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Do hábito ao estilo de vida: o consumo

No documento MARIA CECÍLIA PALMA MAGALHÃES (páginas 63-70)

A marca Sanrio manifesta um discurso afetivo que motiva a compra dos pequenos presentes adquiridos e oferecidos entre sujeitos de forma a estabelecer um vínculo de sociabilidade. Esse cenário do consumo objetal organiza-se consoante à enunciação dos corpos das personagens que dão vida aos produtos. Eles permitem, em sua enunciação, gerar identificação para uma gama consumidora heterogênea. Porém, independente da figura estampada, no corpo da delicada gatinha Hello Kitty ou na face enfezada do pinguim Badtz-Maru, são criados vínculos entre os consumidores na apreensão de uma mesma axiologia de valores, incentivando um gosto, um hábito, uma prática de consumo da referida marca. Assim, se as personagens Sanrio plasmam em seus corpos animalizados o sentido que move esse consumo, este vai além do estatuto convencional dos objetos que estampam. Do mesmo modo que o objeto carece do estatuto corporal das personagens de forma a ganhar destaque, é apenas por meio do objeto que as personagens Sanrio podem instaurar sentido. Surge assim, entre o corpo do objeto e o corpo da personagem, o interesse na análise dessa composição dialética, fundamental à organização narrativa da marca e sua significação.

Diferente da maioria das figuras identitárias que movem a indústria do entretenimento, as personagens Sanrio não são reconhecidas por abrilhantar complexas trajetórias cinematográficas, desbravar cenários épicos nos games ou mesmo dar credibilidade aos contos de fadas. Suas narrativas presentificam-se, desde sempre, por uma estética objetal, ajustando-se, adequando-se conforme as características físicas e matéricas dos bens de consumo. As personagens Sanrio fazem parte, de fato, do cenário cotidiano no qual são comercializadas e consumidas. Partindo dos moldes discursivos da marca, elas alinham-se a modismos, tendências, tradições que abarcam a vida do consumidor e acabam por inspirar os hábitos e as práticas comuns do dia a dia. Desse modo, ao abordarmos esse universo é essencial observarmos que sua discursivização está articulada à função do objeto, “coisa” que acompanha (mesmo que de forma quase dessemantizada e efêmera) a rotina do sujeito destinatário.

Tendo como parâmetro a axiologia afetiva da marca, já depreendida no logo e slogan, focamos nossa análise no próprio bem de consumo: o objeto titulado “presente”. Imerso em

narrativas de forte teor lúdico, é pelo objeto que promove-se a interação entre destinador e destinatário, figurada e motivada pelo diálogo com as mimosas criações Sanrio. Das prateleiras das lojas à fluidez da web presentificam-se uma panóplia de presentes pensados para todos os gostos e finalidades, objetos com várias funções: dos acessórios da moda à decoração da casa ou mesmo objetos outros, de usos diversos no cotidiano: todos caracterizados por promover um gosto de consumo, um colecionismo que faz circular a marca. O recorte abaixo configura uma contextualização desses objetos do universo Sanrio nas práticas diárias da mulher:

Fig. 15. Dos pequenos acessórios à alimentação, da decoração ao colecionismo: a presença da marca nas práticas do cotidiano.

As narrativas e figuratividades das personagens Sanrio, corporeificadas na manufatura, intercruzam-se à forma e funcionalidade objetal. A marca Sanrio comunica-se efetivamente na materialidade do objeto, instaurando um simulacro de trocas afetivas. Neste ponto, é válido questionar, afinal, o que define o estatuto do “objeto”? Partindo de um olhar semiótico, se o

objeto busca “fazer sentido”, assim como tudo que nos rodeia, de fato ele traz em sua imanência uma certa presença que o faz ser apreendido enquanto sujeito Segundo Houaiss (2009, p. 1371)1,

em sua primeira acepção, objeto é uma “coisa material que pode ser percebida pelos sentidos”. Em outras palavras, objeto define algo que, em sua configuração matérica, formal e cromática destina-se a instaurar uma determinada significação na relação de uso com um sujeito-usuário. Esse indivíduo, dotado de competência estésica, interage estesicamente com o sujeito objeto o que faz com que a sua apreensão se processe primordialmente pelo imbricamento entre as dimensões tátil e visual. Na proximidade do objeto não sentiríamos também o seu olor? Uma sonoridade ou mesmo um paladar próprio, de ordem adocicada, que figuram, desse modo, um fazer sinestésico que recobre o consumidor na axiologia de valores afetivos da marca? Seus sentidos são chamados a interagir em consonância, lançando-se primeiramente à visualização, buscando com o olhar um certo reconhecimento que leva, por fim, ao contato das mãos, do estar junto, resguardado possessivamente pelo corpo do consumidor. No manuseio, na prática, o objeto acaba por instaurar sua presença significante no mundo.

Na segunda acepção do termo, objeto é a “coisa mental ou física para a qual converge o pensamento, um sentimento ou uma ação” (ibidem, 2009). Compreende-se que o papel objetal é plasmar um determinado universo de sentido, mesmo que efêmero, é fator determinante da sua narrativa funcional e de uso. Assim, se no corpo do objeto “converge” uma significação, esta apenas se dá consoante à ação vinculada a seu uso ou posse. Restringindo essa ideia à “coisa física”, ao objeto propriamente dito que nos acompanha diariamente, podemos nos aprofundar nesse conceito pelo exemplo trabalhado por Landowski (2009), o objeto-faca. Por seu estatuto objetal, cabe à faca, como sabemos, a ação do corte. Se todo e qualquer sentido apenas pode existir na comunicação entre dois ou mais sujeitos (da produção do sentido que pressupõe a sua apreensão) aqui nesse caso subentende-se a existência de um usuário que busca no objeto-faca seu estatuto cortante. Não é para isso que as facas servem?

Faca ou presente Sanrio, é fato que o objeto, independente de sua categoria, presentifica em sua forma um “todo de sentido”. Como vimos, esse sentido configura-se primordialmente por uma função strictu sensu, pela execução de um encadeamento de programas conforme um “fazer” já delimitado: ações que presentificam, qualificam e definem o objeto para aquele que o utiliza. Landowski enriquece essa abordagem ao indicar que o estatuto do objeto, “qualquer que seja o seu uso decidido, tem vocação para mudar de significação e de função, e de tornar-se outra

1 As acepções empregadas ao lexema “objeto” foram extraídas de HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário

coisa – qualquer coisa a mais – do que ele é” (LANDOWSKI, 2009). Assim, retomando o exemplo da faca, se além do gume transparece no objeto alguma outra característica - uma materialidade que credita à lâmina um ar nobre, um design que a posiciona no espaço de destaque da cozinha, ou mesmo a marca fabril grafada em seu corpo – identificamos em seu estatuto cortante outras significações que se justapõem a essa função determinada.

Ao pensarmos nesses objetos do uso cotidiano pela lógica mercadológica da marca, é visível a manifestação de narrativas outras, além de suas funções usuais. Nos liames da Sanrio, como já salientado, destaca-se a fidelização do consumidor em um hábito de aquisição de produtos que beira a prática do colecionismo. Aqui, a Sanrio busca persuadir à compra por meio da visibilidade do objeto, da estampa lúdica dos personagens, da promessa afetiva do presente. Desse modo, se por um lado os objetos Sanrio prestam-se ao estatuto de “objeto-coisa”, delimitados e regulados nas práticas cotidianas, eles também são, por outro lado, o “objeto-valor” que materializa os afetos da marca tão almejados pelo consumidor. Pelo presente, a Sanrio “faz pertencer” na relação que conjunge dois corpos no ato do presentear. As relações interpessoais passam a ser mediadas pelo corpo objetal que opera intersubjetividades ligadas por um mesmo gosto de consumo. Na convergência entre as suas duas funções, do uso ordinário à conjunção com o seu imaginário, o objeto é, por fim, “objeto-mercadoria”.

Partindo da comercialização dos pequenos presentes, a Sanrio promove estrategicamente volições de pertencimento e de afeto. Tais estratégias porém não se restringem apenas a relação contratual entre consumidor e marca, à aquisição dos valores, mas também possibilitam um “ fazer estar junto”. Analisando de forma criteriosa, observa-se o estabelecimento do enunciado afetivo partindo, inicialmente, de interações programadas entre a marca e o próprio objeto de consumo. Ao discorrermos anteriormente a respeito das possibilidades de significação que ela articula através do objeto, levantamos características desse tipo de interação, estruturada de forma a complementar sua ação em relação ao seu consumidor. Este procedimento redefine o estatuto objetal, conforme sua rearticulação no discurso da marca. Ao utilizar-se do objeto como instrumento de comunicação e de significação, na regularidade intrínseca ao regime de programação, a Sanrio pode melhor articular seu programa de base junto ao consumidor. Dessa forma, podemos afirmar que a Sanrio habilmente operacionaliza o estatuto significante do objeto em prol do convencimento ao consumo. A empresa toma a manufatura por seu modus operandi considerado “dessemantizado” nas práticas de uso diário e o “ressemantiza” na visibilidade que o seu uso propõe enquanto sentido. Assim, o objeto e a própria personagem regulam-se nos moldes do regime de manipulatório da Sanrio. São depreendidos, desse modo, “narrativas programadas”, hierarquizadas pelo “fazer” de base da Sanrio, como na sequência visualizamos:

Fig. 16. Estrutura do programa narrativo de base, a missão da marca.

O programa de base da Sanrio é da ordem da manipulação e permite-nos formular em paralelo a interação regida por um sujeito coletivo - o qual nomearemos “convenção sociocultural” – responsável por delegar ao objeto um certo “fazer sentido” no mundo. Esse sentido é consoante à sua funcionalidade, conforme já nos referimos no exemplo inicial da faca trabalhado por Landowski (2009). Da ordem da regularidade, este programa fundamenta-se exclusivamente pela voz do sujeito que impõe seu fazer de forma absoluta, sem a mediação do objeto de valor, sobre o sujeito que executa pragmaticamente o estipulado, no nosso caso a destinadora “convenção social” que define o “fazer” do objeto de uso cotidiano:

Fig. 17. Papel temático do objeto segundo convenção sociocultural.

Esse mesmo princípio também cabe na interação entre a Sanrio e este mesmo objeto, porém aqui articulado de forma que ele responda não apenas ao seu “fazer” original, mas que execute uma performance organizada nos moldes afetivos do discurso da marca:

Fig. 18. Papel temático do objeto segundo a Sanrio.

Ambos programas que regem o “fazer” objetal acabam, dessa maneira, por sincretizar-se em um único estatuto significante modelado no trilhar da marca. Delegado pela Sanrio, o objeto passa a ter nessa constância um papel importante no percurso de convencimento à compra. Ele responde respectivamente pela visibilidade e corporeificação da personagem e, é claro, pela enunciação dos valores da marca. Por meio da mediação do presente emerge assim um simulacro de “corpo a corpo” entre a personagem e o consumidor.

P. BASE: PERFORMANCE DA MARCA

PN

B

= F

de pertencimento pela marca “Saber-fazer” simulacro

[S

1 (Sanrio)

(S

2 (Sanrio)

O

v conquistar reconhecimento e Objeto de valor descritivo:

)]

fidelização do consumo da marca

U

PAPEL TEMÁTICO

PN

1

= F

(S

1 (convenção sociocultural)

S

2 (Objeto - faca)

)

“fazer-ser ”conforme função

inicialmente delegada ao objeto: faca corta, violino produz som

PAPEL TEMÁTICO

PN

2

= F

(S

1 (Sanrio)

S

2 (Objeto)

)

“fazer-ser ”conforme função

delegada ao objeto por Sanrio: visibilidade do presente

Desse modo, este tipo de contato entre personagem e consumidor desenvolve-se uma espécie de hábito de uso desses presentes que cria reconhecimento e fidelização à marca, atuando como uma nova injeção de sentido no cotidiano. Entendemos que esse sentido incorporado pelo objeto, como Semprini indica, “nasce não mais dos desempenhos observados ou das funções do produto, mas do imaginário que ele coloca no lugar e da experiência que ele torna possível” (2010, p. 47). O semioticista afirma que o objeto permite, pelo seu uso, instaurar a experienciação dos valores da marca na rotina do sujeito-consumidor. Dessa maneira, é factível que o diálogo afetivo da Sanrio possa sustentar-se diacronicamente, sendo alimentado nas práticas de vida e herdado como referência pelas novas gerações. A Sanrio é habilidosa por sutilmente introjetar cargas lúdicas em pequenos produtos que, mesmo de forma efêmera, circundam as práticas do dia a dia do consumidor. Mais do que estetizar um certo modus vivendi contemporâneo, a marca propõe-se a edificar vínculos significantes entre sujeitos pelo corpo do objeto.

Nesse âmbito, devemos destacar que o consumidor, apto a vivenciar o “sentido” instaurado no presente Sanrio, é um sujeito usualmente seguidor das convenções que classificam e definem o estatuto das “coisas”. Ele não necessariamente busca questionar em seu ato de consumo o papel do produto, além dos parâmetros demonstrados na regularidade sociocultural ou na discursividade da marca. Basta a ele saborear a promessa afetiva que o uso e posse objetal fornecem. No caso dos investimentos semânticos operacionalizados pela Sanrio, os objetos anteriormente comuns à rotina do sujeito consumidor acabam por desempenhar funções além daquelas tradicionalmente esperadas: no caso da dona de casa, ela busca trazer uma nova atmosfera (Kawaii?) ao espaço do lar; na da jovem, os acessórios (ou personagens?) que destacam seu corpo; ou mesmo da mãe que presenteia a filha (ou reflexivamente a si mesma?) com pequenos presentes. Esse tipo de interação que conjunge consumidor e marca, independente dos diferentes percursos traçados por cada indivíduo, permite dar vazão a um mesmo modo de “ser” no consumo objetal. Destaca-se uma certa homogeneização, uma uniformização das diferenças que definem a individualidade do sujeito consumidor em prol de uma coletividade marcada por um mesmo hábito, ou, conforme nos indica Landowski:

[…] trata-se de uma necessidade de ordem simbólica. Regulando as condutas individuais ou coletivas enquanto significantes, ou seja, programando-as de um modo propriamente sociossemiótico, esse gênero de concretudes socioculturais – ritos, usos, hábitos, etc… – introduz um coeficiente de previsibilidade nos comportamentos e fornece por isso, também a eles, uma base que permite definir a respeito dos atores sociais os procedimentos interativos eficazes, seus próprios percursos entre manobras fundadas sobre o conhecimento de determinações restritas, de ordem causal, e manipulações estratégicas fazendo apelo direto à competência modal das pessoas-sujeitos. (LANDOWSKI, 2009, p. 36)

É fato que o hábito estipula percursos que transitam entre os procedimentos de programação e os de manipulação, da regularidade da convenção sociocultural aos jogos de manipulação promovidos no cenário mercadológico, ou mesmo no trilhar de outros sujeitos consumidores. O hábito pelo consumo da Sanrio, como vimos, também corresponde a essa narrativa, conforme a sua programação discursiva, assim como na regularidade dos próprios consumidores em sua prática cotidiana. Na programação da marca e da vida modelam-se as estratégias que permitem vender ao consumidor seus valores afetivos, assim como possibilita que o próprio consumidor os tome para si. Nesse caso, o consumidor, pela visibilidade do gosto de consumo dos presentes, apresenta seu estatuto identitário pela troca de afetos que o permite “pertencer” a um círculo de relações sociais.

Mas afinal, esse “fazer pertencer” pelo consumo da marca não é de fato norteador de um “fazer parte”? E “fazer parte” não subentende a existência de um todo, um bloco espesso e uniforme que – como toda presença instaurada no mundo, nos postulados da teoria sociossemiótica – constitui- se na multiplicidade dinâmica (e interativa) das suas unidades mínimas? Nessa concepção, o consumo do objeto é, quando observado à pequena distância, o rito que diferencia, que identifica e subjetiva o sujeito doador. Ao distanciarmos o olhar é também a prática que une, homologa e modela um sujeito ao outro. É a prática que, pela individualidade do consumidor, paradoxalmente aplaina as diferenças existentes. A Sanrio posiciona o objeto como o meio de alcançar um estado de “ser” e de “estar” no mundo, individual e coletivo, o Potlatch que guia e unifica pelas relações fundamentadas no consumo. Tomando como princípio o estatuto desse objeto “mágico”, o qual Mauss (2008) contextualiza na dinâmica de “trocas” que regulam as relações e as identidades no contexto tribal, passamos a tratar o papel do presente como um fazer que, em sua recorrência, estrutura um hábito definidor de “estilo de vida”, conforme define Landowski:

Os “estilos de vida” são, desse ponto de vista, em primeiro lugar, projetos de vida atualizados, e por isso primeiramente escolhidos com base numa intencionalidade, articulada ou difusa, que os funde, e que em troca eles manifestam, ensinando assim aos sujeitos, mediante seu fazer e seu devir, o que eles “são”. (LANDOWSKI, 2002, p. 42)

Se consumir o presente Sanrio instaura um sentido de pertencimento – do ponto de vista individual e coletivo – e funda, desse modo, pelo seu consumo, um estilo de vida, não estaria, então, o sujeito consumidor fadado à interminável aquisição do objeto para poder fazer-se sentido? “Poder pertencer” pelo presente destaca, assim, um prolífero cenário engendrado por modos de visibilidade e de presença da marca, voltados à construção de simulacros identitários do consumidor que consome e utiliza seus produtos. É, dessa forma, necessário nos aprofundarmos em mais um patamar de análise: na discursividade da marca que instaura o objeto enquanto

presente e motivador do consumidor. Partimos da regularidade dos corpos que dão visibilidade ao próprio corpo do objeto, o elemento discursivo que alavanca o Potlach afetivo: as personagens. Mais do que nunca, o simulacro de pertencimento é explorado no diálogo com a fauna Sanrio. Eles prestam-se, nos moldes da programação, a trazer à tona a “face” e a “voz” que promovem o

tête-à-tête, olhos nos olhos, a afetividade.

No documento MARIA CECÍLIA PALMA MAGALHÃES (páginas 63-70)