• Nenhum resultado encontrado

O simulacro da amizade: a construção

No documento MARIA CECÍLIA PALMA MAGALHÃES (páginas 75-86)

Partindo das reiterações e alteridades que dão corpo à gatinha, do seu imbricamento ao modelo objetal e, definitivamente, da sua adequação ao universo cotidiano do consumidor, aprofundamos nossa análise nas pistas enunciativas que dão tônus aos jogos de manipulação da Sanrio com o consumidor. Tomamos inicialmente, como referência, as unidades discursivas que articulam o “in

praesentia” da personagem, seja na estruturação da sua visibilidade ou na rearticulação da mesma em

outros jogos enunciativos concernentes às dinâmicas de atualização mercadológica. Dessa maneira, é possível atestarmos a consonância dos valores e os desdobramentos narrativos da personagem segundo a programação da marca, em prol do convencimento e fidelização ao consumo.

Tendo como princípio que toda “coisa”, sujeito ou objeto, deve ser nomeado de forma a ser identificado, iniciamos nosso aprofundamento no universo da personagem por sua denominação: Hello Kitty. A personagem firma-se pela saudação que promove o diálogo e pela sua classificação no reino animalia. A pequena felina também caracteriza, metaforicamente, o arquétipo idealizado da fêmea graciosa, delicada, submissa. Na união dos termos vislumbra-se, en passant, o corpo feminilizado que já se dispõe à interação. Ressaltemos a importância do nome da personagem além do seu papel de identificação e reconhecimento da identidade em questão. Ele também tem presença importante na reafirmação da visibilidade do próprio estatuto identitário da personagem, usualmente acompanhando, em diferentes e coloridos contrastes, as narrativas temáticas da gatinha. Por meio de caracteres manuscritos, corações e flores, ou mesmo no contraste entre tipos gráficos surge, assim como no logo, o próprio estatuto identitário da gatinha, como observamos abaixo:

Fig. 21. Exemplos de assinaturas “Hello Kitty”.

As assinaturas “Hello Kitty” correspondem, em sua maioria, à própria temática trabalhada no corpo da personagem inscrita no objeto. Desse modo, surgem infinitas visualidades correspondentes aos diferentes produtos e projetos gráficos desenvolvidos pela Sanrio. Não nos atemos neste momento

a algum caráter tipográfico exclusivo, seus respectivos cromatismos, estilos ou temáticas possíveis. Mesmo apresentando interessantes composições para análise é primordial avaliarmos como se repete na denominação Hello Kitty, independente da visualidade, uma mesma carga semântica. Focamos, assim, na topologia inerente à articulação entre os caracteres romanos, na formação de blocos de palavras, nas possibilidades visuais e sonoras que o nome “Hello Kitty” emerge.

Partimos inicialmente da decodificação verbal e do semantismo inerente aos termos. A denominação “Hello Kitty” tem como aparato sonoro o idioma anglicano, verbalizado nos caracteres do alfabeto latino. Tanto o idioma como o sistema de escrita são reconhecidamente utilizados de forma a definir um elo comunicacional em âmbito mundial. De fácil reconhecimento e pronúncia, tomamos assim, de princípio, o primeiro termo que compõe a denominação. Sugere-se na saudação “Hello”, como vimos, o convite ao diálogo. Em sua função fática ela indica o contato entre a personagem e o sujeito movido à sua apreensão. Denota-se que o convite à conversa, de fato, personifica a voz da personagem no enunciado, que nos cumprimenta. Direcionado ao consumidor, o corpo comovido da gatinha efetivamente nos posiciona em relação intersubjetiva com a nossa saudação.

Já em relação à “Kitty”, considera-se que a figura vislumbrada no termo permite presentificar um rol de percursos temáticos que funda um determinado imaginário simbólico. Sabemos que, originalmente, o termo traduz a imagem felina, porém não articulada conforme sua primeira designação, “cat”. Esse termo induziria à concepção do felino adulto, visto como independente, sagaz e, segundo o próprio dito popular, com um ar ligeiramente esnobe. A utilização do termo diminutivo “Kitty”, diferente de “cat”, apresenta um enfoque ligeiramente diferente: mais do que categorizar a tipologia animal, ele remete ao animal filhote, de colo, do ronronado, da afetividade que os donos empregam ao chamar o seu pequeno mascote. Ele também permite vincular tais qualidades animais ao próprio contexto de adjetivação do arquétipo feminino, da sexualidade expressa pela mulher em um enunciado que transborda fragilidade, meiguice e delicadeza. Ainda, o termo identifica e individualiza a personagem enquanto pertencente ao universo da civilidade, das relações sociais de cunho informal, do apelido carinhoso. Mais do que enunciar um certo modelo, o termo “Kitty” nomeia, do reino animalia à civilidade, a própria mulher. A pequena gatinha qualifica, nos moldes infantis, a graciosidade e fragilidade feminina, a visibilidade “cute”, que seduz, conforme indica o dicionário Oxford8, por modos de presença

de inspiração meiga e afetiva.

8 Definição de “cute” extraída do dicionário inglês Oxford. Disponível em: <http://oxforddictionaries.com/definition/

Além da semântica vislumbrada termo a termo, observamos que ambos os lexemas nomeadores da personagem apresentam um divertido jogo verbo-visual e sonoro que nos remete, de certo modo, ao slogan “Small gift, Big Smile”. Assim como no slogan, “Hello Kitty” utiliza dois blocos verbo-visuais e sonoros, com a repetição de posicionamentos, sonoridades e articulações verbais. Marcado na duratividade, no tempo do “agora”, retomamos a figura do destinatário consumidor que se vê, de fato, no contato já estabelecido com a gatinha. Assim, se vislumbramos no discurso Sanrio a possibilidade de alcance de um estado patêmico, da mesma maneira como no slogan, plasma-se o presente como meio de repasse desse estado na relação com um outro sujeito, ou seja, na denominação da pequena personagem apresenta-se o corpo que nos coloca, definitivamente, na proximidade do entre-si.

Deste ponto, partimos além do sentido inerente ao plano do conteúdo (que apresenta o estado identitário e sociável da personagem) para uma análise preocupada também com a organização do plano da expressão de “Hello Kitty”. Ressalta-se o caráter de repetição das linhas verticalizadas, ora arranjadas em perpendiculares, ora tangentes, ora oblíquas, propondo a repetição de um mesmo jogo de contrastes no espaço recortado entre caracteres, como observamos logo abaixo:

Fig. 22. Dinâmicas topológicas na denominação “Hello Kitty”.

Na sequência marcada pelas hastes verticais caracteriza-se um sentido, em caráter durativo, de proximidade e homogeneidade. Na relação entre os caracteres “H”, “E”, “L”, “K”, “I”, “T” e “Y” posicionam-se, lado a lado, verticalidades que, unidade por unidade, firmam uma rítmica linear, formam por sua reiteração uma totalidade de sentido. Mais do que igualarem-se na repetição

das formas, elas nos indicam, na relação entre suas partes, o próprio estar socialmente vivendo junto com outros sujeitos. Esse tipo de dinâmica que faz pertencer nas linhas que constroem a denominação da personagem, ainda reitera-se no imbricamento de outro arranjo entre formas, que transporta o elo entre sujeitos observado no paralelismo para a intersecção entre linearidades, nos caracteres “H”, “E”, “L” e “T”. Aqui, mais do que reafirmar a uniformidade entre as partes, denota-se o vínculo que une e integra as partes relacionadas, retomado, ainda, nas linhas oblíquas de “K” e “Y”. Abertas para a exterioridade do bloco verbal, o sentido de unidade e pertencimento pode simular, assim, um fazer virtualizado além da composição enunciada. Nas tessituras das linhas que se conjungem e propagam afeto ainda resta identificar, em sentido terminativo, a circularidade de “O” que presta-se, assim como na assinatura do logo, a dar continuidade ao estado de afetos que as verticalidades, conjuntas, produzem. Da sequencialidade à circularidade mantém-se o estado de pertencimento, enclausurado, protegido, seguro, pelo discurso da marca. Desse modo, nos aproximamos, em caráter semissimbólico, da perspicácia da Sanrio em rimar, amarrar, hermetizar seu universo de valores em um único e uníssono sentido, seja nos jogos de expansão, de propagação que as linhas produzem nas angulações e paralelismos, assim como na manutenção, na proteção desse universo que circula afetos no corpo da personagem.

Dos traços de sociabilidade que propõem pertencimento, do arquétipo feminino que modeliza, do arranjo enunciativo que comunica e mantém a axiologia de valores afetivos em circulação: essse imaginário simbólico que margeia o nome da personagem não se reduz à esfera verbo- visual. Tomemos assim como referência novamente o corpo da personagem, imagem standart que usualmente faz reconhecer, nos dias de hoje, seu perfil identitário:

Fig.23. Hello Kitty nos convida ao contato em sua convidativa postura corporal: na frontalidade da face que carinhosamente nos fita, no corpo sentado pronto para a conversa, na abertura dos braços que propõe o abraço.

Primeiramente é importante considerarmos esse corpo comovido da personagem, que nos saúda pelo aceno, pelo olhar, pelos braços, pelo solado dos dois pés, reafirmando por todas as suas partes uma saudação que funde em seu corpo os polos oriental e ocidental. Assim, além da figura felina, a visibilidade proposta pode também ser compreendida como uma releitura adocicada de uma imagem simbólica do folclore japonês: o Maneki Neko. Usualmente apresentado na forma de uma pequena estatueta felina com a pata estendida em sinal de cumprimento, ele traz ao peito a moeda dourada – imagem que resgata a ideia de sorte e prosperidade, encontrada aos borbotões no comércio de produtos orientais. Caracterizado como talismã, ele deve ser ofertado de forma a promover, por sua presença, o repasse simbólico a ele considerado. Vislumbramos de fato, na articulação de diferentes estéticas e ideologias que permeiam o fazer cotidiano dos sujeitos consumidores, a tradicional figura de Maneki Neko ganhar uma nova roupagem em prol das relações de consumo manejadas pela marca japonesa. Da tradição à performance consumista, o simbólico que ajuda a reger as práticas de vida é retomado no corpo da gatinha. Por outro lado, se identificamos o papel do folclore oriental no corpo da personagem, este é totalmente customizado nos moldes anglo-ocidentais. A gatinha responde oficialmente, conforme salientado pela Sanrio, por Kitty White. Ela é natural de Londres, adora assar biscoitos e a sua palavra favorita é “amizade”9.

Essa figuração da Hello Kitty indica um simulacro (um tanto quanto estereotipado) da mulher branca ocidental, reafirmado na coloração da pele que é enfatizada novamente em seu sobrenome. Esse corpo que transita entre o simbólico oriental e o modelo feminino ocidental é referenciado na esfera infantil, nas brincadeiras e na ingenuidade que constroem as doces memórias da infância.

Afora o rico universo cultural que modaliza e delega um modelo identitário no perfil da Hello Kitty, vislumbramos, em um segundo olhar, uma estilística gráfica única, pertencente à Sanrio. O traçado da caneta que assina o logo constrói, no contraste entre branco e preto, o corpo plasmado com formas suavizadas, que realçam o caráter gentil, lúdico e feminino da gatinha. Neste ponto, se entendemos que a Hello Kitty traduz em sua expressão um traçado que induz ao movimento da caneta, vemos que o mesmo não é da ordem do gesto livre, mas de uma forma regular, pensada. Hello Kitty é imagem posada, normatizada, um parecer social que retrata um “estar no mundo”. Nesses termos, segundo articula Landowski:

[...] “fazer signo” com o seu corpo, isto é “exprimir-se”, qualquer que seja o conteúdo transmitido, pela fisionomia, o gesto ou a maneira de se portar, é simplesmente servir- se da sua própria massa carnal como poderíamos fazê-lo de qualquer outro material significativamente articulável com vista a “comunicar”. (LANDOWSKI, 2001, p. 280)

9 Informações extraídas do perfil oficial da personagem no site Sanrio Co. Disponível em: <http://www.sanrio.co.jp/

Vislumbramos na corporeidade da Hello Kitty o media ideal de modo a instaurar a axiologia de valores da marca. Em suas formas reiteram-se os traços que constituem um universo de afetividades fechado, amenizado e ininterrupto, já afirmada nas formas do logo, na organização verbo-visual do slogan e na própria denominação “Hello Kitty”. Tais configurações caracterizam o caráter durativo dos valores da marca tanto pelo seu caráter circular, das formas contidas em si mesmas, como por sua repetição figurativa. Assim, se na organização verbo-visual do nome observa-se a sequencialização das linhas que emergem pertencimento e continuidade, a mesma depreensão semântica repete-se nas formas ovaladas englobadas umas nas outras e que mantêm a mesma rítmica no movimento circular proposto na sua composição. Esse tipo de relação também se repete na própria materialidade da gatinha, na textura lisa, fofa, aplainada, que reafirma seu caráter ininterrupto. É importante ressaltarmos, porém, que essa continuidade a qual repetidamente encontramos no discurso da marca não se caracteriza exclusivamente por um fechar-se em si mesma. Ela é da ordem do movimento, da expansão que a mantém in praesentia pelo e com o consumidor.

Essa estrutura corporal é caracterizada, além de sua organização espacial, pelo arranjo dos formantes eidéticos e cromáticos constituídos em traços espessos, curvilíneos e arredondados que delimitam, sintetizam e unificam a figura estilizada da felina em uma composição uniforme e harmônica. Essa composição, fundamentalmente, é regida por proporcionalidades que permitem sustentar um padrão visual da gatinha, conforme observamos na sequência:

Figura 24. Estrutura corporal de Hello Kitty. Invariante definida pela proporção da maçã.

A estrutura do corpo da personagem equivale a 5 maçãs por 3 maçãs, conforme indica a Sanrio10. Vislumbre interdiscursivo do popular conto infantil “Snow White”? Diferente da princesa

10 Conforme informação oficial retirada do site Sanrio Co. Disponível em: <http://www.sanrio.co.jp/characters/hellokitty/

explorada no clássico filme Disney, o imaginário da maçã presente em diversas manifestações da “Kitty White” não é compreendido disforicamente. Não é morte, nem punição. Também não traz, como vislumbramos anteriormente no enunciado da Apple, o escape, a sedutora liberdade considerada proibida. Assim como todos os objetos que circundam a Hello Kitty, a maçã carrega em si a forte estilística da marca e parece ornar o cenário enquanto objeto que integra o cotidiano infantil da personagem. Na reiteração das formas, dos cromatismos e na sua definição por Sanrio como unidade de medidas corporal, a maçã por si só também traz em si, a proposição de “saborear” a doçura da Hello Kitty. O componente sexual porém é neutralizado pelo consumo do sentimento da amizade, no forte teor lúdico que reveste a narrativa da personagem. Não podemos também deixar de considerar que a unidade de medida “maçã” por si só apresenta um formato singular, muito aproximado em suas proporções – da parte superior formada por duas circularidades que estreitam-se na base – ao formato do coração.

De qualquer modo, a estrutura da gatinha sempre respeita essa proporção, demonstrada pela largura um pouco maior que a relação de altura. Essas medidas, tal qual uma proporção áurea, vão configurar a personagem como um todo, regularizando cada parte que define o estatuto corporal, infantilizado, da gatinha. É perceptível, porém, que a relação entre cabeça e corpo é destoante, sendo a cabeça a maior porção que dá a ver o corpo da gata, na relação de 3 maçãs por 3 maçãs. A mesma relação se repete na indicação da faixa que corresponde aos elementos da face da gatinha, plasmada na proporção 3 maçãs por 1 maçã. Dessa forma, é possível compreender que, independente da pose, o observador sempre será posicionado, conforme a topologia do desenho, em relação com a face, na faixa que correspondente às duas maçãs.

Observamos então um corpo que se presentifica no centro da composição pelos três círculos ovalados proporcionais alinhados, formatando olhos e nariz. Nessa configuração proposta, a Hello Kitty coloca-se em relação direta, “olhos nos olhos” com o seu observador. A simulação de estados de ânimo da marca apenas será assim reconhecida no “olhar” comunicativo que toma diferentes significações em conformidade com a variação entre olhos abertos e fechados, realizados consecutivamente na estruturação de círculos verticais preenchidos e semicírculos horizontais não preenchidos. Aqui, na expressiva comunicação do olhar, o espaço do orifício bucal acaba por ser substituído pelo espaço branco, delimitado pelo arco ascendente que nos sorri e fecha, acima, a forma circular. Não seria assim a boca, todo o sorriso do contorno inferior do rosto? Ou a fala seria comunicada por todo esse corpo, comovido, em posição de diálogo? Os traços homogêneos que delimitam e dão dinâmica à espacialidade branca permitem, desse modo, em seu arranjo topológico e rítmico, mais uma vez reiterar o percurso comunicante da gatinha. Essa rítmica ainda é reforçada

nas três tradicionais hastes curvas, representativas da figura dos bigodes, dispostas ligeiramente encurvadas e enfileiradas no arco, posicionadas em oposição no espaço destinado às laterais da face. Na mudez reforça-se a comunicação do corpo. No corpo estático transparece o movimento contínuo que circunda e protege o pulsar afetivo. Nosso olhar dialoga, dessa maneira, com a expressiva circularidade da Hello Kitty, que nos chama de fato ao tato, ao contato entre corpos.

Fig. 25. Estados patêmicos de Hello Kitty

Nesse corpo comunicante ainda ressalta-se, além das proporcionalidades que regem o estatuto corporal da personagem, a isotopia na organização compositiva de três elementos: olhos e nariz constituem-se em três formas ovaladas, os bigodes são três arcos, além da figura do laço que basicamente constitui-se em três partes. O aspecto da repetição nas formas circulares e no traçado mais uma vez firma o discurso da continuidade. Não era da ordem de três rios o conceito base da nomeação da marca? Do movimento incessante, porém, canalizado do fluxo da água que permitia, no banhar, renovar o estatuto do sujeito? Podemos inferir que a trindade traz em si a figura da relação entre marca e consumidor, promulgada pela mediação do objeto. No contato entre corpos, entre o “fazer” programado do objeto à intersubjetividade enunciada por Hello Kitty, surge o corpo modalizado do consumidor. Seria ele o elo que fecha a triangularidade entre corpos ou, ainda, como sugerido no slogan, um outro sujeito, aquele que promete ser convencido pelo corpo consumista já patemizado, na visibilidade de consumo do presente Sanrio?

Partimos nesse ponto para a própria figura de posse e uso objetal apresentada no corpo da personagem. O corpo da gatinha é destacado pelo contraste cromático das vestimentas e, principalmente, pelo adorno que enfeita a face, marcas da civilidade ocidental. Figura simbólica do feminino, o laço de fita infere-se em uma personificação da vaidade inocente de menina. Em destaque, o adorno posiciona-se diagonalmente à direita da cabeça, encaixado na orelha e se sobrepõe à face como a maior porção cromática da composição, em contraste à face, sendo reafirmada na coloração rosa avermelhada das vestimentas. Essa combinatória entre adorno e vestimenta se reitera também, como veremos adiante, em outros desdobramentos discursivos da personagem, afirmando um estilo de ser que se altera conforme os modismos e tendências.

Mais do que enfeitar, a composição cromática permite vislumbrar a suavização do feminino na relação entre o vermelho destacado na brancura do corpo. A resultante dessa mescla não seria a suavidade do rosa, que instaura a delicadeza e fragilidade do sujeito feminino?

Primordialmente, o enfeite de Hello Kitty caracteriza-se pelo laço de fita, reiterando os traços arredondados da face em quatro semiarcos conectados em um círculo perfeito. É pelo círculo central que somos levados não apenas à diagonalidade descendente do adereço, mas à percepção da relação do mesmo com os demais elementos da face. O laço traz em si a mesma relação de desproporcionalidade vislumbrada no coração do logo, levemente trabalhado na diagonal com um lado mais aparente que o outro. Se o coração é o simbólico afetivo da transmissão, mas principalmente da manutenção do afeto em seu pulsar, o laço dessa forma não sintetizaria a própria ideia do objeto que serve para a mediação afetiva? Se o objeto Sanrio destaca-se pelo corpo estampado da gatinha, aqui a relação é contrária: a Hello Kitty destaca-se pelo objeto que enfeita seu próprio corpo. O discurso consumista é reafirmado assim na própria personagem que, figurada junto com o consumidor ou mesmo refletindo a performance esperada do mesmo, sempre se dá a ver na posse ou enfeitada por pequenos objetos. No modus vivendi do feminino ocidental, a personagem plasma, assim, suas ações afetivas na constante presença de elementos outros que dão significação ao seu corpo. O valor do presente responde aqui na figura do

No documento MARIA CECÍLIA PALMA MAGALHÃES (páginas 75-86)