentárias do período, segundo Daniel Roche (2007, p. 73) era “forçar os corpos a serem o que não eram e as almas [...] a confirmarem os valores sociais da doação, dos fantasmas hereditários, dos deveres sublimados por meio das aparências respeitadas e respeitáveis” e assim foi estabelecido o reino de comedimentos e moralismos.

Roche (2007, p.75) diz que esta leitura revela regras e práticas, de um lado; e de outro, permite “passar das representações às práticas e descobrir os ritmos da expansão e renovação dos novos códigos sociais”. É entre conduta e vestimenta, que se constrói uma nova relação com o corpo, das imposições da roupa que comprime o corpo (espartilhos) aos silêncios sobre a sexualidade.

A roupa seria um manto da representação da identidadede e o vestir consiste em tornar valores visíveis, valores identitários, sociais, políticos e éticos. Não só, mas grande parte da representação desses valores é exercida pelo manto (HARVEY, 2003). Por isso, retirar parte da carga de representação de uma roupa - que é só representação, por não ter mais o corpo que a habitou - nos deixa frente a alguns desafios singulares.

34 A policromia: Homens de preto e mulheres de branco também é observada por Perrot (1991, p.119).

35 Podemos nos lembrar dos usos das cores azul e rosa para identificação dos sexos das crianças, como exemplo

No documento andrealomeuportela (páginas 135-140)