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Small gift, big smile: o Potlatch afetivo

No documento MARIA CECÍLIA PALMA MAGALHÃES (páginas 55-63)

Se a Sanrio instaura seu discurso fundado na comunicação afetiva, e entendemos que o ato comunicacional envolve no mínimo dois sujeitos em relação, é importante levantarmos como a marca reitera seus valores ao destinatário consumidor partindo de outros atos discursivos encadeados à expressão do logo. Analisamos assim o próprio mote de vendas da empresa, o slogan

“Small gift, big smile”. Verbalizado em inglês, reconhecidamente a língua mãe da comunicação

mundial, o gracioso slogan traz à tona uma narrativa construída a partir de um interessante jogo estilístico, antitético, na oposição semântica dos adjetivos:

SMALL vs BIG

Vejamos que a oposição semântica dos termos será paradoxalmente invertida em sua expressão, por seu posicionamento e proporcionalidade na sentença. Contamos aqui com uma maior visibilidade dos termos “Small” e “Smile”, em contraste com os curtos “Big” e “Gift”.

Esse mesmo destaque morfológico será reiterado na vocalização da sentença, onde os termos longilíneos são longamente sonorizados na sequência das consoantes “s”, “m” e “l”. Dessa forma,

“Small” perde, em termos, seu status diminuto, na dissonância entre os planos do conteúdo e

da expressão. Sua figura reduzida é desconstruída por um sentido mais abstrato, na obtenção de algo superior às suas proporções matéricas. Veremos que a mesma sistemática introjeta-se contrariamente nos termos “Big” e “Gift”. Ambos figuram-se estreitos e verticalizados, marcados no timbre fechado e seco da vogal “i” com as consoantes “g”, “f” e “t”. Na similar sonoridade dos timbres fechados, “Big” ameniza suas proporções juntamente com “Gift”. Salientamos que, independente da separação das unidades do slogan conforme seu peso visual e sonoro, contamos com a organização dos arranjos de valores em uma sintagmática instaurada na sentença. Se a sequencialidade sonora de “Big” parelha-se com “Gift”, os sons abertos de “Small” e “Smile” abrirão e encerrarão a sentença. Essa consonância sonora nos remete automaticamente de um sentido de valor a outro, do aspecto terminativo da tomada de uma ação em busca de algo esperado. Compreendendo a lógica sonoro-visual das unidades sintáticas, tomamos agora o slogan como um arranjo articulado. “Small Gift, Big Smile” compõe uma interessante ordenação:

SMALL GIFT, BIG SMILE

A sentença nominal é marcada na coordenação assindética entre dois blocos significantes

“Small Gift” e “Big Smile”. Sua sequência denota, como previamente comentado, uma relação

pontuada de “causa” e efeito”. Sugere-se que um pequeno presente Sanrio trará em sua aquisição um efeito de sentido positivo, da alegria. A relação observada entre os dois jogos de palavras de fato nos remete a uma dinâmica de troca, resultando na privilegiada alteração de estados de ânimos, já observada no viés do logo. Essa resultante pressupõe um simulacro em si de uma “relação intersubjetiva que tem por efeito modificar o estatuto (o “ser” e/ou “parecer”) de cada um dos sujeitos em presença” (GREIMAS; COURTES, 2008, p. 388), ou seja, sugere-se na discursividade do slogan a promessa de acesso a valores que ela, como destinadora, pode oferecer. Neste caso, ao invés da figura de uma Sanrio autoral, que promove em seu traçado o estado patêmico, a marca condiciona o sujeito consumidor a buscar os valores afetivos em um terceiro ator, sujeito adjuvante nos jogos de convencimento salientados, o objeto transfigurado em afeto: o pequeno presente. Se analisarmos de forma um pouco mais criteriosa, vislumbramos que não necessariamente a Sanrio é responsável pelo repasse da figura do afeto em si. De fato, ela sugere repassar uma competência de “intercomunicação afetiva” ao consumidor na compra dos pequenos presentes. Esse consumo

do objeto pode prestar-se tanto ao usufruto do discurso patêmico, tendo em vista um sentido de pertencimento junto à própria marca ou, como salientamos, com um sujeito outro a ser “presenteado”. Aprofundando nessa dinâmica, tomamos como referência as principais unidades do

slogan revestidas de significação: os substantivos “Gift” e “Smile”. Conforme o dicionário Oxford, “Gift” é entendido como “algo dado de bom grado a alguém, um presente”20. Porém, em sua

segunda definição, ele é em si “o ato de presentear”21. A cultura do “presentear” precede as

sistemáticas convenções sociais do Japão, berço da empresa. Ela é reforçada pelo advento do já comentado “modo de consumo ocidental”, rearticulado em costumes como o do Otoshidama, da oferta de dinheiro ou pequenos mimos às crianças e jovens em datas festivas. Assim é possível afirmar que o ato de presentear denota, além de tudo, uma etiqueta de preocupação com o outro. Curiosamente, em algumas derivações da língua germânica, o termo “Gift” ainda refere-se eufemisticamente a “veneno”, no sentido da prescrição em “doses” de forte componente químico de forma a sobrepujar, nos ditames da medicina antiga, algum mal crônico. Não estariam os pequenos presentes arquitetados numa narrativa similar?

A significação de “Gift” estende-se assim além dos conceitos indagados. O termo pressupõe automaticamente a presença de dois sujeitos em interação por meio de uma ação voluntária. Mauss edificou toda a sua antropologia das relações intersubjetivas mediadas nos povos primitivos pelo “objeto mágico”, a partir do valor do ato de Potlatch. O termo chinook, segundo Mauss, envolve a ação do presentear como dinâmica de troca, a “dádiva” – ou na tradução anglicana, “gift” – da retribuição para a manutenção de um contrato amarrado com direitos e deveres daqueles que o ungem, derivado na relação de troca entre os homens, nos pagamentos para com os deuses, mortos e os elementos da natureza. Tais dinâmicas motivadas pelo “objeto mágico” firmam além de tudo a troca de valores e competências que plasmam simulacros sociais, organizando, regularizando e mantendo uma certa ambiência coletiva concretizada apenas na relação intersubjetiva, como deduz o autor:

A circulação dos bens segue a dos homens, das mulheres e das crianças, dos festins, dos ritos, das cerimônias e das danças, até a das piadas e das injúrias. No fundo ela é a mesma. Se damos as coisas e as retribuímos é porque nos damos e nos retribuímos “respeitos” – dizemos ainda “delicadezas”. Mas também que damos a nós mesmos ao darmos aos outros, e, se damos a nós mesmos, é porque devemos a nós mesmos – nós e o nosso bem – aos outros. (MAUSS, 2008, p.121)

20 Tradução nossa. 21 Tradução nossa.

Retomando a ideia da intercomunicação afetiva, podemos inferir que a Sanrio enuncia em seu slogan uma sintaxe de troca similar à sugerida por Mauss. Ela articula seu próprio ato

Potlatch ao modalizar o sujeito consumidor em “querer” e “saber” pertencer na troca de afetos

promovida na mediação pelo presente. Tais jogos interacionais entre a destinadora Sanrio e o destinatário consumidor reafirmam o simulacro do pertencimento já vislumbrado no logo, porém aqui complementarizado no imaginário de doação afetiva ao outro, no intercâmbio dos valores inerentes ao objeto presenteado com outro sujeito do cenário social. Desse modo, se inferimos que a Sanrio presentifica-se enquanto sentido por sua própria competência em “saber fazer” pertencer, por meio do simulacro afetivo instaurado no presente, a marca ensina ao consumidor como edificar e propagar em caráter tais relações de pertencimento. É por meio da aquisição ou repasse do presente que sugere-se transpor o consumidor ao papel de destinador, podendo assim, em sua recém-conquistada competência à comunicação afetiva, prestar-se também aos jogos de convencimento com um outro, de forma a ser retribuído pela figura do largo sorriso e assim atingir seu desejado estado de pertencimento. O ritual do presentear acaba assim por ungir um elo contratual da circulação condicionada de valores que, pela sugerida reciprocidade afetiva, constrói na visibilidade da marca os modos de presença do sujeito consumidor para si e para com o outro. Não proporia a Sanrio, desse modo, um status de sociabilidade pelo consumo de seus pequenos presentes? Na troca afetiva mediada pela sua comunicação, condicionante dos valores patêmicos articulados em sua manifestação identitária, plasma-se uma dinâmica de assimilação22 ao grupo social motivada pela prática de consumo. Circular os valores da marca no

repasse do “objeto mágico” acaba assim por fornecer fácil acesso à interação do consumidor com a figura do “outro”, necessária competencialização para “poder fazer” pertencer: imaginário que sugere depender da modalização afetiva do outro, de forma a ser retribuído reflexivamente, na construção pelo simulacro do pertencimento da própria imagem de si. Observamos assim, que a função mítica do presente, anteriormente sugerida por Mauss, esvazia-se do seu sentido original – dos festins, dos ritos, das cerimônias que articulam os modos de ser tribais –, rearticulada de forma um tanto quanto efêmera, em prol da manutenção do consumo.

Podemos inferir que as dinâmicas discursiva e narrativa do slogan instauram o sujeito consumidor partindo do ponto de vista de um sujeito motivado no repasse do presente, que recebe reflexivamente valores afetivos de “outro” sujeito e consequentemente se faz pertencer. Se o pequeno presente significa uma nova possibilidade de pertencimento social ao modus vivendi do consumidor, a figura do sorriso traz em si, é claro, a presença idealizada do outro, assim

22 Trabalhamos o termo “assimilação” consonante às dinâmicas identitárias depreendidas por Eric Landowski em Formas

como a busca da patemização de si. Sabemos que o termo “Smile” emerge inicialmente uma ideia de contentamento. Na expressão facial esculpida na curvatura ascendente dos lábios, constrói- se pelo recurso da metonímia um estado de ânimo eufórico. Ora, essa figura positiva do repasse do presente acaba por instaurar a credibilidade da marca na comunicação afetiva e justifica a motivação à compra. Depreendemos que a imagem do sorriso promete afirmar um retorno afetivo do “outro” em reação à aquisição do pequeno presente. Dessa forma, encontramos na discursividade do slogan, do sorriso que emerge a relação com outro, as palavras de Landowski: pois “o que faz desejar é, antes de tudo, o desejo do outro, a perturbação, contagiosa, que um corpo comovido deixa transparecer (LANDOWSKI, 2006, p. 16). Assim, se o outro se posiciona aqui, enquanto traço diferencial, identidade euforizada, patemizada, motivação ao pertencimento, entendemos que o sorriso conjunge afetivamente o solitário sujeito consumidor e este outro, modalizando ambos na regularidade da circulação de valores vislumbrada. O sorriso é aspecto terminativo, assim como a imagem do coração pulsante anteriormente analisada. É estar consoante ao universo de valores da marca, assim como com aqueles que compartilham de um mesmo gosto criado pelo seu consumo.

Nesses moldes discursivos, o consumidor busca “pertencer” ao ser incorporado “afetivamente” ao grupo. Esse jogo enunciativo, já observado, reitera a manifestação da marca enquanto destinadora social na “expressão do sentimento”, trabalhada em todas as suas mediatizações, enunciada sempre de forma a enfatizar uma identidade coletivizada, visivelmente destacada na interlocução coloquial – um “Nós” que apenas se dá partindo de uma retórica fundada no diálogo de “Eu” para “Tu”. Atestamos esse jogo enunciativo na própria voz da Sanrio em seu site institucional:

“Small Gift, Big Smile” é mais do que apenas uma frase cativante; é a base de

tudo que nós somos, e nos orgulhamos de dizer que nós temos criado sorrisos por quarenta anos. Na Sanrio nós acreditamos que o presente é mais que um presente. O presente tem um significado de expressão do nosso sentimento de compaixão pelos outros. Esta filosofia guia todas as atividades da Sanrio, seja quando criamos um kit de papelaria, um parque temático, uma loja ou uma série de televisão. Das butiques Sanrio apresentando a última coleção até pequenos produtos em um shopping, nós convidamos todos nossos amigos e convidados a experienciar a mágica destas quatro simples palavras. (SANRIO, 2010)23

A empresa reafirma, assim, sua proximidade com o consumidor, estreitando a geografia do seu universo de valores às práticas cotidianas da vida. Ela possibilita a apreensão das suas afetividades no consumo do seu diversificado rol de presentes, estampados na visibilidade das personagens. A marca colore com seus pequenos objetos as espacialidades das ruas, das lojas do comércio, das interações da web – mesmo que, entre “ser” e “parecer”, sempre sejam refletidas

23 Dados coletados no site institucional da empresa. Disponível em: <http://www.sanrio.co.jp.>. (Tradução nossa). Acesso

relações escoradas pelo consumo. Inferimos que tais relações, vislumbradas como um imaginário estésico publicizado pela empresa, de fato plasma-se nos jogos da manipulação. Suavemente camuflada em “escapatória”, na introdução de uma carga estética às práticas vividas, a Sanrio alimenta as relações abastecidas pelas práticas do consumo. No discurso efêmero do “presente” que constrói presença e se faz sentir presença de si e do outro, sedimenta-se a dinâmica narrativa que sustenta sua discursividade, abastecida pela aquisição e principalmente na comunicação dos efeitos afetivos implicados em seus produtos.

Conforme vislumbrado, a marca acaba por reiterar no slogan o enunciado afetivo trabalhado na visibilidade do logo. Desse modo, dando continuidade à sistematização dos programas que fundam a narratividade da Sanrio, podemos depreender pressupostos e em complementação à narrativa do logo, a seguinte sequência de programas:

Fig. 14. Sequências de programas narrativos articulados ao programa de base da marca.

COMPETÊNCIA SEMÂNTICA

PN

1

= F

[S

1 (Sanrio)

(S

2 (Consumidor)

O

v

)]

Comunicação do dizer-verdadeiro:

“fazer crer” no simulacro de pertencimento da marca

Objeto de valor modal: crer-verdadeiro na competência de “ saber fazer” pertencer da marca

U

COMPETÊNCIA MODAL

PN

2

= F

[S

1 (Sanrio)

(S

2 (Consumidor)

O

v

)]

Transformar um estado

de isolamento em estado patemizado: “fazer querer” pertencer

Objeto de valor modal: “querer” pertencer por meio da Sanrio

U

PN

3

= F

[S

1 (consumidor)

(S

2 (Sanrio)

O

v

)]

INTERPRETAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DO CONSUMIDOR

Interpretar e sancionar + ou - o pertencer pela marca

Objeto de valor modal: “poder fazer crer/querer” pertencer

U

PN

4

= F

[S

1 (consumidor)

(S

2 (Consumidor)

O

v

)]

PERFORMANCE DO CONSUMIDOR

“Saber/poder fazer” pertencer pela aquisição e/ou repasse

da marca (small gift) Objeto de valor descritivo: pertencimento

U

COMPETÊNCIA SEMÂNTICA

PN

5

= F

[S

1 (consumidor)

(S

2 (o “Outro”)

O

v

)]

Comunicação do dizer-verdadeiro:

“fazer crer” no simulacro de troca afetiva do presente

Objeto de valor modal: crer-verdadeiro na competência do

“poder fazer ” afetivo do presente

U

PN

6

= F

[S

1 (consumidor)

(S

2 ( o ”Outro”)

O

v

)]

COMPETÊNCIA MODAL

Porta-voz da marca: transformar o estado do outro pelo presente

“fazer querer” trocar afeto

Objeto de valor modal: “querer” trocar afeto

U

PN

7

= F

[S

1 (o “Outro”)

(S

2 (consumidor)

O

v

)]

INTERPRETAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DO CONSUMIDOR

Interpretar e sancionar + ou -

a troca afetiva pelo presente Objeto de valor modal: “poder fazer crer/querer” trocar afeto

U

PN

8

= F

[S

1 (o “Outro”)

(S

2 ( o ”Outro”)

O

v

)]

PERFORMANCE DO “OUTRO”

“Poder fazer” a troca afetiva

com o consumidor (big smile) Objeto de valor descritivo: Troca afetiva

Compreendemos que, devido ao caráter de pressuposição e complementarização necessária às articulações dos regimes de visibilidade e de presença da empresa, algumas narrativas instauradas na discursividade do logo, do slogan e de todas reverberações da marca acabam, por sincretização, reiterando o caráter único da dinâmica de convencimento à qual ela se propõe. Se o encadeamento dos programas depende inicialmente da relação e mediação de diferentes atores, tal complexificação se dá de forma a melhor convencer o consumidor dos valores manifestos pela Sanrio, seja na sua figura de destinadora, do “outro” idealizado ou, como veremos posteriormente, na narrativa de amizade da personagem Hello Kitty. Se estar conjunto com o objeto de valor, alcançar o estado efêmero de afeto é motivado por estar “em relação”, não estaria clara na marca a necessidade do consumo contínuo para a manutenção de um status quo de felicidade? Essa axiologia do consumo de troca afetiva norteia interdiscursivamente todas as suas ações ainda em outras ações que complexificam, pela sua discursividade e narratividade, a persuasão e modelização do sujeito consumidor para o efetivo ato da compra. Observamos que a mesma fundamentação discursiva ainda se desdobrará na lapidação de papéis temáticos, programados e manipulados, das personagens aos consumidores, no auxílio à reverberação dos valores em jogo. Tais papéis tornam-se parte integrante na concretização dos modos de sua presença, sendo eles mesmos orquestrados em prol da visibilidade da marca e de si. São estas possíveis interações, de ordem motivada, que movem uma segmentação social em sua construção partitiva para a coletividade. É mais do que estar junto, mas poder se ver em conjunto, adequado e assimilado na hermeticidade simbólica da marca

HELLO KITTY:

o diálogo afetivo do corpo-objeto

Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar?

2.1| DO HÁBITO AO ESTILO DE VIDA: O CONSUMO

No documento MARIA CECÍLIA PALMA MAGALHÃES (páginas 55-63)