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A empresa Sanrio: presença

No documento MARIA CECÍLIA PALMA MAGALHÃES (páginas 36-42)

Partimos da lógica da construção das marcas para compreendermos como elas podem organizar as práticas do consumo integradas ao modus vivendi contemporâneo. É necessário, porém, focarmos nossa análise em um recorte textual específico, depreendendo e exemplificando como este tipo de discurso organiza-se dinamicamente e como pode afetar a rítmica social ao corporeificar simulacros que comunicam o universo em que ela se propõe a vender. Para tanto, tomamos como

corpus um tipo de marca que, além de integrar a experiência desta pesquisadora, traz em seu bojo as

relações standart do consumo contemporâneo: a multinacional japonesa Sanrio. Referimo-nos aqui, especificamente, à sua depreensão nesta dissertação, em conformidade com alguns fatores que a posicionam entre uma das maiores representatividades mediáticas da atualidade:

• Primeiramente, a multinacional Sanrio abrange relações comerciais em caráter globalizado, tanto no polo oriental como ocidental do globo, ou seja, desenvolve suas articulações discursivas em vista de um segmento de público inicialmente considerado heterogêneo e diversificado.

• A marca Sanrio é usualmente conhecida pela criação, comercialização e publicização de personagens, a maioria animais de caráter humanizado, que estampam diversificadas linhas de produtos, tendo como carro-chefe da empresa a personagem felina Hello Kitty. • A estética das personagens e produtos Sanrio é sazonalmente atualizada conforme

os trends mercadológicos sem perder sua essência, porém motivando a dinâmica de aquisição de novos produtos.

• Por último, porém não menos importante, a Sanrio é margeada por consumidores considerados “fãs”, indivíduos que nutrem uma certa admiração e desejo pelas personagens e seus respectivos produtos, destacando novamente a gatinha Hello Kitty. Tais pontuações abarcam de forma geral a lógica narrativa das grandes marcas contemporâneas, porque busca promover seus produtos e serviços na dinamização das práticas consumistas, além do mínimo esperado na função do produto. Elas emergem simulacros que vão ao encontro da subjetividade e das necessidades de um determinado segmento consumidor. A Sanrio é, nesse ponto, responsável por um formidável trabalho criativo, tomando como eixo de seu discurso institucional um imaginário lúdico que desdobra-se em vasta gama de personagens e

produtos. Dessa forma, iniciamos nossa análise da marca Sanrio partindo das palavras do fundador e CEO9 da empresa, Shintaro Tsuji: “o fio que conduz a imensa variedade dos nossos negócios

parte da ideia de ofertar “do coração” e “pelo coração”. (…) Esta é a razão do nosso trabalho, que nos orgulha em muito”.10

Fig. 4. Shintaro Tsuji e a personagem Hello Kitty.

A Sanrio busca, em todas suas presentificações, na voz de Tsuji ou no cerne de suas personagens, instaurar um efeito “rosado” às práticas rotineiras da vida, firmadas aqui pelo consumo de produtos atualizados sazonalmente nas prateleiras. Esse imaginário patêmico promovido pela empresa nos interessa de modo a justificar a construção de um império que capitalizou no ano de 2011 um montante em torno de 121 milhões de doláres11. Seu patrimônio engloba hoje em dia mais

de 100 propriedades intelectuais, as personagens que estampam mais de 12.000 produtos com veiculação em diversificados segmentos manufatureiros e de prestação de serviço: da reconhecida linha de papelaria à produção de utilitários domésticos, da joalheria aos cosméticos, dos cuidados da maternidade ao serviço de bordo. A empresa ainda mantém mais de 3.000 lojas exclusivas e sede administrativa com ações de distribuição, licenciamento de personagens e desenvolvimento de produtos nos Estados Unidos, América Latina, Europa e nas grandes potências orientais – Taiwan, Hong Kong, China e Coreia, sem contarmos a experienciação in loco da marca em dois parques temáticos no território japonês. A Sanrio também é reconhecida pelas suas coparcerias

9 Nomenclatura empregada para o mais elevado cargo administrativo na hierarquia empresarial: chief executive officer. 10 Texto extraído da mensagem institucional de Shintaro Tsuji. Disponível em: <http://www.sanrio.co.jp/english/corpo-

rate/about_s/social.html>. Acesso em: 26 maio de 2012.

11 Dados coletados do fechamento do ano fiscal de 2011 no site institucional da empresa. Disponível em: <http://www.

internacionais em diversificadas áreas de atuação: na arte, na moda, na indústria do entretenimento e mesmo na política, estabelecendo uma visibilidade institucional que contorna o globo, caminhando do espaço do consumo, ao estrato social e principalmente à sociabilidade.

Para melhor compreendermos como a empresa constrói sua discursividade rósea, de forma a melhor convencer e fidelizar o sujeito ao consumo, introduzimos, em caráter contextual, seu surgimento. A Sanrio nasce em meados da década de 1960, dos investimentos do próprio Shintaro Tsuji, businessman disposto a comercializar pequenos produtos estampados com personagens de fácil reconhecimento do público japonês e, de forma visionária, que pudesse ser exportado para o consumo norte-americano. Desde suas primeiras intervenções no campo comercial, a Sanrio direcionou suas atividades em prol de um vasto intercâmbio cultural e econômico com o Ocidente. Observamos que essa característica está onipresente em todas as ações da empresa, na criação de personagens com traços e trejeitos ocidentalizados, na inserção de anglicanismos e na utilização do alfabeto latino na comunicação da marca, assim como em suas suas articulações de exportação direcionadas à nação norte-americana. Retomando o conceito de bricolage, veremos que a empresa funda seu discurso partindo da forte influência simbólica ocidental no Japão, logo após o longo período de reconstrução da derrotada nação na Segunda Grande Guerra. Motivados pelas fábulas animadas Disney, o Japão torna-se aos poucos a grande indústria mundial de personagens. Ozamu Tezuka exportou o universo robótico de Astro Boy; Hayao Miyazaki trouxe um novo viés à indústria da animação com suas realidades oníricas e tecnocientíficas; o super-herói ganha nova roupagem nas performances de Ultraman. Ainda, à esteira de Barbie, surgem personagens ressaltando arquétipos femininos, em um contraditório culto da fragilidade, da sexualidade e do consumo acessório. Esses simulacros fantásticos vão ao encontro dos anseios de reconstrução da nação japonesa, seguindo os moldes econômicos ocidentais e edificando uma nova imagem de si. Destaca-se aqui um Japão desmilitarizado que institui um novo “código de conduta”, não mais fundado no imaginário transcendental do Império. A nação reconstrói-se enquanto presença global partindo da própria imposição cultural estrangeira, rearticulada e ironicamente exportada em uma nova e paradoxal roupagem às suas origens. O Japão se firma assim como superpotência e influência cultural de ordem massiva e popular ao utilizar com maestria as articulações e visibilidades dos media, com ênfase na infindável gama de personagens e seus desdobramentos comerciais. Nas palavras do controverso artista “Superflat”, Takashi Murakami, “Nós não temos qualquer religião. Nós só precisamos do grande poder de entretenimento”.12

A Sanrio participa ativamente desse prolífero cenário, integrando um culturalismo complexo, heterogêneo, que carrega em seu cerne a estética e dinâmica ocidental, porém embasada por traços distintivos do Japão. É importante salientarmos que essa lógica da marca – apropriada da

indústria consumista americana – é aqui assimilada e regurgitada em uma visibilidade de consumo, decorrente de um Japão transmutado, ocidentalizado. Suas personagens buscam promover-se por simulacros estrangeirizados, porém expressos em uma perspectiva exageradamente lúdica e afetiva. Encaramos aqui a interessante axiologia de valores derivadas desse complexo cenário, introjetada nas estratégias discursivas da empresa. A Sanrio promove o consumo partindo desse viés extremamente adocicado da cultura popular japonesa, mais conhecido como cultura Kawaii. Sem uma tradução fidedigna de seu sentido original, Kawaii aproxima-sedo adjetivo “meigo”, ou, seguindo o perfil anglicanizado da marca, pelo seu equivalente “cute”. Segundo uma das principais pesquisadoras do modus vivendi no Japão contemporâneo, Sharon Kinsella, a palavra

Kawaii foi tachada como “(...) a mais utilizada, mais amada e habitual palavra na vida moderna

japonesa” (KINSELLA, 1992, p. 58). A expressão traduz não apenas um estilo, um jeito de ser que

abarca uma feminilidade rósea, infantilizada, consumista e pretensamente superficial. Ela carrega a própria competência discursiva de promover visibilidade e presença identitária ao instaurar um imaginário adquirido individualmente ou coletivamente por meio do uso de produtos e das personagens revestidos desses valores, focados minoritariamente para o público infantil e curiosamente dominando o segmento juvenil e adulto feminino. Nesse sentido, a Sanrio enquadra-se perfeitamente na construção desse imaginário, ao criar produtos, ou segundo a empresa, pequenos presentes recobertos das figuratividades “do coração”. Kinsella cita abertamente a marca como a principal destinadora na criação de produtos Kawaii, elencando as características de um produto imerso nessa plástica:

Estes produtos são caracterizados por serem pequenos, em tons pastéis, redondos, macios, amáveis, em um estilo não tradicional japonês, mas estrangeiro (particularmente europeu ou americano), agradável, com babados, fofo. A maioria destes objetos também são decorados com personagens. A anatomia primordial da personagem meiga é pequena, macia, infantil, mamária, redonda, sem extremidades corporais (braços), sem orifícios corporais (boca), não-sexual, muda, insegura, vulnerável ou indecisa. A empresa Sanrio criou uma grande linha de personagens meigos para firmar e dar vida a estes produtos (...). (KINSELLA, 1995, p.226)13

Conforme ressaltado pela autora, a Sanrio acaba por plasmar em seu rol de perfis identitários, visibilidades que pressupõem um caráter estético infantil e essencialmente meigo. Podemos inferir que a marca japonesa sugere essa esteticidade lúdica, feminilizada, ausente de elementos que denotem a influência de um regionalismo específico, enquanto modo de visibilidade e presença. Ela nos serve de modo a integrar-se de forma agradável, coesa e homogênea à diversidade vislumbrada

no segmento consumidor, formado por diferentes tipos de sujeitos consumidores abarcados na discursividade da marca. Assim, a construção de diferentes personagens curiosamente traz em si, ao mesmo tempo, arranjos expressivos individuais do ponto de vista da sua figuratividade animal, mas consideramos em sua plástica certas unidades formantes que reiteram, aos moldes Kawaii, uma mesma linguagem visual e consequentemente simulacros alinhados ao discurso Sanrio.

Fig. 5. algumas das principais personagens Sanrio – nomes e datas de criação, da esquerda para a direita, de cima para baixo: Pippo - 1993 (porco), Marron Cream -1985 (coelha), Nyago - 2000 (gato amarelo), Little Twin Stars – Lala e Kiki - 1975 (menina e menino), Spottie Dottie - 1990 (dálmata), Dokidoki - 2003 (hambuguer), Pekkle - 1990

(pato), Deery Lou - 2002 (veado), Peppy - 1991 (coruja), Sugar Bunnies - 2004 (coelhos branco e marrom), Kuromi - 2005 (coelha de gorro com caveira), Patty & Jimmy - 1975 (menina e menino de viseiras), Tabo - 1984 (menino de boca aberta), Monkichi - 1991 (macaco), Sweet Coron - 2001 (abelha), Cinnamonrol - 2001 (cachorro branco de contorno azul), Robow@n - 2000 (cachorro branco de contorno preto), Badz-Maru -1992 (pinguim mal-humorado),

Shinkansen - 1999 (trem-bala), Pochacco - 1989 (cachorro branco de contorno preto), Hangyodon - 1985 (peixe), Pankunchi - 2007 (bebê panda), Keroppi - 1988 (sapo), Purin - 1996 (cachorro amarelo), Puchi - 2002 (bebê cachorro),

Kuririn - 1997 (hamster), Hello Kitty - 1975 (gata), My Melody - 1975 (coelha de capuz), Chococat - 1995 (gato preto), Marshmallow - 2005 (gato malhado), Tuxedo Sam - 1979 (pinguim azul), Charmmy Kitty - 2004 (gata branca),

The Strawberry King - 1975 (menino morango) e Zashikibuta - 1984 (porco).14

Por outro viés, podemos destacar na fauna enunciada pela Sanrio, os enredamentos narrativos de Esopo e La Fontaine, a fábula ressemantizada. A fábula caracteriza-se especificamente por apresentar-se como uma narrativa curta e simplificada, de teor fantástico, que traz em si ensinamentos de cunho moral. Ela é peculiar devido à figurativização articulada dos atores inseridos na narrativa: animais humanizados e civilizados, que sintetizam por suas reconhecidas qualidades, enquanto bichos, a essência do caráter humano. Relembramos aqui a persistência da formiga, a inteligência da coruja, a sagacidade da raposa ou mesmo a “boa vida” da cigarra

14 Mais informações referentes as mais de 400 personagens Sanrio. Disponível em: <http://www.sanrio.co.jp/english/

entoando seu cantar diariamente. A Sanrio traduz a expressão do universo da fábula, contudo aqui, a diversidade animal visa sinteticamente o discurso da marca, a comunicação do “coração”. Em outros termos, o papel temático das personagens Sanrio, na tradução intersemiótica das histórias ensinadas, promove uma narratividade que busca fundar a relação do consumo pelo teor simbólico das fábulas. Partindo desse princípio, pressupomos inicialmente um simulacro que implica um sujeito consumidor motivado, buscando na comunicação afetiva das personagens afirmar-se e de certo modo, modelar-se consoante à visibilidade e presença instauradas. Para tanto, presta- se a essa função os produtos Sanrio, elevando ao status de bens consumíveis as personagens. Esclarecemos que a construção desse específico gosto pelo consumo apresenta diferentes graus de comprometimento com a marca, em menor ou maior escala, conforme a sua respectiva relação com o sujeito consumidor. Ela pode ser marcada por regionalidades, segmentação etária, classe social e mesmo estilo de vida: do colecionismo compulsivo à compra de um pequeno mimo a ser ofertado, do uso do acessório no cotidiano de trabalho ou da compra da lancheira da escola.

Fig. 6. A cultura Kawaii nas personagens Sanrio: mediatização e consumo global

Se a Sanrio articula seu discurso ao mediatizar simulacros que suprem um reconhecimento além das especificidades da tradição japonesa, a empresa constrói sentido visando ao comércio tanto no mercado interno quanto internacional. Essas dinâmicas são promovidas sob uma enunciação do feminino Kawaii que também desenha a mulher ocidental, na suavização dos limites entre as esferas lúdica e adulta. Entende-se que o consumo da marca aqui proposto, não

envolveria ingenuamente apenas o consumo dos presentes tão cuidadosamente semantizados, mas por trás disso, a promoção de muito mais possibilidades sensíveis do discurso: da modelização identitária, do individualismo, da integração e da conformidade social. A marca Sanrio traz em seu legado afetivo a ânsia do sujeito contemporâneo da pseudolibertação, da fuga, mesmo que superficializada, aos moldes cotidianos, em prol de uma valorização e personalização dos indivíduos e das suas relações mediatizadas pelas práticas de consumo. Ele é seduzido pela suavização das relações propostas pela marca, pela lembrança dos tempos da infância, da expressão de si e, como observaremos adiante, no próprio estado de “pertencer” por meio da troca mediada pelos produtos Sanrio. Comunica-se o sentimento de afeto, logo, na aquisição do afeto cabe seu repasse. Vislumbramos a sustentação de um consumo que vai, por um lado, sedimentar o imaginário da marca e por outro sustentar esse mesmo imaginário nas próprias relações com os produtos, no “presentear” a si, assim como ao outro, no repasse de valores de geração para geração, de amiga a amiga, de mãe para filha.

No documento MARIA CECÍLIA PALMA MAGALHÃES (páginas 36-42)