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A escassez (e profundidade) dos estudos envolvendo o ambiente externo

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Capítulo II – REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO E A COMUNICAÇÃO FACE A

3. Como a comunicação face a face se manifesta nas organizações

3.3 A escassez (e profundidade) dos estudos envolvendo o ambiente externo

Conforme visto no capítulo 1, apesar de a perspectiva de simultaneidade dos meios representar uma tendência metodológica, nem todos os estudos utilizam essa abordagem. Ainda é bastante comum encontrar pesquisas que segmentam os canais, seja para compará-los ou relacioná-los. É o caso, por exemplo, de Gilvan Ferreira de Araújo (2006), que pesquisou a troca de cartas entre pacientes e direção de um hospital da cidade de Belo Horizonte (MG).

Embora seu objeto de estudo seja a comunicação mediada por cartas, Araújo mergulha no universo da comunicação face a face por considerá-la uma espécie de modelo para as

correspondências. O pesquisador explica que no hospital ocorrem as interações face a face, que posteriormente são representadas por meio da escrita pelos usuários. A organização trabalha com respostas padrão ou personalizadas, dependendo do caso. Para ele, as cartas não criam proximidade entre o hospital e os usuários, já que “escondem muito mais do que apresentam” (ARAÚJO, 2006, p. 149).

A obra de Goffman fundamenta boa parte da dissertação, embora Araújo também busque suporte em autores como Peter Berger, Thomas Luckmann, Alfred Schutz e Charles Herton Cooley, que veem nas relações face a face o protótipo das interações sociais. Terminado o envolvimento presencial, o relacionamento se tornaria indireto. Araújo (2006) explica que a escolha de Goffman como base teórica justifica-se pela perspectiva de que a comunicação escrita apresenta características da comunicação oral.

Epistemologicamente, concordamos que a observação dos encontros entre as pessoas é mais valorosa; uma vez que nas cartas as entonações de voz, os gestos e os atos involuntários não podem ser percebidos. Além disso, a tendência dos sujeitos ao escreverem cartas é a de se colocarem no papel de “vítimas”, como se suas atitudes fossem apenas reações às atitudes do outro e não ações de si mesmos. Em outras palavras, podemos afirmar que nem tudo o que acontece nas interações face a face é relatado nas cartas, pois a própria distância do “outro” serve de estratégia para formas de persuasão através do texto que podem mudar os atos, as falas e as expressões do corpo. (ARAÚJO, 2006, p. 99).

Uma importante contribuição desse autor refere-se à percepção de que as interações presenciais não permitem representações imaginárias, já que todo o contexto é decodificado pelos participantes. Além disso, Araújo (2006) acrescenta que a diferença entre as duas formas de interação está na vivência da situação e no posterior relato sobre essa experiência, caracterizando essas distinções e a importância dos contextos nas duas modalidades.

Assim, entre a leitura de uma carta e a observação da cena descrita por ela existe uma diferença básica posicionada entre dois aspectos: a presença dos sujeitos da ação no momento em que ela acontece (incluindo seu contexto) e a narrativa que eles fazem dela algum tempo depois através das cartas. Este intervalo de tempo e mudança de espaço apresenta distorções representativas e interpretativas sobre o mesmo acontecimento, mas não muda o significado construído durante a interação presencial. (ARAÚJO, 2006, p. 151-152).

O investigador constrói uma narrativa em que a comparação das duas formas de interação resulta numa complementaridade, ou seja, o leitor vai compreender melhor o

fenômeno da mediação pela troca de cartas ao conhecer o conceito e as características da comunicação face a face.

Outro trabalho que avança nessa seara é a pesquisa realizada por Ferreira (2011, 2012), que avalia a comunicação face a face com públicos externos, a saber, a comunidade vizinha da empresa Ampla, uma concessionária de distribuição de energia elétrica com sede em Niterói (RJ). A perspectiva de Ferreira (2012, p. 2) é a do diálogo social,

[...] aqui entendido como um processo de comunicação multilateral que, através da interação face a face continuada entre organização e públicos de interesse estratégico, em espaços comuns, busca o entendimento e o consenso, articulando valores, representações e significados sociais sobre os elementos constituintes da relação (pessoas, fatos, processos, objetos), e estabelecendo instâncias de relacionamento e de comprometimento dos agentes sociais participantes.

Ferreira vislumbra a comunicação enquanto relacionamento. Muito embora as relações estudadas por esse investigador se estabeleçam no âmbito do entorno onde a empresa está instalada, observa-se que o olhar voltado para fora da organização acrescenta novos ingredientes ao conhecimento sobre os limites e potencialidades da comunicação presencial.

Antes de aprofundar a análise sobre os estudos de Ferreira, convém destacar que toda referência ao chamado “diálogo social” deve remeter à ideia de comunicação face a face, já que esse formato é inerente ao conceito descrito acima e caracteriza o modo de interação entre a organização e a comunidade investigada.

Ferreira adota um tom bastante crítico em relação ao seu objeto de estudo. “O diálogo social não pode ser analisado de forma inocente. É um processo comunicacional que articula interesses, valores e instâncias de poder” (FERREIRA, 2011, p. 317). A política da empresa que optou por implantar um mecanismo de comunicação face a face com a comunidade vizinha inclui a capacitação dos agentes sociais envolvidos nesse processo, fortalecendo o que ele chama de capital social da região. Os contextos, as variáveis culturais, o tempo dedicado à interação e os espaços onde ela ocorre são amplamente discutidos na tese.

Soma-se a “não inocência” do diálogo social sua capacidade de provocar reações e transformações entre os envolvidos nesse processo, conforme aponta Ferreira (2011, p. 314):

Assim, tratar a comunicação como um sistema de relacionamento nos levou a refletir sobre os processos de comunicação de uma organização, mas também acerca do papel estruturante do capital social de um território. Tanto a organização quanto os atores sociais da região em que esta atua são levados a

repensar suas práticas, as lógicas de pensamento, a articulação dos múltiplos interesses e as visões de mundo existentes.

Mesmo que o processo de envolvimento entre as partes encontre-se em fase inicial, o pesquisador percebe a ocorrência dessa mútua influência entre os participantes da interação face a face. Segundo Ferreira (2011, p. 317), a organização “passa por um processo de abertura e internalização das variáveis culturais externas”, enquanto a comunidade “constitui expectativas e exigências mais sofisticadas sobre os agentes produtivos locais”.

Para aprofundar a reflexão sobre essas mudanças, convém considerar que, na visão desse estudioso, essa disposição em dialogar faz emergir naturalmente o conflito entre duas realidades distintas que envolvem as organizações: a produtiva e a reputacional. A primeira consiste em seus interesses financeiros, a gestão racional, o controle de processos, entre outros. A realidade reputacional traz à tona, por exemplo, questões voltadas à qualidade dos relacionamentos e preocupações éticas em relação às decisões tomadas que possam afetar grupos de interesse.

A realidade produtiva torna-se a instância mais relevante para os estudos que contemplam o paradigma informacional, aquele que se preocupa com a mecânica da transmissão das mensagens para atender somente aos interesses empresariais. Diante de todas as transformações do mundo líquido moderno, essa concepção torna-se ultrapassada e insuficiente para explicar os processos comunicacionais contemporâneos. A realidade reputacional das organizações acomoda-se ao paradigma relacional, pois o contexto e a alteridade não podem mais ser ignorados. O investimento em relacionamentos – e o próprio trabalho dos comunicadores organizacionais – ganha novo fôlego a partir de declarações como esta:

O relato dado por um dos diretores da Ampla revela, com brutal clareza, que a opção pelo diálogo se deu em função da complexidade social, política e legal das cidades atendidas pela concessionária. Porém, apesar da motivação original, uma série de transformações acaba acontecendo na organização ao longo do tempo. A continuidade da interação provoca mudanças estruturais nos processos operacionais e na lógica de pensamento e decisão. O diálogo social viabiliza a construção de um capital de confiança que amortece crises e percepções negativas, mas não é capaz, como nenhuma outra estratégica de comunicação, de aplacar os efeitos danosos de uma operação ineficiente. (FERREIRA, 2011, p. 315).

A partir deste relato, pode-se inferir que: 1) por mais que a organização rejeite a ideia de dialogar com seus interlocutores externos, haverá situações em que ela será pressionada a

fazê-lo. A escolha da interação face a face ou de outros mecanismos de comunicação vai depender diretamente da dimensão do problema motivador da conversa; 2) a comunicação face a face, apesar de eficaz e eficiente para a solução de conflitos, é insuficiente para restaurar danos provocados pela disjunção entre discurso e prática.

O autor confirma ainda a existência de uma teia articulada de influências que começa pela comunicação face a face com a comunidade próxima e se expande, com naturalidade, para outras instâncias.

Em um ambiente relacional, o diálogo de consenso possibilita a uma organização trabalhar as múltiplas influências da percepção acerca de uma organização que um stakeholder tem sobre a do outro. A credibilidade adquirida na comunidade estimula a boa vontade da mídia, que por sua vez, fortalece a posição da organização diante do governo e tem reflexos na avaliação de risco dos acionistas e dos clientes. Há uma rede de influências sendo tecida. (FERREIRA, 2011, p. 315-316).

Essa cadeia articulada de influência reforça a observação de Martins (2012), apresentada na seção 3.1, sobre o prestígio que uma organização pode desfrutar a partir das práticas de comunicação face a face em seu ambiente interno. Outra organização que investiu nas interações presenciais com o público externo é a Embrapa Pantanal, cuja análise teórica e pesquisa empírica serão exploradas no próximo capítulo.

Capítulo III – ESTRUTURA E POLÍTICA DE COMUNICAÇÃO

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