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CONSTRUINDO TRÂNSITOS EM TRÂNSITOS TEÓRICOS

2.3. L INGUAGEM COMO PERFORMANCES E PERFORMATIVIDADES

Os preceitos centrais do socioconstrucionismo – a linguagem é ação no mundo e os sentidos são (re)criados no discurso com o Outro – são também centrais na teorização acerca de performances e performatividades.

Neste trabalho, tomo as noções de performance e performatividades conforme compreendidas por Butler (2010/1990), cuja obra seminal, Problemas de Gênero, tem orientado o trabalho de pesquisadores de diversas áreas (PENNYCOOK, 2006, 2007, 2010; KULLICK, 2003; LOXLEY, 2007; MOITA LOPES, 2009a; MOITA LOPES & BASTOS, 2010; MOITA LOPES & FABRÍCIO, 2007; THREADGOLD, 2010; COSTA DE PAULA, 2010, BORBA, 2011, apenas para citar alguns) interessados em questões relacionadas a construções identitárias.

Afiliando-se a uma compreensão teórica não-essencialista das identidades sociais, a autora problematiza as construções das identidades de gênero/sexualidades, compreendendo-as como uma performance. Apoiada na Teoria dos Atos de fala de Austin (1962), que preconiza a natureza performativa da linguagem – ou seja, “linguagem como ação que, em sua enunciação, muda o mundo, fazendo emergir um novo estado social” (KULLICK, 2003, p. 139) –, um dos principais focos do trabalho de Butler está na “compreensão do relacionamento entre fala e ato, ato e identidade, e especialmente em entender como as conexões entre certos atos e certas formas de fala, habitualmente realizados juntos, constituem-se em uma performance (uma incorporação) compulsória de heterossexualidade” (THREADGOLD, 2005, p. 265)66

.

A autora defende que os gêneros são performativos, porque são feitos na ação discursiva, e não dados a priori, ou seja, “não somos o que somos por causa de algum ser interior, mas por causa do que fazemos” (PENNYCOOK, 2007, p. 70)67. Dessa maneira, a

Teoria da Performatividade do Gênero e, por conseguinte, o conceito de performatividade

66

No original: “[…] one of the central concerns was to understand the relationship between speech and act, act and identity, and specifically to understand how the connections between certain acts and certain forms of speech, habitually enacted together, come to constitute a compulsory performance (an embodiment) of heterosexuality”.

67

desenvolvido por Butler têm implicações importantes, pois abrem caminho para pensar o uso da linguagem e das identidades a partir de um posicionamento epistemológico – notadamente os estudos Queer – que advoga uma posição desconstrutivista (de desnaturalização) em relação aos padrões de normatividade em geral, com base no entendimento de que (i) todas as categorias sociais são fluidas e abertas (gênero, sexualidade, classe social, raça, etnia, idade, nação/nacionalidade, cultura, língua etc.) e (ii) a matriz heteronormativa está imbricada em outras matrizes normativas, como racismo, sexismo, misoginia e fundamentalismos em geral68.

Isso posto, para que as proposições de Butler possam ser compreendidas com mais clareza, é preciso traçar a distinção entre performance e performatividade, dado que muitos críticos, numa leitura equivocada da Teoria de Performatividade, tendem a equalizar os dois construtos, atribuindo-lhes um sentido mais tradicional de atuação. Conforme adverte Kullick (2003), a performance é, sim, uma dimensão da performatividade, mas não diferenciar os dois construtos é correr o risco de banalizar a noção de construções identitárias (ou ainda de performances discursivo-identitárias, como assumo neste trabalho), considerando, por exemplo, ser possível mudar de gênero, ou de qualquer outra “identidade”, assim como se troca de roupa.

A performance é a ação e é aquilo que é apresentado ou encenado (spectacle), mas é principalmente a interação suscitada nesse evento. Dessa forma, compreender a

68 Autores como Sullivan (2003) e Barnard (2004) advogam a teorização dos estudos Queer como Queer

Race, marcando a diferença epistemológica de se reconhecer que não é possível teorizar de maneira

responsável ou politicamente implicada sobre qualquer categoria sem que ela seja considerada no atravessamento de outras categorias (raça, classe social, faixa etária, religião etc.). Os estudos Queer Race objetivam delinear e teorizar a inscrição racial do queer na teoria, na política e na identidade queer, de modo a desnaturalizar o próprio queer como uma “categoria” única, em que a construção da sexualidade é tratada separadamente da questão de raça e de outras questões. A consequência de não se considerar o entrecruzamento de sexualidade e raça e de outras categorias é a ainda forte tendência de se identificar, por exemplo, o homossexual simplesmente como o homossexual branco e de classe média. O estudos Queer Race estão, assim, comprometidos com os pressupostos de que (i) “sexualidade é sempre marcada racialmente, assim como toda marca racial é sempre impregnada com uma sexualidade específica (gênero, classe e outras inscrições classificatórias são igualmente determinadas e determinantes)”; (ii) “raça e sexualidade [não são] duas trajetórias separadas de identidade que se cruzam e se sobrepõem em posições subjetivas particulares, mas sistemas de significado e compreensão que formativamente e inerentemente definem um ao outro” (BARNARD, 2004, p. 2). No original: “sexuality is always racially marked, as every racial marking is always imbued with a specific sexuality (gender, class and other classificatory inscriptions are equally determined and determining) […] I do not want write race and sexuality as two separate trajectories of identity that cross and overlay in particular subject positions, but instead as systems of meaning that formatively and inherently define each other”.

performance “não é só uma questão de analisar as implicações da atuação ao vivo (performing live), mas também considerar os modos como linguagem e identidade são produzidas na performance” (PENNYCOOK, 2007, p. 58)69. Invocando Butler, Kullick (2003, p. 139) explica que “performance é algo que o sujeito faz; performatividade, por outro lado, é o processo por meio do qual o sujeito emerge (Butler, 1993, p. 2, 7 e 95)”. O autor ainda sublinha que, na abordagem performativa, não interessa ver a linguagem em relação à identidade, mesmo porque isso seria tomá-la de maneira essencializada, mas em relação às “operações por meio das quais os sujeitos são constituídos” (KULLICK, 2003, p. 149).

A noção de performatividade no trabalho de Butler, um conceito linguístico e filosófico, embora seja mediado pela Teoria dos Atos de Fala de Austin, encontra também ressonância em Derrida, Althusser, Foucault e Bourdieu. A seguir, então, problematizo alguns dos principais conceitos que estão na interface das teorizações butlerianas.

Há uma série de formas de pensar sobre a performance da linguagem, mas, neste trabalho, seguindo os preceitos butlerianos, ela é compreendida como “um uso da linguagem social e culturalmente incorporado e não como um produto não regulado da competência” (PENNYCOOK, 2007, p. 63). A Linguística, nas clássicas distinções langue/parole proposta por Saussure e de competência/performance descrita por Chomsky, desenvolveu longa tradição em estudos que tomavam a linguagem como uma produção do interior (competência) para o exterior (performance) e a performance, portanto, como um mero “subproduto da competência” (PENNYCOOK, 2007, p. 63) não regulado pelos contextos sócio-históricos, uma vez que o exterior era desconsiderado.

Esses pressupostos, inclusive, influenciaram fortemente o pensamento sobre o ensino de línguas (e ainda influenciam), que passou a seguir o argumento de que a competência dirigia a produção, sendo necessário, portanto, munir os estudantes com uma competência comunicativa para que pudessem chegar a se comunicar. Contudo, trabalhos como os de Halliday (1978) preocuparam-se em mostrar que essa dicotomia era puramente idealizada e que o que constrói a performance “não é a competência trazida por cada

69 No original: “[…] is not only a question of appreciation the implications of ‘performing live’ but also of

indivíduo, mas uma grande variedade de forças sociais, culturais e discursivas” (PENNYCOOK, op. cit., p. 60). Assim, estudos posteriores, como os de Hooper (1998), por exemplo, ganharam projeção ao incorporarem o pressuposto de agência para afirmar que aprender uma língua não é aprender um sistema gramatical, e a gramática não é anterior à linguagem, mas justamente emerge de seu uso. Não sendo “um objeto circunscrito, mas uma confederação de experiências sociais disponíveis e sobrepostas” (HOPPER, 1998, p. 171, apud PENNYCOOK, 2007, p. 60), a língua não poderia ser vista como “o ponto de chegada da competência, mas [sim como] o produto da performance” (PENNYCOOK, 2007, p. 60). Sob esse ponto de vista, então, língua teria de ser compreendida como performance, pois seria um processo contínuo de (re)construção em seu fazer ou agir com o outro.

A força da ação está também na base da noção de performance presente na filosofia da Teoria dos Atos de Fala de Austin, cuja base são doze conferências proferidas pelo acadêmico na Universidade de Harvard, EUA, em 1955, e publicadas postumamente, em 1962, no livro How to do things with words. Afastando-se da visão descritiva da linguagem presente na filosofia até então, Austin passou a defender que dizer seria, sobretudo, uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante. Preconizando a importância de se considerar como criamos sentido ao fazermos coisas com a língua/linguagem, o autor questionou a dicotomia competência/performance e, nessa nova relação, o Outro e seu corpo, bem como o contexto que os envolve, passaram a ser considerados como parte do processo de construção dos sentidos.

Para explicar essa natureza performativa da linguagem, Austin inicialmente defendeu a existência de dois tipos de enunciação: os constativos (o falante declara ou descreve alguma coisa) e os performativos (o falante, ao enunciar, faz coisas). No entanto, ao final de suas considerações, o autor abandonou tal premissa, concluindo que mesmo os enunciados declarativos são também performativos porque, no momento da enunciação, realizam algum tipo de ação. Sendo assim, “o enunciado não é estabelecido para descrever

uma situação, um evento ou uma ação; ele é um evento ou uma ação” (LOXLEY, 2007, p. 8)70

.

A partir disso, Austin retomou sua análise em novas bases, identificando três atos simultâneos que se realizariam em cada enunciado: o locucionário (realização do ato de dizer algo), o ilocucionário (realização de um ato ao dizer algo) e o perlocucionário (realização de um efeito sobre o interlocutor). Dessa maneira, ao se enunciar, por exemplo, a frase Eu prometo que você não ficará sozinho, três atos seriam realizados ao mesmo tempo: (i) o ato locucionário de enunciar cada elemento linguístico da frase; (ii) o ato ilocucionário de prometer – ato que se realiza na linguagem e (iii) o ato perlocucionário que se realiza como efeito ou consequência da enunciação (por exemplo, um efeito de agrado, de desagrado, de ameaça etc.) – quer dizer, ato que não se realiza na linguagem, mas pela linguagem.

Entretanto, proferir um enunciado performativo não garantiria a sua realização. Para ser bem sucedido, ou seja, para que a ação por ele designada fosse de fato realizada, seria imprescindível que as circunstâncias fossem adequadas, obedecendo a certas “condições de felicidade”: o enunciado adequado, proferido pela pessoa adequada (com autoridade para tal), no lugar e tempo adequados. Um performativo pronunciado em circunstâncias inadequadas fracassaria, porque, mesmo não sendo falso, seria nulo, sem efeito. Assim, por exemplo, se um aluno e não o professor dissesse Comecemos nossa aula, o performativo não se realizaria, isto é, a aula não começaria, porque o aluno não teria poder ou autoridade para tal. O enunciado, portanto, seria “infeliz”, nulo, sem efeito.

Ao determinar as condições sob as quais os performativos poderiam ou não ser “felizes”, como, por exemplo, serem pronunciados sinceramente pela pessoa certa, nas condições certas, a teoria de Austin deixou entrever uma noção de intencionalidade que implicaria uma ideia voluntarista de performance realizada por um sujeito intencional consciente da totalidade do seu ato de fala, em que nada lhe escaparia, havendo, portanto, uma unidade de sentido em sua realização. Além disso, na descrição dessas condições, Austin fez uma série de exclusões – nomeadas por ele de etiolações (etiolations) – as quais

70 No original: “the utterance is not setting out to describe a situation, an event or an action: it is an event or

envolveriam usos da linguagem que não poderiam ser considerados “sérios” ou “reais”, mas sim anômalos e excepcionais, tais como encenações, piadas, brincadeiras, jogos etc.

Essas asserções de sua teoria sofreram fortes críticas, como as de Derrida (1982), que, formulando os conceitos de citação (repetição) e iteração (constante possibilidade de diferença e mudança), apontou o problema de afiliação a essa noção de intencionalidade, já que o “eu” não é um sujeito autônomo que faz escolhas e causa a ação, porque é constituído na própria ação, intersubjetivamente, em diálogo com as vozes locais e as vozes históricas que são parte de sua experiência sociocultural. Ou seja, não há uma lista de intenções (sinceridade, promessa, briga, insulto etc.) ou convenções inertes esperando para serem performadas/animadas. O que seria visto como “intenções”, na verdade, relaciona-se a expectativas socioculturais, fazendo parte dos processos de atribuição de sentidos durante nossas múltiplas performances; aprendemos nos processos de socialização a participar desse jogo, atribuindo sentidos convencionais e públicos a uma série de atos (linguísticos, corporais, gestuais etc.), que lemos como “pistas” do que seriam “intenções não privadas e coerentes” (FABRÍCIO, comunicação pessoal, 2012).

Para Derrida, o que Austin exclui – ou seja, a repetição por meio da citação – é parte efetiva do movimento da linguagem. Assim questiona o teórico:

poderia uma declaração performativa ser bem sucedida se a sua formulação não repetisse uma declaração “codificada” ou iterável, em outras palavras, se as expressões que eu uso para abrir uma reunião, batizar um navio, ou fazer um casamento não fossem identificáveis de acordo comum modelo iterável, e portanto, se não fossem identificáveis como uma “citação”? (DERRIDA, 1982, p. 326)71

Nessa concepção, portanto, há o reconhecimento de que não se pode querer relacionar um ato de fala a uma estrutura convencional que permitiria sua validade ou felicidade porque os próprios sistemas convencionais ou instituições são necessariamente implicados em uma iteração. Com isso, o ato de fala não é visto como um rito planejado e regulado por regras previamente estabelecidas entre falantes (o contrato social), mas como

71 No original: “Could a performative statement succeed if its formulation did not repeat a ‘coded’ or iterable

statement, in other words if the expressions I use to open a meeting, launch a ship, or a marriage were not identifiable as conforming to an iterable model, and therefore if they were not identifiable in a way as ‘citation’?”

um acontecimento, dado que sua força é iterável, e sua repetição instaura sempre uma diferença72

. Conforme elucidado por Pennycook (2007, p. 67), “para Derrida, a questão não é tentar estabelecer o que faria um performativo feliz – a pessoa certa, dizendo no tempo certo, sob condições certas –, mas o modo pelo qual o uso da linguagem se efetivou pela repetição, pela citação”73.

Com isso, Derrida não quis dizer que a categoria da intenção desapareceria ou que simplesmente não poderíamos saber quais são as intenções de um falante quando ele pronuncia algo. A intenção continua tendo um lugar, contudo, longe da centralidade que a ela confere a Teoria dos Atos de Fala, tomando-a como essência do performativo. Conforme explica Loxley (2007, p. 90),

esse lugar não pode ser o lugar de uma ideia autopresente ou de um significado que é comunicado na situação de fala de um enunciado performativo válido ou padrão. A intencionalidade do performativo é, ao contrário, dada pela própria iterabilidade que impede que ela seja totalmente ou finalmente concretizada. A iterabilidade da marca subjaz a minha habilidade de dizer o que eu quero dizer, mas ao mesmo tempo e no mesmo movimento, limita-a no momento de sua criação.74 [grifo meu]

72 Conforme esclarece Pinto (2007), as críticas a Austin são procedentes, inclusive a empreendida por Derrida

(1982), que aponta o problema de a Teoria dos Atos de Fala se apoiar na ideia de um sujeito intencional. Segundo a autora, Austin realmente esteve preocupado em versar sobre a intencionalidade como um componente do funcionamento dos atos de fala, mas seus textos são escritos de maneira muito particular, com um estilo que deixa entrever reviravoltas, ironias e transformações. Pinto adverte que tais características, que foram analisadas atentamente por Rajagopalan (1996/2010), indicam que “a intencionalidade não deve restar como geradora e fundadora da teoria dos atos de fala” (Pinto, op. cit., p. 6). Além disso, como ainda acrescenta a autora, Otoni (1998, apud Pinto, op. cit.) chamou a atenção para o fato de que a noção de uptake introduzida por Austin na IX Conferência em Harvard, em 1955, mostra o reconhecimento do próprio autor acerca da fragilidade do conceito de intencionalidade. Ao tentar buscar a distinção de ilocucionário e perlocucionário, Austin postulou a noção de uptake ou apreensão, que seria o processo por meio do qual os interlocutores reconhecem que algo está apreendido ou assegurado, ou seja, “que ‘o objetivo ilocucionário’ foi realizado através de sua força” (OTONI, 1998, p. 81, apud PINTO, 2007, p. 8). Assim, se há um reconhecimento da importância da relação entre os interlocutores, já não há mais tanta certeza ou rigidez quanto à existência de um “falante intencional”. Se há um outro, já não há mais chance de haver unicidade ou qualquer possibilidade de se mapear uma possível intenção de um único que não existe.

73 No original: “for Derrida, then, the crucial issue was not so much one of trying to establish what made a

performative felicitous – the right person saying it at the right time under the right conditions – but rather the way in which language use was made effective by repetition, by citation”.

74

No original: “that place cannot now be that of a self-present idea or meaning that is communicated in the speech situation of a valid or standard performative utterance. The intentionality of the performative is instead given its chance by the very iterability that prevents it from being finally or fully actualised. The iterability of the mark underlies my ability to say what I want to say, but at the same time and in the same movement it limits it at its inception”.

Como se vê, a intencionalidade está também dentro da iteração, dado que não poderia haver significado sem ela, contudo, a iteração “não pode ser vista como um tipo de presença ou unidade ou plenitude; é, ao contrário, uma diferença interna, a necessária possibilidade de uma ruptura ou de uma quebra” (LOXLEY, op. cit., p. 90)75.

As noções de citação e iteração são fulcrais na teorização sobre performatividade nos estudos de Butler, que se apropria da constatação austiniana de que todos os enunciados são performativos, mas vai além, afastando-se da noção de intencionalidade e reconhecendo a citação ou repetição regulada pelo contexto sócio- histórico e ideológico como centro da enunciação, bem como a iteração como possibilidade de recriação dos significados.

Objetivando problematizar a noção simplificada que teorias feministas engendravam para o gênero por meio da dicotomia sexo/gênero (sexo é dado biologicamente e gênero é socialmente construído), Butler discutiu como esse pilar das teorias feministas, em sua tentativa de libertar as mulheres da opressão do determinismo biológico, acabou essencializando uma caracterização feminina, dessa feita tendo como foco o aspecto cultural. Seria, então, fundamental desconstruir a noção de que “a identidade” que o movimento feminista propunha como categoria a ser defendida e emancipada estava pautado ainda em uma “metafísica da substância” (em referência a Nietzsche), não existindo aquele sujeito que o feminismo pretendia representar. Para Butler, então, “aceitar o sexo como um dado natural e o gênero como um dado construído, determinado culturalmente, seria aceitar também que o gênero expressaria uma essência do sujeito” (RODRIGUES, 2005, p. 2).

Posicionando-se contrariamente a essa metafísica fundamentalista e à dicotomia sexo/gênero76, a autora indicou que o sexo não era natural e, assim como o gênero, também

se construía discursiva e culturalmente no movimento performativo das citações e iterações. Evocando a célebre afirmação de Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo: “a gente não

75

No original: “and iterability, as we have seen, cannot be thought of as a kind of presence or unity or plenitude: it is instead an internal difference, the necessary possibility of a rupture or a break”.

76 Assim afirma Butler (1990/2010, p. 25) a respeito da inexistência da dicotomia sexo/gênero: “[...] talvez o

sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma”.

nasce mulher, torna-se mulher”, Butler argumentou a favor da inexistência de um “ser mulher” pré-discursivo (ou de qualquer identidade). Para a autora, o enunciado “É uma menina”, dirigido à mãe que acabou de dar à luz, não é meramente descritivo, mas performatiza um ato, faz alguma coisa, iniciando um processo pelo qual se cria o efeito de certa noção do que é ser menina. O gênero, então, seria uma performance, uma “repetição estilizada do corpo, uma série de atos repetidos dentro de um padrão regulatório altamente rígido que se solidifica com o tempo para produzir a aparência de substância de um tipo natural de ser” (BUTLER, 2010/1990, p. 33).

Nessa concepção, portanto, a performatividade é “entendida como o modo pelo qual desempenhamos atos de identidade como uma série contínua de performances sociais e culturais em vez de expressão de uma identidade anterior” (BUTLER, 1990, apud PENNYCOOK, 2006, p. 80). Consequentemente, as identidades são performadas em vez de pré-formadas (PENNYCOOK, 2004). Normalmente, é “no discurso cultural hegemônico, baseado em estruturas binárias que se apresentam como a linguagem da racionalidade universal” (BUTLER, 2010/1990, p. 28), que o ser mulher ou ser homem (assim como o ser negro/branco) normalmente se cristaliza, realizando-se polarizadamente como um destino biológico (BUTLER, op. cit., p. 24). Contudo, a identidade de gênero, assim como quaisquer outras identidades sociais, é culturalmente significada por meio dos sentidos criados, repetidos e normatizados no discurso. Quer dizer, “a enunciação de um