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O FENÔMENO DA ICONOFAGIA

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Baitello (2007), em sua obra “A era da iconofagia”, teve por objetivo tratar sobre os processos desencadeados pelos meios de comunicação e sua consequência para o cenário cultural no qual vivemos. Sob este aspecto, iconofagia é um fenômeno em que, de acordo com o autor, “ora as imagens são devoradas, ora são as imagens que devoram” (BAITELLO, 2007, p. 9).

Baitello (2007) recorre aos estudos do teórico Walter Benjamin (1980) sobre a era da reprodutibilidade técnica, para apresentar a compreensão de que tal fenômeno da iconofagia pode decorrer do fato da sociedade, que produzia manual e artesanalmente suas imagens, ter passado para uma sociedade que inventou máquinas que reproduzem imagens e, por este motivo, com o advento das imagens que podem ser distribuídas, perde-se a aura, a autenticidade, do objeto único. Benjamin (2002) defende que por mais que a reprodução de uma obra seja a mais fiel possível, sempre falta o hit et nunc, isto é, o agora, sua autenticidade. Ainda que as novas condições assim criadas pela técnica de reprodução não alterem o próprio conteúdo da obra de arte, de qualquer modo desvalorizam seu hit et nunc.

A respeito da era da reprodutibilidade técnica, Baitello (2007, p. 104) aponta que: “muito abriu as portas para uma escalada das imagens visuais que começam a competir pelo espaço e pela atenção (vale dizer, pelo tempo de vida) das pessoas.” Nesta perspectiva, o excesso de imagens provoca anamneses que passaram a estar presente no dia a dia tanto da mídia quanto das ciências da comunicação.

Após esta análise sobre a questão da reprodutibilidade técnica, cabe ainda um aprofundamento do fenômeno da iconofagia.

Baitello (2007), a partir dos estudos de Harry Pross (1972), aponta a mídia primária, secundária e terciária como etapas de classificação da mídia. A primária, que já existia bem antes do jornal, da televisão e do rádio, é entendida como sendo nosso próprio corpo, uma vez que no momento em que duas pessoas se encontram ocorre uma troca de informações, ou seja, um processo de comunicação, por meio de inúmeros vínculos, canais, relações e linguagens. Um exemplo de mídia primária utilizado pelo autor são as sobrancelhas que, em tese, servem para segurar o suor da testa. Porém, se pararmos para pensar na possibilidade de outras utilidades, a sobrancelha nada mais é do que o primeiro órgão comunicativo à distância.

Já a mídia secundária, sendo consequência da primária, representa o objeto entre a emissão e a recepção do sinal emitido pelo corpo como a parede de uma caverna, um papel, etc.: “A grande importância da mídia secundária é que ela possibilitou a ampliação de campos comunicativos (espaços, tempos, intensidades)” (BAITELLO, 2007, p. 73).

Por fim, a mídia terciária surgiu a partir da criação de sistemas de mediação mais aprimorados devido ao desenvolvimento da era da eletricidade. Estes sistemas passaram a utilizar aparatos de emissão e captação da mensagem como o telégrafo, o telefone, a televisão e, hoje, as redes de computadores. Com esta evolução da tecnologia, o tempo da decifração e contemplação das imagens é eliminado na mídia terciária e uma sonoridade e visualidade em ritmos acelerados são priorizados (BAITELLO, 2007)

Em suma, de acordo com Baitello (2007), cada mídia atua em um tempo diferente, sendo o da mídia primária presencial, visto que necessita da presença de emissores e receptores em um mesmo tempo. O tempo da secundária é mais lento, uma vez que apenas o emissor, por meio de aparatos que transportam sua mensagem, aumenta seu tempo de emissão, bem como seu impacto sobre o receptor. Já o tempo da mídia terciária é altamente acelerado, à medida que passa a ser possível a escolha entre a mensagem imediata, à distância e sem a presença física do interlocutor e mediatizada, conservada para posterior exposição.

Mais especificamente com relação à mídia e o poder que as imagens assumem hoje em dia, a autora Kehl (1995), em seus estudos sobre imaginário e pensamento, trata sobre a questão do telespectador que, “enfeitiçado” diante da televisão, para de pensar, ao passo que a televisão supre seus desejos a ponto do

telespectador não precisar mais imaginar e sonhar para chegar perto de seus desejos. Isto significa que a dimensão do pensamento é uma das mais importantes da relação do sujeito com a realidade.

Para a Kehl (1995), a televisão passou de uma época em que seu objetivo era informar para ter hoje um “efeito espetáculo” trazendo como exemplo a propaganda e os debates eleitorais que possuem um “efeito-imagem” e um “efeito-espetáculo” que parecem pesar mais a reação do público do que a informação. Com esta percepção, Kehl (1995, p. 171) reflete sobre a hipótese de que:

[...] a relação dos sujeitos com o real, naquilo em que ela se dá por meio da mediação do discurso televisivo – e quase que independentemente dos conteúdos desse discurso –, é uma relação imaginária, que se rege prioritariamente pela lógica da realização de desejos. Portanto, prescinde do pensamento.

Tal fato pode ser entendido a partir da possibilidade que a televisão oferece de estar em contato com o telespectador 24h por dia. Kehl (1995) enfatiza que a televisão proporciona continuidade e variedade sendo doméstica, manejável, cotidiana, capaz de iludir o tédio e a solidão e, principalmente: “trata as informações da realidade, as ficcionais, as espetaculares e as publicitárias numa linguagem tão constante, tão igual, que todos esses níveis de discurso se confundem” (KEHL, 1995, p. 172).

Este poder da televisão de atrair o telespectador ainda pode ser observado com a ascensão dos reality shows na mídia, categoria de programa de televisão que já começou a demonstrar seu potencial de atratividade em 1998, com o sucesso de crítica e de bilheteria do filme The Truman Show, conseguindo indicações ao Oscar, Globo de Ouro, BAFTA e Saturn Award.

Para chegar a tais conclusões, a autora analisa a criança frente à televisão, visto que a infância é o período da vida em que se forma a capacidade humana de pensar, além de ser a época em que temos mais tempo livre para passar diante da televisão. Kehl (1995, p. 176-7) cita resumidamente o modelo freudiano para explicar os processos de pensamento:

Muito cedo na vida a criança começa a sofrer com a tentativa de realizar alucinatoriamente e imediatamente, de um modo onipotente, o seu desejo. É a partir do fracasso do princípio do prazer que o sujeito renuncia (pelo menos parcialmente) ao modelo da realização alucinatória de desejos e passa a desenvolver outros recursos de relação com a realidade externa. O principal desses recursos é o pensamento.

Kehl (1995) considera que a televisão é responsável por oferecer à criança a possibilidade de retornar ao modelo da realização alucinatória dos desejos. Em suma, ela ressalta que o telespectador já adulto espera frente à televisão uma relação que o coloque de volta em contato com os princípios do desejo. Neste sentido, a melhor forma para diminuir o poder da rede de imagens criada pela televisão e desenfeitiçar o telespectador fascinado por esta mídia seria a variedade da experiência.

Voltando agora às características da mídia terciária, cabe ressaltar a existência de uma possível interface entre a mídia terciária e os Estudos de Recepção, pois, conforme os apontamentos de Baitello (2007), com a mídia terciária tornou-se possível ampliar ainda mais as escalas espaciais e de impacto receptivo. Outra questão interessante a se observar, já considerando as dificuldades que as pessoas com deficiência visual encontram para viver na era da visibilidade, é que, além de sofrerem as consequências de estarem em meio a uma sociedade que supervaloriza a imagem, também vivem em uma sociedade em que, conforme com Baitello (2007, p. 38): “as linguagens do tato e a comunicação tátil se confinaram a áreas de refúgio, sendo desenvolvidas apenas quando da perda da visão, ou então como terapias específicas, destinadas a excepcionalidades patológicas”. Ou seja, necessitamos não só de uma maior valorização da cultura do ouvir como também da valorização de outros sentidos, como o tato. Baitello (2007, p. 39) nos oferece uma possível explicação para tal deficiência de valorização dos sentidos:

De fato, a mídia primária, que se resume ao corpo e suas linguagens naturais, têm estado em baixa diante do poder econômico e político da comunicação em grandes escalas por aparatos cada vez mais potentes e sofisticados. (...) mães e pais têm menos tempo para seus filhos e para seus amigos. (...) As universidades passam a transferir o espaço-tempo da aula para o chamado ‘espaço virtual’ das redes.

Baitello (2007) ainda complementa que quanto mais inserção de imagens, menos visibilidade, assim como quanto mais visão, menos o sentido da corporeidade, do aqui e agora, isto é, o fenômeno da “perda do presente”, abordado

por diversos estudiosos, como é o caso dos estudos de Benjamin (2002), já apontados neste capítulo.

Por fim, compreendemos que a essência para o desdobramento do fenômeno da iconofagia foi o medo que o ser humano tem da morte, uma vez que o homem começou a produzir imagens para minimizar este medo e, por isso, estão presos às imagens dos desejos de imortalidade. Esta produção de imagens, que posteriormente se transformou em devoração de imagens culminou no que Baitello (2007, p. 54) nomeia de primeiro degrau da iconofagia, isto é: “repetições e reproduções de outras imagens, a partir do consumo das imagens presentes no grande repositório”

O segundo degrau da iconofagia surge quando a sociedade passa a consumir adjetivos, isto é, passa a consumir não somente as coisas, mas os atributos que as coisas têm para oferecer como: marcas, modas, grifes, tendências, símbolos, ícones etc. (BAITELLO, 2007). Prova disso é que cada vez mais comemos por influencia das embalagens, cores e formatos dos alimentos e não a comida propriamente dita. Nessa etapa da iconofagia cabe ressaltar que, se no dia a dia da pessoa com deficiência visual em meio à era da visibilidade ela já pode se deparar com diversas dificuldades, os questionamentos se desdobram quando observamos uma sociedade que consome imagens.

Finalmente, temos o momento em que as imagens devoram os corpos como mais um degrau da iconofagia, um processo também nomeado por Baitello (2007) de “antropofagia impura”, visto que com o barateamento dos recursos de reprodução de imagens em grandes escalas, a sociedade passou de antropófagos criativos para iconófagos de uma cultura universal, pasteurizada e homogeneizada.

Entendemos que chegamos aonde chegamos hoje graças a natureza sonhadora do homem. De acordo com Baitello (2007, p. 78):

Até mesmo os sonhos mais irreais e o imaginário mais absurdo, as patologias mais dolorosas, ofereceram ao homem o alargamento de seu horizonte perceptivo e estético. (...) Porém, ao mesmo tempo em que os delírios podem se desdobrar em conhecimentos e ciência, a proliferação da desordem pode conduzir a tendências regressivas socialmente pouco construtivas.

Deste modo, o mercado também foi criado. Para Baitello (2007), assim como toda criação social, o mercado também é uma relação comunicativa, um ser de

ficção inventado e alimentado pelas sociedades que o criaram: “O mercado possui o mesmo status abstrato que deuses e demônios, criados pela imaginação do homem e alimentados por seus hábitos culturais” (BAITELLO, 2007, p. 76).

Com base nos estudos de Flusser (1997), Baitello (2007, p. 90) considera a cultura das imagens como universo das coisas e a cultura dos corpos como cultura das não coisas. Nesta compreensão, as coisas saem do centro de interesse, que passa a se concentrar nas informações como imagens na tela da televisão e dados do computador (FLUSSER, 1997).

Em suma, podemos dizer que o fenômeno da iconofagia é consequência da crise da visibilidade. Baitello (2007) conclui que o acelerado crescimento da quantidade de imagens em exposição gera uma inflação, trazendo cada vez mais como resultado o aumento da desvalorização das imagens, isto é, um ciclo que acaba ainda ocasionando o movimento desesperado de busca da visibilidade, não importando o custo.

Tal reflexão pode ser articulada ao pensamento de Blázquez com relação ao assunto. Para o autor, as imagens, somente pelo fato de existir, consegue distanciar-nos da realidade, desta forma, sua invasão icônica faz com que acreditemos, de maneira equivocada, que assistimos a um espetáculo de realidade jamais visto anteriormente, sendo, deste modo, uma forma de alto enganarmos de maneira submissa e gratificante (BLÁZQUEZ, 1999).

Nesta perspectiva, esta compulsiva proliferação de imagens em todas as linguagens e tipos de espaços midiáticos desperta também nos receptores a necessidade compulsória de apropriação não mais de coisas, mas de suas imagens (BAITELLO, 2007, p. 96).

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