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CONSTRUINDO TRÂNSITOS EM TRÂNSITOS TEÓRICOS

AS PRÓPRIAS TERRITORIALIDADES

2.6.1. A T EORIA DAS MULTIPLICIDADES DE D ELEUZE & G UATTAR

A filosofia de Deleuze & Guattari é denominada pelos próprios autores de Teoria das Multiplicidades, a qual é vinculada aos propósitos da pós-modernidade, embora os autores nunca tenham afirmado se afiliar a essa perspectiva. Já iniciada em O Anti- Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, de 1972, a teoria se aprofunda nos cinco volumes de Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, de 1980. Considerado um marco na mudança de paradigmas do pensamento filosófico, a teorização dos autores propõe questionar “os pressupostos dominantes até então na filosofia e nas ciências humanas: a crença em uma tendência natural do pensamento para a verdade, o modelo do reconhecimento e a pretensão de um fundamento” (ABREU FILHO, 1998). Embora criticados por muitos teóricos que enxergam nos construtos da Teoria das Multiplicidades uma extrapolação psicológica conceitual, a obra dos autores influenciou fortemente o trabalho de inúmeros pesquisadores em diversos campos do conhecimento, notadamente na Geografia Crítica, mas também na

109 Os trabalhos de Milton Santos, apesar de não problematizarem diretamente construções identitárias,

produzem uma fértil reflexão sobre questões que perpassam essas construções, estando no escopo teórico de trabalhos de pesquisadores das mais diferentes áreas do conhecimento interessados no assunto.

própria filosofia (BUTLER, 2010/1990) e nos Estudos Culturais (BHABHA, 2007/1998), apenas para citar algumas áreas.

Avessos à noção representacionista tradicional, Deleuze & Guattari (2007/1980b) entendem a linguagem como ato, em que os significados nunca precedem o discurso e são sempre vozes de outras vozes. Isso a constitui, inevitavelmente, como um discurso indireto, um ouvir dizer, um revozeamento constante e, portanto, contingente, sempre incompleto e múltiplo: “Se a linguagem parece sempre supor a linguagem, se não se pode fixar um ponto de partida não-linguístico, é porque a linguagem não é estabelecida entre algo visto (ou sentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um dizer” (DELEUZE & GUATTARI, 2007/1980b, p. 13).

Nessa concepção, “a linguagem é um mapa e não um decalque” (DELEUZE & GUATTARI, 2007/1980a, p. 22), ou seja, não é simplesmente a comunicação de um signo como informação, já que, para falar sobre determinado assunto ou contar algo ocorrido, não é necessário ter visto ou vivido aquilo. Postulando que o enunciado, como unidade elementar da linguagem, constitui-se em uma “palavra de ordem”, os autores defendem que, muito mais do que transmitir informações verificáveis por meio de enunciados constativos, a linguagem serve para dar ordens, para obedecer e fazer obedecer: “a informação é apenas o mínimo estritamente necessário para a emissão, transmissão e observação das ordens consideradas como comandos” (DELEUZE & GUATTARI, 2007/1980, p. 12).

Segundo os autores, a palavra de ordem não se refere simplesmente a um tipo de enunciado no imperativo, mas a todo ato de fala, que sempre é performativo. Para mostrar que a palavra de ordem é uma função coextensiva à linguagem, recorrem à Teoria dos Atos de Fala de Austin (1982), marcando como as relações dos enunciados com os atos são imanentes, como os atos são interiores às falas, havendo o que foi chamado por Austin de pressupostos implícitos ou não discursivos. Dessa forma, para Deleuze & Guattari (op. cit., p. 14): “[...] ordenar, interrogar, prometer, afirmar, não é informar um comando, uma dúvida, um compromisso, uma asserção, mas efetuar esses atos específicos imanentes, necessariamente implícitos”. Poderíamos, então, dizer, concordando com Prado (2006, p. 6), que “a palavra de ordem é o performativo de Austin, um dizer que é um fazer”.

A Teoria da Multiplicidades, portanto, ancorada na concepção de que linguagem é ação no mundo, ou seja, ancorada na concepção de performatividade, parte do pressuposto de que a realidade é múltipla, o que a impede de se remeter a um sujeito, a uma unidade ou a uma totalidade, embora as subjetivações, unidades e totalidades sejam “processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades” (DELEUZE & GUATTARI, 2007/1980a, p. 8). Há, assim, a completa negação de toda e qualquer dicotomia: consciente/inconsciente; natureza/história; corpo/alma. Entre esses elementos há, sim, simbiose e aliança.

Conforme destacam Schummer-Smith & Hannam (1994, p. 1-2), o pensamento dos autores se baseia na rejeição das estruturas simples, no questionamento das racionalidades, na priorização do desejo na interpretação do mundo, no reconhecimento da importância do devir em relação ao ser, no que é negociável, contingente, incompleto. Por isso mesmo, Deleuze & Guattari definem o modelo de realização do pensamento que propõem como rizomático, em contraposição a arborescente, já que “os conceitos não estão hierarquizados e não partem de um ponto central, de um centro de poder ou de referência aos quais os outros conceitos devem se remeter” (HAESBAERT, 2004, p. 113).

O modelo arborescente é estruturado pela árvore-raiz e consiste em uma forma binária e verticalizada de articular o pensamento e a linguagem. Ele opera a partir de uma origem (uma genealogia), remetendo a centros de poder e à hierarquização. São lógicas binárias e relações biunívocas que dominaram o pensamento ocidental, organizando o funcionamento das instituições e aparelhos de poder (como o Estado, a escola e a fábrica) e, segundo a análise dos autores à época, início da década de 1980, “dominam ainda a psicanálise [...], a linguística e o estruturalismo, e até a informática” (DELEUZE & GUATTARI, 2007/1980a, p. 13). A arborescência é um decalque, uma repetição do mesmo.

O pensamento rizomático, ao contrário, é horizontal, não se vinculando estritamente a hierarquias ou a uma origem. Não há um começo e um fim, há fluxo de conexões: “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo” (DELEUZE & GUATTARI, 2007/1980a, p. 23). Por isso, também, é referido como rizoma-canal que funciona por meio de encontros e agenciamentos, formando um mapa;

um mapa de multiplicidades. Ao contrário do decalque, que “volta sempre ao mesmo”, o mapa tem “inúmeras entradas” (DELEUZE & GUATTARI, 2007/1980a, p. 22).

Comparando os dois modelos, Deleuze & Guattari (2007/1980a, p. 37) concluem:

um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e...e...e...” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. [grifo meu]

Essas duas formas de conceber as realidades não são dicotômicas, pois uma transpassa a outra. Conforme elucida Haesbaert (2004, p. 114), “isso significa dizer que mesmo no rizoma podem existir segmentos que vão endurecer e tornar-se árvore, ao mesmo tempo em que na árvore pode se dar a constituição de um rizoma”. Cabe aqui lembrar que esta é uma posição que dialoga com a assumida por Santos (SANTOS, 2008/2000) e Blommaert (2010), quando reconhecem as verticalidades e horizontalidades como níveis interpolados dos espaços sociais. Haesbaert ainda explica que o par rizoma-árvore também se relaciona com outro par importante na obra dos autores: as linhas de segmentaridade rígida ou molar e as linhas de segmentaridade flexível ou molecular. Para Deleuze & Guattari, a sociedade e o indivíduo são formados simultaneamente por essas linhas, sendo que uma sempre vai pressupor a outra. Sendo a segmentaridade molar as verticalidades ou arborescências, vincula-se aos agenciamentos concernentes à macropolítica das instituições de poder, enquanto a segmentaridade molecular diz respeito aos agenciamentos rizomáticos das horizontalidades, os quais se situam no vivido das micropolíticas. Ou seja, “[...] tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica” (DELEUZE & GUATTARI, 2007/1980c, p. 90)110.

110 Tal preceito está presente nas postulações de Fabrício em Moita Lopes (2002), já explicitadas nesta tese.

Recorrendo a Foucault (1977; 1979) e Goffman (1974; 1975/1959; 2001), os autores também afirmam a importância de se analisar a realidade considerando-se tanto as questões implicadas no nível macro das instituições oficializadas, quanto no nível micro das relações interacionais.

Sendo assim, construímos as realidades ou as multiplicidades por meio dos agenciamentos111

, ou seja, as conexões que desenhamos nas construções de todos os sentidos e da própria vida. Essas conexões se dão na conjunção de dois componentes dos agenciamentos - os agenciamentos coletivos de enunciação e os agenciamentos maquínicos de corpos (ou de desejo), os quais se interpenetram, num movimento recíproco, intervindo um no outro.

Haesbaert (2004, p. 124-125) assim resume cada um desses componentes:

os agenciamentos maquínicos de corpos são as máquinas sociais, as relações entre os corpos humanos, corpos animais, corpos cósmicos. Os agenciamentos maquínicos de corpos dizem respeito a um estado de mistura e relações entre os corpos em uma sociedade. [...] Os agenciamentos coletivos de enunciação, por outro lado, remetem aos enunciados, a um “regime de signos, a uma máquina de expressão cujas variáveis determinam o uso dos elementos da língua” (1995b, p. 32). Os agenciamentos coletivos de enunciação não dizem respeito a um sujeito, pois sua produção só pode se efetivar no próprio sócius, já que dizem respeito a um regime de signos compartilhados, à linguagem, a um estado de palavras e símbolos.

Esses agenciamentos – que tanto podem ser conexões mais relacionadas às segmentaridades molares, verticais ou arborescentes, quanto às segmentaridades moleculares, horizontais ou rizomáticas – são dados pelo desejo que, para os autores, não se encerra na dicotomia sujeito-objeto; aquele que deseja e aquilo que é desejado. Fortemente marcado pelo político, o desejo é uma construção que se dá de maneira maquínica, produtiva, que busca articulações e que, portanto, é agenciada. Como explica Haesbaert (2004, p. 118), “nunca desejamos uma coisa só, desejamos sempre um conjunto de coisas. Por exemplo, uma mulher não deseja apenas um vestido, mas deseja também pessoas olhando para ela, deseja uma festa onde possa usar o vestido, deseja uma cor, uma textura [...]”.

Nessa perspectiva, o desejo (mais do que o poder, na visão foucaultiana) cria territórios, pois ele compreende uma série de agenciamentos. Então, território é agenciamento (agência) ou “o resultado do devir expressivo” (GENOSKO, 2002, p. 50,

111 Nas palavras de Guattari & Rolnik (1986, p. 317), agenciamento é uma “noção mais ampla do que a de

estrutura, sistema, forma etc. Um agenciamento comporta componentes heterogêneos, tanto de ordem biológica quanto social, maquínica, gnosiológica, imaginária”.

apud HAESBAERT, 2004, p. 120). Como tudo pode ser agenciado, o conceito de território, na concepção de Deleuze & Guattari, é extremamente amplo, abarcando todas as dimensões: território etológico ou animal, território psicológico ou subjetivo, território sociológico, território geográfico. Nas palavras de Guattari & Rolnik (1986, p. 323),

A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia [e a Geografia, deveríamos acrescentar] [...]. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido quanto a um sistema percebido no seio da (sic) qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma.

A territorialidade é, portanto, característica central dos agenciamentos. Ou seja, os agenciamentos sempre criam territórios. Desde que haja a conjunção entre os agenciamentos maquínicos de corpos e coletivos de enunciação, é possível territorializar em qualquer coisa, em movimentos que percorrem desde o âmbito mais simbólico ao mais material. Haesbaert (2004, p. 126) assim exemplifica essa dinâmica:

o território pode ser construído em um livro a partir do agenciamento maquínico das técnicas, dos corpos da natureza (as árvores), do corpo do autor e das multiplicidades que o atravessam; e do agenciamento coletivo de enunciação, nesse caso, um sistema sintático e semântico, por exemplo. Cria-se um território dos Krenak, onde agenciamentos maquínicos de corpos estão fixados diretamente na Terra, onde a circulação dos fluxos desejantes se inscreve diretamente na Terra. Criam-se agenciamentos coletivos de enunciação para recortar o Sol e a Lua, por exemplo, e fixar- lhes atributos.

Além dos agenciamentos maquínicos de corpos e dos agenciamentos coletivos de enunciação, dois outros componentes são fundamentais na composição dos territórios: a desterritorialização e a reterritorialização. Se há território, há, necessariamente, um movimento indissociável e concomitante de desterritorialização e reterritorialização, já que o movimento de criação se dá nas multiplicidades. Ou seja, a criação implica sempre uma destruição. É necessário desterritorializar para reterritorializar. Conforme sintetiza Haesbaert (2004, p. 127), para Deleuze & Guattari,

os territórios sempre comportam dentro de si vetores de desterritorialização e reterritorialização. Muito mais do que uma coisa ou

objeto, o território é um ato, uma ação, uma rel-ação, um movimento (de territorialização e desterritorialização), um ritmo, um movimento que se repete e sobre o qual se exerce um controle. [grifo meu]

Dada a importância do “movimento”, além das linhas de segmentaridade molar e de segmentaridade molecular, outra linha é fundamental para compreender a criação de territórios e territorialidades: as linhas de fuga. A desterritorialização se dá pelo movimento de saída, pela linha de fuga, pela destruição, que vai, necessariamente, implicar em outro movimento, o de reterritorialização, ou seja, de criação. É preciso considerar que tal reterritorialização não significa voltar a uma territorialidade primitiva, pois “ela implica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova ao outro que também perdeu a sua” (DELEUZE & GUATTARI, 2007/1980c, p. 40-41).

Há ainda que compreender que o próprio movimento de des(re)territorialização é múltiplo, podendo haver também uma desterritorialização na imobilidade, assim como uma territorialização na mobilidade. Os campos de concentração nazistas, por exemplo, são casos de uma desterritorialização in situ ou na imobilidade, enquanto os nômades, mesmo sem um território fixo, territorializam ao longo de seus trajetos.

Assumo, neste trabalho, haver forte diálogo entre a Teoria das Multiplicidades de Deleuze & Guattari e a Teoria da Performatividade de Butler, as quais também estão no centro de teorizações de outros autores aqui em diálogo.

Nesse sentido, pode-se dizer que as horizontalidades e os agenciamentos rizomáticos de Deleuze & Guattari podem ser aproximados às horizontalidades de Milton Santos e às performatividades de Butler. As verticalidades ou arborescências de Deleuze & Guattari podem ser aproximadas às verticalidades de Milton Santos e Blommaert e às substantivações/normatizações de Butler. É no espaço vivido, nas vivências das horizontalidades que podemos buscar linhas de fuga para desestabilizar sentidos que se estilizam pela repetição. Mas é também no próprio interior das repetições que podemos nos colocar nos entre-lugares, no meio e não nos polos, buscando conexões rizomáticas – ou performances dissonantes, nos dizeres de Butler – que façam emergir novos sentidos que nos desterritorializem de sedimentações para que possamos reterritorializar de outras

formas. Esse é o movimento da performatividade. Esse é o movimento da territorialização.

Falar em territorialidades, territorializações e multiterritorialidades implica, também, falar em territórios. Na seção 3.2., explicitei o conceito de espaço ao qual se vincula este trabalho. Passo, agora, a dissertar sobre o conceito de território para que, ao final, possa detalhar a aproximação entre as concepções de territorialidade e de performance/performatividades.

Alinho-me a um conceito amplo de território, que dialoga com os preceitos da Teoria das Multiplicidades de Deleuze & Guattari, mas também com preceitos de autores da Geografia Crítica, aos quais recorro a seguir.