• Nenhum resultado encontrado

L INGUAGEM NO ESPAÇO DAS MULTIPLICIDADES , SIMULTANEIDADES E MOBILIDADES

CONSTRUINDO TRÂNSITOS EM TRÂNSITOS TEÓRICOS

2.2. L INGUAGEM NO ESPAÇO DAS MULTIPLICIDADES , SIMULTANEIDADES E MOBILIDADES

Tendo sido colocado em segundo plano nos estudos acerca dos fenômenos sociais até o século XIX, quando então a noção de tempo estava no centro dos debates filosóficos, o espaço passou a ser uma força consensual na chamada pós-modernidade contemporânea. Com a compressão e a fluidez espaço-temporal trazidas pela aceleração do progresso científico-tecnológico, há um reconhecimento de que “o espaço importa” (HAESBAERT, 2011, p. 455), mas, agora, com a premência de ser abordado em seu indissociável binômio “espaço-tempo”.

Tal perspectiva de espacialidade é crucial para a posição socioconstrucionista/discursiva e performativa de linguagem que assumo neste trabalho e, por isso, cabe esclarecer melhor como espaço é aqui referido. De acordo com Haesbaert (2011), por se tratar de uma construção social (LEFEBVRE, 1986/1974) complexa (assim como o é o território), o espaço precisa ser significado dentro de uma “matriz de múltiplas entradas” (HAESBAERT, 2011, p. 73).

Harvey (1980) distingue o espaço em três estruturas: (i) espaço absoluto – aquilo que é fixo, que não se movimenta, “uma coisa em si mesma”; (ii) espaço relativo – compreendido como uma relação entre objetos e (iii) espaço relacional – compreendido como “estando contido em objetos, no sentido de que um objeto existe somente na medida em que contém e representa dentro de si próprio as relações com outros objetos” (HARVEY, op. cit., p. 4-5). Conforme destaca Haesbaert (op. cit. p. 46-47), o mais importante da teorização de Harvey não é essa distinção, mas o fato de o autor afirmar que não nos situamos em apenas uma ou outra instância de espaço, mas perpassamos todas elas, embora com intensidades diferentes, uma vez que essas instâncias estão sempre em interação. Lefebvre (op. cit), por sua vez, frisa a imprescindibilidade de se abordar a questão do espaço em conexão com as histórias e com o conjunto das relações sociais, havendo, entre esses elementos, uma relação de interdependência. Interdependência que se configura, justamente, no atravessamento, na multiplicidade e na simultaneidade das instâncias espaciais descritas por Harvey.

Ao apontar a conexão espaço-história-sociedade, o trabalho de Lefebvre influenciou, direta ou indiretamente, teóricos de várias áreas do conhecimento, cujos trabalhos se vinculam ao pressuposto de que a linguagem e, consequentemente, as construções sociais se dão no atravessamento desses espaços múltiplos, simultâneos e móveis, sendo relevante citar o geógrafo Edward Soja (1996) e o teórico dos estudos poscolonialistas Homi Bhabha (2007/1998). Conforme explica Tagata (2007, p. 23), para Soja (op. cit.), embora Lefebvre tenha sido o mais marxista de todos os intelectuais franceses, pode também ser considerado o mais antimarxista, dada sua postura nada ortodoxa de sujeitar as dicotomias “a uma reestruturação onde selecionava e contrapunha traços de cada binarismo de modo a conceber novas alternativas epistemológicas”. Essa

postura de Lefebvre, optando por uma Outra alternativa (an Other alternative) diante de dicotomias clássicas como homem x mulher, centro x periferia, teoria x prática etc. – alternativa representada pela simultaneidade “e...e” – serviu de base para que Soja cunhasse o termo trialética, sobre o qual apoiou o conceito de Terceiro Espaço (Thirdspace). Conforme explica o teórico, o Terceiro Espaço se configura como

uma Outra alternativa de compreender e agir para mudar a espacialidade da vida humana, um modo distinto de percepção crítica do espaço que é apropriado ao novo escopo e significado trazidos na trialética re- equilibrada da espacialidade-historicidade-socialidade. (SOJA, 1996, p. 10)62

Assim, para Soja (op. cit., p. 56), a simultaneidade constitui nossas relações nas instâncias espaciais-históricas-sociais, estando tudo em coexistência, “a subjetividade e a objetividade, o abstrato e o concreto, o real e o imaginário, o conhecido e o inimaginável, o repetitivo e o efêmero, a estrutura e a agência, a consciência e o inconsciente, o disciplinar e o transdisciplinar, a vida cotidiana e a história sem fim”63.

Pode-se dizer que essa trialética também está na base da semiologia poscolonialista de Homi Bhabha (2007/1998). Embora não esteja diretamente preocupado com o conceito de espaço em si, o autor indica a importância de considerar a coexistência de múltiplas espacialidades e temporalidades na construção dos significados e das diferenças culturais, ao defender que tal construção se efetiva em um espaço fora da frase também chamado de espaço intersticial ou terceiro espaço. Como não há relação direta entre significante e significado, e como o signo está sempre apoiado em um contexto de enunciação específico (o lócus de enunciação), cabe ao falante, no interstício entre essas duas partes, estabelecer as relações entre elas, produzindo os significados, as interpretações. Esses significados são, dessa maneira, produzidos nesse espaço, sempre perpassado por múltiplas instâncias e simultaneidades, exigindo um contínuo processo de (re)negociações

62 No original: “[…] an-Other way of understanding and acting to change the spatiality of human life, a

distinct mode of critical spatial awareness that is appropriate to the new scope and significance being brought about in the re-balanced trialectics of spatiality-historicity-sociality”.

63 No original: “subjectivity and objectivity, the abstract and the concrete, the real and the imagined, the

knowable and the unimaginable, the repetitive and the differential, structure and agency, mind and body, consciousness and unconscious, the disciplinary and the transdisciplinary, everyday life and unending history”.

ou de tradução cultural. Assim, na mobilidade do terceiro espaço, é possível problematizar e questionar a pretensa universalidade construída pelos discursos hegemônicos, ressignificando as substantivações “ao revelar os processos através dos quais esses significados ganharam prestígio e se consolidaram, e assim expor o hibridismo na base de sua constituição” (TAGATA, 2007, p. 97). Como afirma Bhabha, em entrevista a Rutherford (1990, p. 211), “o terceiro espaço permite emergirem outras posições”, porque ele “desloca as histórias que o constituem, e configura novas estruturas de autoridade, novas iniciativas políticas, as quais são inadequadamente entendidas como conhecimento dado”64.

A multiplicidade e o atravessamento de instâncias que constituem o espaço e sua importância para as construções sociais estão também no cerne das teorizações de Santos (2002; 2008/2000) e Blommaert (2010). Embora já tenha traçado em linhas gerais a concepção de espaço defendida por esses teóricos, julgo ainda necessário enfatizar algumas considerações.

Criticando o que chama de sociolinguística da distribuição, vinculada aos preceitos de sincronicidade no estudo da linguagem e a uma concepção plana de espacialidade, Blommaert advoga a constituição de uma socioliguística da mobilidade, capaz de dialogar melhor com os processos atuais de globalização, os quais só podem ser tomados na conjunção dos conceitos espaço-tempo. Assim, focalizando a linguagem na mobilidade (language-in-motion) e não simplesmente no lugar (language-in-place), o teórico ressalta a natureza estratificada, escalonada e hierarquizada do espaço, composta na interpolação de duas instâncias, vertical e horizontal, que se sobrepõem e continuamente formam desenhos espaço-temporais que se retroalimentam. O autor (BLOMMAERT, 2010, p.5) explica que “espaço”, nessa perspectiva,

é metaforicamente visto como um espaço vertical, como um espaço com sobreposições e estratificações. Todo espaço horizontal (por exemplo, a vizinhança, a região, ou o país) é também um espaço

64 No original: “but for me the importance of hybridity is not to be able to trace two original moments from

which the third emerges, rather hybridity to me is the ‘third space’ which enables other positions to emerge. This third space displaces the histories that constitute it, and sets up new structures of authority, new political initiatives, which are inadequately understood through received wisdom”.

vertical, no qual ocorre todo tipo de distinções sociais, culturais e políticas.65 [grifo meu]

Conforme esclarece Blommaert (2010, p. 5), tais distinções são “indexicais” e “projetam diferenças linguísticas sobre os padrões estratificados da atribuição de valores sociais, culturais e políticos”, convertendo “diferenças linguísticas e semióticas em desigualdades sociais e, portanto, representa[ndo] as dimensões normativas do uso da linguagem situada”.

Considero ainda fundamental reafirmar, assim como faz Blommaert (op. cit., p. 5-6), que a dimensão vertical é tão importante quanto a horizontal, porque é nela que nos damos conta dos processos de hierarquização e ranqueamento e dos embates de poder que estão comprometidos nos sentidos sócio-históricos. Conforme explica o autor, não há dicotomia entre os níveis macro e micro; há duas escalas sempre superpostas e sempre imbricadas, estando o nível mais local sempre comprometido nos sentidos sócio-históricos e duráveis que vão orientando o que fazemos dos recursos de linguagem na produção dos sentidos e das subjetivações. Por tradição, olhamos somente para a escala verticalizada quando, na verdade, temos de olhar para as duas, já que todo signo aponta simultaneamente para o contexto local específico (nível da denotação) e para o contexto social (histórico e translocal).

Da mesma forma, Milton Santos (200/2008, p. 105-112) enfatiza a necessidade de apreendermos o nível horizontal em sua imbricação com o vertical, pois é justamente nas horizontalidades, ou seja, no espaço das vivências, dos microatores, das produções localizadas em meio a persistências e durabilidades, que se engendram as possibilidades de transgredir, reagindo à homogeneidade estabelecida pelos gerenciamentos verticais dos macroatores, os quais, normalmente, são indiferentes a seu entorno.

Tendo explicitado o conceito de espaço, passo a problematizar os conceitos de performance e performatividade, processos fulcrais na construção de todos os espaços.

65 No original: “space, here, is metaphorically seen as vertical space, as layered and stratified space. Every

horizontal space (e.g. a neighbourhood, a region, or a country) is also a vertical space, in which all sorts of socially, culturally and politically salient distinctions occur”.