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O surgimento da gatinha Hello Kitty

No documento MARIA CECÍLIA PALMA MAGALHÃES (páginas 70-75)

A marca Sanrio enuncia seu “fazer” afetivo nos moldes programados das práticas de uso do objeto no cotidiano. Decorando as Gift Gates Sanrio, destaca-se a diversificada gama de personagens estampada nas manufaturas. Essas figuras são antes de tudo a própria personificação2

dos valores da marca, identidades que dão a força veredictório ao imaginário que convence e acalanta o estilo de vida de seus consumidores. O jargão personagem, conforme terminologia utilizada pelo mercado do licenciamento, indica especificamente o desenho de um perfil com traços humanizados, de caráter estilizado, organizado de acordo com um conjunto de marcas figurativas que o caracterizam. Geralmente estas figuras dotadas de “vida” presentificam-se em seriados de TV, filmes, comics books e conforme nosso interesse de análise, em bens de consumo. Enfatizamos não utilizar o termo no sentido inicialmente apregoado na semiótica narrativa, anterior às acepções de actante e ator, como pontuam Greimas e Courtés (2008, p. 366). Por seu estatuto semiótico, os sujeitos personagens aqui destacados, independente de sua denominação, são papéis actanciais programados pelo discurso da marca. Eles são revestidos de traços figurativos, temáticos e plásticos que os instauram enquanto atores, definidos pelos semioticistas enquanto “lugares de manifestação das estruturas narrativas e discursivas” (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 44-45). Assim, à nossa personagem cabe a função de corporeificar uma visibilidade institucionalizada consoante ao percurso traçado pela destinadora Sanrio. Configurada nesses moldes a personagem convoca o outro, o consumidor, a mediar suas interações sociais pelo corpo da Hello Kitty, que se esteia enquanto objeto de comunicação e de significação.

A Sanrio modela suas personagens conforme sua “imagem e semelhança”, ao retomar o traçado do logo-assinatura, ele é reiterado no corpo das personagens, desenhando novos contornos, mais complexos. A figura do destinador que habilmente executa os movimentos da caneta faz emergir, da materialidade do papel para o corpo do objeto, personagens com trejeitos antropozoomorfizados, figurados em narrativas de cultivo da amizade, das ações permeadas por

hábitos de ordem lúdica. Ao traçar essas identidades a Sanrio busca desse modo conduzir com o fio de Ariadne as narrativas de consumo dos valores da marca e de criação de uma proximidade com o destinatário. Pelo corpo da personagem que habita o objeto, cria-se um elo firmado na performance da sua posse e de seu uso por parte do consumidor, um simulacro de parceria que pressupõe, em caráter veridictório, o potencial de pertencimento promulgado por ela. Assim, também não caberia à personagem, além de estabelecer um “fazer junto”, dar visibilidade ao simulacro idealizado de um consumidor já patemizado e apto à troca afetiva para com Hello Kitty, assim como para com outros consumidores? Partindo desse princípio, focamos nossa análise na personagem que melhor presentifica a discursividade da marca, reconhecidamente um dos grandes perfis mediáticos na esfera do consumo, no mercado do licenciamento e no do entretenimento: a gatinha Hello Kitty.

Fig. 19. O traçado da assinatura que constrói a personagem Sanrio.3

A Sanrio cria a alva gatinha no início dos anos 1970, introduzindo no mercado de licenciamento uma nova face comercial. A Hello Kitty é reflexo das estratégias de alavancamento do volume de vendas da empresa que, desde os idos anos 1960, já direcionava suas atividades na criação e comercialização de personagens. Seu lançamento destaca-se de forma inigualável: a Hello Kitty gera uma vultuosa repercussão mediática devido ao grande sucesso de aceitação pelo público consumidor. Em razão da enorme procura pela personagem, ela estabelece parcerias de produção com outras grandes marcas de renome mundial, transforma a gatinha em inspiração para estilistas e artistas gráficos de reputação internacional, enfeita com trejeitos rosados os

3 Disponível em: <http://www.facebook.com/media/set/?set=a.307429712651851.72845.257612820966874&type=3 >.

corpos das celebridades hollywoodianas. Por fim, pelo corpo da personagem, a Sanrio tece uma infindável rede de visibilidade, promovendo o seu reconhecimento no entorno global.

Porta-voz do discurso da marca, a gatinha Hello Kitty personifica a própria “linguagem do coração”, ou seja, ela permite, pelo consumo objetal que conjunge corpos, distribuir efeitos de afeto e de sociabilidade. Devido a esse efetivo papel na mediação do discurso “do coração”, a personagem destaca-se além da esfera do consumo, posicionando-se nas relações que abarcam o cenário social. Assim, em uma narrativa lúdica que comunica valores de sociabilidade e pertencimento a gatinha conquista nos idos anos 1980 e 1990 o título de embaixadora da organização responsável por estratégias de proteção à infância ao redor do Globo: a UNICEF. Desse mesmo modo, em 2008, a personagem é endossada pelo MLIT - Ministério da Propriedade, Infraestrutura, Transporte e Turismo japonês – como embaixadora das relações de turismo, o cartão de visitas que “sorri” ao estrangeiro. Observamos nos dois casos o papel da personagem na mediação da relação entre sujeitos, a figura, de reconhecimento global, que permite conjungir indivíduos pela sua competência afetiva, por sua humanidade, pelo vínculo da amizade. A Hello Kitty é assim, de fato, o grande marco que alça a Sanrio ao topo das grandes marcas mundiais. É também porta-voz da marca e, hoje, uma das principais imagens (deveras estereotipada) do Japão contemporâneo. Assim, de forma a melhor analisar a força mediática da personagem, promotora das relações tecidas entre o consumo objetal e o contato subjetivo, retomamos, a título de análise, sua primeira aparição, datada de 19754.

Fig. 20. Porta-moedas – primeira apresentação de Hello Kitty – 1975.5

4 Conforme fonte oficial, obtivemos três diferentes datas referentes às primeiras veiculações de Hello Kitty. A personagem

é criada em 1974, sendo sua primeira aparição em produto datada de 1975. Atualmente, todos os produtos estampados com Hello Kitty apresentam o ano de 1976 como a data oficial, indicativo do registro patenteado da personagem.

5 Disponível em: <http://www.sanrio.co.jp/characters/hellokitty/english/kt_goods75-76.html>. Acesso em: 30 de junho

Em uma pequena bolsa para moedas, destacava-se a felina branquíssima, com trejeitos e vestimenta humanizados, particularizada por traços extremamente estilizados e desproporcionais e pela característica ausente do orifício bucal. Pequeno objeto plástico, com fecho prateado articulado por dois botões em estrela que, com o leve manejo entre dedos, permitia o acesso ao conteúdo da bolsa. Objeto comum, de uso cotidiano, mas que já agregava em seu cerne a dinâmica discursiva da marca, destacada por três pontos: (1) da usabilidade do objeto consoante a sua função standart, aqui articulada, ironias a parte, em salvaguardar (ou não) uma pequena soma financeira; (2) da corporeificação da personagem no corpo do objeto, instituindo um novo modo de presença e de visibilidade ao produto e (3) da criação de uma volição de consumo inerente a este novo status quo do objeto.

Na intersecção entre a personagem e o objeto somos assim posicionados defronte a um cenário simplista, ultraestilizado, do universo infantil. São realçados os contrastes entre as homogêneas cores branco, azul e vermelho, delimitadas pelo inconfundível traço que desenha a marca. No centro da cena resplandece a gata. Sua branca face, enfeitada com o rubro laço posicionado na diagonal, se destaca ao centralizar-se no produto, olhando fixamente para aquele que a observa. Acima dela, a exclamativa que ratifica o convite à sua apresentação e consequente interação: “Hello!”. Na cena das brincadeiras da infância a convidativa gatinha, figurada no porta-moedas, chama ao contato. Esse convite ao diálogo se dá não apenas no plano verbal, mas também na expressão corporal da personagem. Com a face voltada ao consumidor, na ausência da cavidade oral, a gatinha estabelece contato por um corpo responsivo ao cumprimento do outro, respondendo pela sua gestualidade corpórea. Discurso afirmado pela própria Sanrio, deste modo a Hello Kitty não necessariamente precisa do órgão bucal para o diálogo pois, independente de tudo, a gatinha “fala a linguagem do coração”6. Reitera-se, desse modo, o discurso da construção

de vínculos afetivos, sendo o objeto onde ela se encontra “estampada” o próprio amuleto mágico capaz de circular valores. Pela materialidade do objeto promovem-se interações de ordem subjetiva e pessoal, na troca de olhares com a gatinha, na resposta ao polido “hello”. Afinal, já estamos, impreterivelmente, imersos no ato de interação, na experienciação da marca, no contato com a Hello Kitty.

Partindo do corpo do objeto, a personagem ganha vida, respondendo, é claro, à programação da marca. Como o próprio objeto, a gatinha apresenta características que regulam tanto sua organização figurativa – os traços que a destacam e a identificam – como seu “fazer” enunciativo,

6 Resposta à pergunta: “Por que a Hello Kitty não tem boca?” extraída do FAC institucional Sanrio no site Americano.

no papel actorial delegado ao convencimento do consumo. É importante enfatizarmos que a regularidade observada na personagem serve para sua melhor operacionalização, sendo rapidamente decodificada independente da diversidade temática apresentada. A Hello Kitty é responsável assim tanto pela comunicação dos valores Sanrio como também pelo incentivo à sua circulação, no simulacro que permite dialogar e, principalmente, criar vínculos pelo consumo. Essa programação pressupõe-se ao estatuto do próprio objeto, conforme sua programação, imbricado de forma a sugerir o elo afetivo pelo seu uso e posse por parte do sujeito consumidor.

Frisamos assim, que a figura da Hello Kitty acaba por ser a presença que docemente motiva o hábito de compra do consumidor. No cenário lúdico que emoldura a personagem, funda-se o simulacro do diálogo afetivo, articulador das volições que motivam seu consumo. Tais articulações estratégicas baseiam-se na lógica de convencimento da Sanrio, pelas relações mediadas pela personagem. A manifestação da marca visa, desse modo, a cognição do sujeito consumidor, o reconhecimento dos valores constantemente reiterados nas práticas de uso dos objetos já instaurados no hábito comum das práticas cotidianas. A Sanrio perspicazmente enuncia o discurso afetivo da personagem pelo corpo objetal, pois fica claro, que esse tipo de relação não responde apenas pela esteticidade ou usabilidade do produto. Tais objetos são, de fato, “entidades privadas de motivação e de razão, mas em função de um olhar objetivante – reificante – que habitualmente projetamos sobre eles” (LANDOWSKI, 2009)7. Em outros termos, na materialidade do simulacro afetivo da personagem imbricada no objeto, o sujeito consumidor, por sua capacidade de apreensão do imaginário da marca, projeta volições de estado de ser e pertencer pelo contato criado pelo consumo, ou seja, pelo efeito de sentido do “estar junto” com a Hello Kitty. Esse imaginário tão bem trabalhado em seu discurso, mediatizado nos objetos que nos acompanham nas dessemantizadas tarefas diárias, acaba por alinhar-se com o próprio percurso do consumidor.

No consumo do objeto que faz parte da rítmica das vivências, o consumidor afirma o seu gosto pela personagem, caracterizando, do ponto de vista diacrônico, o surgimento de diferentes gerações adeptas ao vínculo afetivo enunciado. Seguindo o cenário sociocultural, o corpo da gatinha renova-se em novos arranjos plásticos e figurativos, de forma a melhor motivar e sedimentar-se enquanto “todo de sentido”, para a heterogênea classe consumista que se apresenta. Dos idos anos 1970 à atualidade, do porta-moedas ao notebook, a Hello Kitty firma seu trilhar afetivo.

2.3| O SIMULACRO DA AMIZADE: A CONSTRUÇÃO

No documento MARIA CECÍLIA PALMA MAGALHÃES (páginas 70-75)