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A ERA DA VISIBILIDADE

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Já no século XVII, o filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz tinha noção do poder de nossos sentidos ao afirmar: “Não duvido de que um cego possa falar razoavelmente sobre cores e fazer um discurso de elogio à luz que não conhece, por ter percebido os efeitos e as circunstâncias da luz” (LEIBNIZ, 2004, p. 275). Sabe-se que esta afirmação pode ser justificada pelo fato de que o sentido da audição é tão forte quanto ao da visão.

Wulf (2002 apud MENEZES, 2007), em uma análise ontogenética, enfatiza que a audição do ser humano se desenvolve antes da vista, de modo que um feto, já aos quatro meses e meio, pode reagir a estímulos acústicos e um bebê pode reconhecer timbres de voz, o que favorece sua ambientação em uma rede de sons. Desta forma, “o ouvir é condição prévia para que se desenvolvam os sentimentos de segurança e pertencimento” (WULF, 2002 apud MENEZES, 2007, p. 112). Enquanto o olho, por ser altamente centrado, percebe estaticamente objetos que estão à sua frente, o ouvido permite o senso de equilíbrio, de localização no espaço e a noção da sucessão dos sons na perspectiva do tempo, uma vez que a visão detém o mundo através de uma imagem bidimensional e a audição a tridimensionalidade do espaço (WULF, 2002 apud MENEZES, 2007). Em contrapartida, atualmente, a sociedade tem priorizado a visão cada vez mais, ao passo que, de acordo com Menezes (2007) estamos vivenciando um processo de reprodução desvairada de imagens e de hipnose por essas mesmas imagens, isto é, vivemos na era da

publicidade contemporânea, em que a imagem torna-se cada vez mais dominante. Esta colocação dialoga com pensamentos advindos de Baitello (2005, p. 53):

Desde que passamos da sociedade entômica para a sociedade imagética, um outro fenômeno passou a se tornar mais evidente, o fenômeno da iconofagia, a devoração de imagens, juntamente com a voracidade por imagens e a gula das próprias imagens.

Deste modo, Braga (2012) complementa a reflexão em questão ao observar que a mídia nada mais é do que o reflexo da sociedade, ao se dirigir para aqueles que se reconhecem nesta mídia. Isso porque, antes, no período da ênfase nos meios, a circulação era vista apenas como a passagem de algo do emissor ao receptor, e hoje, com a percepção de que os receptores são ativos, a circulação passa a ser vista como o espaço do reconhecimento e dos desvios produzidos pela apropriação.

Assim, a era da visibilidade que vivenciamos hoje, ou seja, uma sociedade que tende a priorizar o poder da visão, pode ser melhor compreendida por meio dos estudos de Menezes (2007) quanto à cultura do ouvir, como um caminho para a criação de vínculos sonoros em meio ao cenário excessivo de imagens na atualidade. Em outras palavras, “a necessidade de pesquisarmos com maior profundidade as relações entre a visão e a audição nos processos comunicativos” (MENEZES, 2007, p. 113). Nesta perspectiva, o autor considera “pouco estudada a passagem da ênfase no ouvir para o processo civilizatório que gerou o predomínio da cultura do ver, ou cultura da imagem” (MENEZES, 2007, p. 112), isto é, gerou a era da visibilidade. Pode-se considerar que este predomínio da cultura do ver ocorre pelo fato de que o ouvir está mais associado a universos como o do sentir, da paixão, do passivo, do receber e do aceitar, enquanto o ver, mais ligado à ação, ao fazer, à atividade, ao atuar, ao agir e ao poder (BAITELLO, 2005).

Percebemos, então, que as pessoas precisam aprender a ouvir mais, no sentido de saberem qual o real benefício que o ato de escutar pode trazer à suas vidas.

Menezes (2007, p. 114) se baseia nos estudos do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser (1929-1991) para afirmar:

Não se trata aqui de negarmos a importância da comunicação bidimensional do universo das imagens ou da comunicação unidimensional do universo da linearidade da escrita, mas de transitarmos entre os quatro processos de comunicação e observarmos onde podemos ouvir e cultivar vínculos sonoros.

Para que este trânsito flua melhor é essencial, segundo Menezes (2007), a articulação entre a cultura do ver, do ouvir, com o gigante universo das imagens, de forma que possibilite “um respiro” a esse movimento de ir e vir. Neste sentido, independente de que os meios de transmissão sonoros ainda não sejam tratados com a mesma dedicação com a qual são tratados os meios de transmissão visuais, a articulação entre a cultura do ver e a cultura do ouvir permite circulações sonoras nas aberturas dos diferentes meios de comunicação. O autor ainda ressalta que, a cultura do ouvir compreende a ampliação do leque da sensorialidade para além da visão, isto é, ir além da racionalidade que tudo quer ver para um estado em que todo corpo pode ser tocado pelas ondas de outros corpos.

Com relação à importância do ato de escutar, cabe destacar aqui a opinião de Schafer (1991), compositor, escritor e pedagogo musical canadense, considerado o “pai da ecologia acústica”, que acredita que hoje a sala de concerto mudou, pois a nova orquestra é o universo. Tal circunstância pode ser entendida, nas palavras de (SCHAFER, 1991, p. 124), pelo fato de:

Qualquer coisa que se mova, em nosso mundo, vibra o ar. Caso ela se mova de modo a oscilar mais que dezesseis vezes por segundo, esse movimento é ouvido como som. O mundo, então, está cheio de sons. Ouça.

Desta forma, “o cultivo do ouvir pode enriquecer os processos comunicativos hoje muito limitados à visão e nos ajudar a viver melhor num mundo marcado pela abstração” (MENEZES, 2007, p. 117).

Observando a necessidade de uma maior atenção ao universo do ouvir, a partir de contribuições de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Menezes (2007, p. 115) destaca que: “percebemos nossa existência como seres que se entrevêem, que vêem pelos olhos uns dos outros e, ‘sobretudo’, como seres sonoros”. O autor complementa esta reflexão com uma citação de Merleau-Ponty, a qual se entende que a percepção é coberta por uma contrapercepção. Cabe adiantar que esta ideia de contrapercepção pode dialogar com o princípio de receptor ativo, um dos

assuntos analisados por teóricos dos Estudos de Recepção, como Cruz (1986), que será aprofundado ao longo deste capítulo.

Enfim, toda esta questão colocada até aqui, a respeito da necessidade de uma maior valorização da cultura do ouvir, tanto nos auxilia para melhor estudarmos sobre a recepção da comunicação mercadológica televisiva por pessoas com deficiência visual, quanto esclarece inicialmente que estamos lidando com pessoas que não enxergam justamente na era da visibilidade.

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