• Nenhum resultado encontrado

CONSTRUINDO TRÂNSITOS EM TRÂNSITOS TEÓRICOS

2.1. L INGUAGEM E REALIDADE : REPRESENTACIONISMO X SOCIOCONSTRUCIONISMO

É possível afirmar que o traço mais particular da Modernidade seja justamente sua maneira de conceber a subjetividade como algo homogêneo, fora das práticas discursivas situadas e dos jogos de poder (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004/2002). Pautado em uma lógica representacional de significação em que se busca a correspondência entre objeto e designação, o essencialismo que rege essa tradição, ao reconhecer uma suposta precedência da materialidade do real e dos fatos, estabelece uma radical cisão entre linguagem e realidade. A única função da linguagem assim essencializada seria produzir sentidos estáveis por meio da simples representação do real, o que garantiria o

reconhecimento do que se estabelece como “mesmo”, como “normal”. Essa perspectiva epistemológica, alicerçada fortemente em totalizações, tende a criar descrições falaciosas que apenas consideram a unilateralidade das relações, aprisionando os processos subjetivos em dicotomias, e podendo promover relações e construções identitárias fortemente vinculadas a estereótipos, preconceitos, desigualdades e exclusões.

No entanto, conforme lembram Fabrício & Moita Lopes (2004/2002, p. 15), a filosofia da linguagem ordinária de Wittgenstein (1996/1953), ao propor uma mudança na compreensão do modelo objeto-designação, influenciou sobremaneira o pensamento linguístico contemporâneo. Na concepção do autor, sentidos estáveis indicam apenas “efeitos de estabilidade”, os quais não precedem o jogo discursivo, sendo sempre construídos momento a momento em nossas práticas discursivas. Nessa perspectiva socioconstrucionista, que opera por meio de uma visão anti-essencialista das relações entre linguagem e sociedade, a noção de identidade entre entidades supostamente iguais (coisas ou pessoas) é constitutiva de um processo de aprendizagem e de reificação de regras que faz parte de nossa socialização, ou seja, da linguagem em uso.

Sendo a identidade uma prática social, os efeitos de estabilização dos sentidos se produzem no atravessamento das relações de poder e das políticas que permeiam essas relações sempre situadas. Aquilo que “é”, ou seja, o significado que se dá a algo, existe apenas no nunca neutro confronto discursivo com o(s) Outro(s), sendo necessária a concordância desse Outro para que esses sentidos sejam estabilizados. Nas palavras de Borba (2011, p. 186), “ao nos movimentarmos em diversos discursos, produzimos o efeito de estabilidade no momento em que nos colocarmos no palco interacional sobre o qual a audiência decide o que conta como sendo nós mesmos”.

Dessa forma, apesar de falar em identidade, é importante apontar que Wittgenstein a concebe como um construto operacional sempre subordinado “a regras de uso que aprendemos a reificar, [o que possibilita] a criação de sentido entre as pessoas” (FABRÍCIO & MOITA LOPES, op. cit., p. 15). Como o efeito de estabilidade não é condição inerente às ideias, mas parte do movimento discursivo no qual estamos imersos, é preciso reconhecer que “a identidade” ou “o ser” ou “as identidades sociais” (gênero, raça, sexualidade, classe social etc.) são parte desse construto e a homogeneidade que o define é

apenas aparente, pois, “como seres sociais, estamos sempre em movimento no processo de vir a ser socialmente, não existindo, por conseguinte, a essência que represente61

o cerne de quem somos” (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004/2002, p. 16).

Esse contínuo devir ou processo de “vir a ser” por meio dos discursos do Eu e do Outro, por conseguinte, ratifica a natureza discursiva e agentiva das identidades sociais. Nesse sentido, a filosofia desenvolvida por Austin (1962), que concebe a linguagem como ação no mundo, é um dos pilares dos estudos que têm um viés socioconstrucionista, tendo influenciado pesquisadores das mais diferentes áreas do conhecimento: Deleuze & Guatarri (2007/1980a; 2007/1980b), Foucault (1977, 1979), Butler (2010/1990), na Filosofia; Erving Goffman (1974, 1981), nas Ciências Sociais; Langenhove & Harré (1999), Davies & Harré (1999), na Psicologia Construcionista; Wortham (2001), na Antropologia Linguística; Bhabha (2007/1998), Hall (2006/1992), nos Estudos Culturais; Haesbaert (2004, 2005, 2011), na Geografia Crítica; Moita Lopes (2003, 2006c, 2009a), Fabrício & Moita Lopes (2004/2002, 2010), na Linguística Aplicada, somente para citar alguns.

Fabrício & Moita Lopes (2004/2002) lembram que, nessa perspectiva, dois desses pesquisadores, Michel Foucault e Erving Goffman, têm tido grande influência nas Ciências Sociais e Humanas, apresentando pontos de vista complementares ao abordarem, respectivamente, os níveis macro e micro envolvidos na interação.

61

Dada a ampla utilização dos termos “representacionismo” e “representações” em diferentes correntes teóricas, é preciso que se faça aqui uma importante ressalva. O alvo para o qual direciono minha crítica diz respeito a lógicas representacionais atreladas a tradições teóricas positivistas que, a partir de Wittgenstein (1953/1996), foram amplamente problematizadas pelas Ciências Sociais, inclusive por afiliados a vertentes socioconstrucionistas da linguagem, como os teóricos dos Estudos Culturais (cf. HALL, 1997; BHABHA, 2007/1998; SAID, 2003). Stuart Hall, por exemplo, em seu livro “Representation” (1977), apoia-se em Foucault para esclarecer que há três enfoques teóricos sob os quais o conceito de representação pode ser compreendido: reflexivo, intencional e construtivista. Na concepção reflexiva, como inicialmente indicado por Wittgenstein, “o sentido é pensado como se repousasse no objeto, na pessoa, na ideia ou no evento do mundo real, e a linguagem funcionaria como um espelho que reflete o verdadeiro sentido tal como ele existe no mundo” (HALL, op.cit, p. 24). Na abordagem intencional argumenta-se o oposto. Acredita-se que o sentido é imposto através da linguagem pelo próprio falante/autor, ou seja, “as palavras significam o que o autor quer que elas signifiquem” (HALL, op. cit., p. 25). O enfoque construtivista, por sua vez, sustentando-se no reconhecimento do caráter público e social da linguagem, advoga que “nem as coisas em si mesmas, nem os usuários individuais da linguagem podem fixar o sentido das línguas. Coisas não significam: nós

construímos o sentido, usando sistemas representacionais – conceitos e signos” (HALL, op. cit., p. 25).

Considero importante trazer tal distinção, pois não deixo de compreender, assim como Hall, que as representações, entendidas sob a ótica socioconstrucionista, são parte do processo de produção do significado através da linguagem. Tomo, portanto, o processo de produção de representações como produção do significado através da linguagem, sendo “nós – na sociedade, nas culturas humanas – que fazemos as coisas significarem, que significamos” (HALL, op.cit, p. 61).

A argumentação de Foucault (1977; 1979) interessa, pois problematiza o quanto as práticas discursivas que constituem corpos, valores, atitudes, crenças e subjetividades são atravessadas por relações de poder e regras socioculturalmente construídas, constituindo o que seriam as ordens do discurso. São essas ordens que estabelecem as normas de produção e interação, as quais, referendando alguns discursos e rejeitando outros, criam padrões de estabilidade, limitando nossas possibilidades de ser em contextos específicos – embora haja sempre a possibilidade de transgressão e mudanças, dado que essa estabilidade é apenas operacional.

Igualmente relevante é a abordagem de Irving Goffman (1974; 1975/1959; 2001). Interessado no processo interacional de construção de sentidos, o autor sublinha a função agentiva da linguagem ao focalizar, em seus estudos, a comunicação cotidiana. Conforme resumem Fabrício & Moita Lopes (2004/2002, p. 17), para Goffman (1975/1959),

quando estamos na presença imediata dos outros, engajamo-nos em um processo de construção discursiva da auto-imagem e de auto-apresentação no espaço público, lançando mão de múltiplos canais semióticos (sinais verbais, não verbais e paralinguísticos). Esse processo é monitorado e interpretado por todos os participantes envolvidos na interação, adquirindo contornos dramatúrgicos (GOFFMAN, 1974), pois é uma performance de si e para uma plateia. [grifo meu]

Assim, o uso da linguagem, efetivando-se no trânsito entre essas duas instâncias, envolve tanto significados perpassados por discursos já cristalizados e normatizados macro-sócio-historicamente, quanto significados que, nas práticas discursivas, são redescritos nas localidades ou territorialidades de seus agentes, estando sempre no devir, no fazer ou nas performances.

Conforme aponta Moita Lopes (2009a), os estudos sobre performances têm sido vistos como uma alternativa às teorizações demarcadas por noções essencialistas das identidades sociais justamente por ressaltarem a natureza agentiva da linguagem e por dessencializarem a “unicidade do ser”. Na teoria de performance/performatividade que interessa para este trabalho, a conjunção entre os preceitos de Foucault e Goffman é fundamental, pois, as identidades, sempre múltiplas, constituem-se no atravessamento das

questões implicadas tanto no nível macro das instituições oficializadas, quanto no nível micro das relações interacionais – ou nas verticalidades e horizontalidades (SANTOS, 2008/2000; BLOMMAERT, 2010). Como elucidam Fabrício & Moita Lopes (2004/2002, p. 18), “essa aliança pode ser frutífera na abordagem da questão identitária, se entendermos que, entre outras coisas, torna possível a sustentação ou a transformação das identidades sociais”.

Ou seja, é na ação dos indivíduos que se estabilizam sentidos ou, pelo contrário, se busca romper o fluxo das repetições estabilizadoras. É na performatividade, então, que emergem as possibilidades de desestabilizar o mesmo, interrogando os binarismos pautados pelos sentidos excludentes (ou isso ou aquilo), criando-se novas alternativas em espaços de transgressão ou no Terceiro Espaço, segundo Bhabha (2007/1998), em que o reconhecimento do múltiplo e do híbrido (e isso e aquilo) como inerente ao identitário é, antes de tudo, uma questão política e ética: na repetição dos sentidos excludentes, definimos quem pode se (re)territorializar e de que maneira.

Dada a importância das questões de espacialidade e performatividade para a linguagem e para a compreensão de como os estudantes congoleses em foco neste trabalho concebem suas territorializações, passo, nas próximas subseções, a focalizar mais detalhadamente esses conceitos.

2.2. LINGUAGEM NO ESPAÇO DAS MULTIPLICIDADES,