• Nenhum resultado encontrado

Comunicar para relacionar

No documento Download/Open (páginas 119-124)

Capítulo IV – A COMUNICAÇÃO ENQUANTO RELACIONAMENTO

2. Comunicar para relacionar

Para entender o conceito de metacomunicação é preciso, antes, conhecer um pouco sobre a linha de pensamento dos teóricos do Colégio Invisível. Essa corrente adota cinco axiomas conjeturais da comunicação, ou seja, se um deles falhar, a comunicação pode não se concretizar: 1) é impossível não comunicar; 2) toda a comunicação tem um aspecto de conteúdo e um aspecto de relação (metacomunicação); 3) a natureza de uma relação está na contingência da pontuação das sequências comunicacionais entre os comunicantes (observando a sucessão de mensagens é possível deduzir uma lógica da comunicação); 4) os seres humanos comunicam de forma digital e analógica (ou verbal e não-verbal); 5) todas as trocas comunicacionais são simétricas (relações baseadas na igualdade e minimização das diferenças) ou complementares (relações entre diferentes, no sentido de hierarquia social) (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 2007).

Boa parte do pensamento que fundamenta a teoria se encontra no livro Pragmática da

Comunicação Humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação,

publicado em 1967 por Paul Watzlawick, Janet Helmick Beavin e Don D. Jackson, do Instituto de Pesquisa Mental de Palo Alto. Dizem eles que “desde esta perspectiva da pragmática, todo o comportamento, não só a fala, é comunicação; e toda a comunicação – mesmo as pistas comunicacionais num contexto impessoal – afeta o comportamento”

(WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 2007, p. 19)4

.

Embora as concepções desse grupo subsidiem a essência deste capítulo, é preciso esclarecer que o axioma “Não se pode não comunicar” revela-se incoadunável com o entendimento de comunicação adotado por esta tese. Seria adequada a substituição do verbo “comunicar” pelo “sinalizar”, conforme explica Marcondes Filho (2010, p. 15, grifo do autor).

Todos somos, em princípio, emissores. O tempo todo estamos emitindo sinais. Os pesquisadores da Faculdade Invisível, em torno de Gregory Bateson, chamam isso de comunicar, “tudo comunica, não dá para não comunicar”, quando, mais apropriado – diríamos nós – seria dizer que tudo sinaliza, não dá para não sinalizar. Comportar-se é sinalizar; se eles dizem que comunicação, assim como comportamento, não tem negativo, dizemos nós que o sinalizar não possui negativo: não dá para não sinalizar.

O principal argumento de Marcondes Filho é que a comunicação se concretiza a partir de uma decisão do receptor, e não do emissor. Os sinais disponibilizados o tempo todo em todos os lugares podem se converter em informação a partir do momento em que recebem a atenção do receptor; e potencialmente se transformam em comunicação se o outro percebe, entende e reage ao que foi informado.

Ainda no cerne desse dilema, Watzlawick e Marcondes Filho divergem em relação à intencionalidade da comunicação. Em entrevista concedida a Carol Wilder (1978), Watzlawick explica que a comunicação pode ocorrer mesmo em “uma total ausência de intencionalidade”. Para esse estudioso, ela não se concretiza em apenas uma situação: se não houver pelo menos outra pessoa atuando como interlocutora5.

Para o pesquisador brasileiro, no entanto, a aceitação da comunicação sem intenções deve ser vista com ressalvas, pois “mesmo negando que se queira comunicar, do ponto de vista do inconsciente, há intenções, mesmo na postura, no silêncio e no não-comunicar” (MARCONDES FILHO, 2011, p. 112). Essa dissonância é o único senão que esta pesquisa atribui ao pensamento de Palo Alto, o que não compromete a adoção das outras quatro premissas.

O axioma a seguir define metacomunicação: “Toda a comunicação tem um aspecto de conteúdo e um aspecto de comunicação tais que o segundo classifica o primeiro e é, portanto, uma metacomunicação”. Para chegar a essa proposição, os autores se basearam nas

4 Pragmática deve ser entendida como efeitos comportamentais da comunicação. No próximo capítulo será observado que as chamadas “pistas comunicacionais” de Palo Alto correspondem às “deixas simbólicas” de Thompson (2008) e aos “signos” de Schutz (1979b).

5 Como exemplo, Watzlawick questiona: “a árvore que cai na floresta faz barulho se ninguém estiver lá para ouvir?” (WILDER, 1978, p. 42, tradução nossa).

noções de “relato” e “comando” apresentadas por Bateson (1951)6

. Eles entendem que a comunicação tem o poder de definir a relação, ou seja, ela não apenas transmite um conteúdo (relato) como impõe um comportamento (ordem).

Interpretando a pragmática, Marcondes Filho (2010, p. 290) acrescenta que as relações representam o “verdadeiro princípio organizador do diálogo. As relações passam cólera, delicadeza, agressividade, afeto porque nelas estão embutidos certos direitos, privilégios, posições e hierarquias; é nelas que se assentam as competições, as disputas de poder”. A observação do professor é válida para quaisquer tipos de relacionamentos, porém, pode se mostrar especialmente significativa na instância da comunicação organizacional, onde hierarquia, direitos e disputas de poder determinam os rumos da metacomunicação e, por vezes, do próprio negócio.

Encaixa-se aqui uma reflexão a respeito dessa disputa de poder propiciada pela construção de relacionamentos pelas organizações. Há determinado consenso de que as empresas procuram relações harmônicas para legitimar suas posições no mercado. Porém, nem toda organização segue essa conduta. Para algumas interessa expor o conflito, o confronto e o desequilíbrio nas relações de poder, conforme pode ser observado em organizações criminosas, terroristas e mesmo em movimentos sociais fundamentados no embate político ou ideológico. Fonseca Júnior (2005) defende que a comunicação organizacional compreenda a dinâmica de organizações criminosas levando-se em consideração alguns avanços passíveis de serem apreendidos a partir de tais experiências. “Enquanto o interesse pelas organizações criminosas, sob o aspecto ético, está associado a práticas nada confiáveis, no âmbito da epistemologia e da ontologia esse interesse pode representar a oxigenação da Comunicação Organizacional” (FONSECA JÚNIOR, 2005).

Verifica-se, na atualidade, a intensa utilização de tecnologias de informação por organizações criminosas, como as brasileiras PCC (Primeiro Comando da Capital) e Comando Vermelho, ligadas ao universo carcerário, bem como por organizações terroristas baseadas em outros continentes, como a Al-Qaeda, Estado Islâmico e Boko Haram. Vídeos com cenas de violência explícita preparados pelos integrantes desses grupos têm sido distribuídos pela internet e são reproduzidos frequentemente por emissoras de televisão, com cortes. As tecnologias tiram essas organizações do anonimato em pouco tempo. No entanto, as estratégias de comunicação face a face dessas organizações ainda são pouco exploradas

6

Nesse texto, Bateson afirma que toda mensagem em trânsito tem dois tipos de significado: ela é uma declaração ou relato sobre o que ocorreu antes e, ao mesmo tempo, é uma ordem, comando ou estímulo para o que vai ocorrer posteriormente.

midiatica e cientificamente.

No caso do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que investe em veículos próprios de comunicação por considerar pouco democrática a mídia brasileira, há relatos de situações de comunicação face a face, especialmente quando o interesse é ampliar o quadro de participantes e formatar uma política de boa vizinhança com o entorno dos acampamentos.

A comunicação é encarada pela organização como um instrumento para a formação de quadros políticos e a conquista de suas reivindicações. No documento Por uma política de Comunicação do MST, formulado em março de 1995, fica clara essa preocupação. No texto, é sugerida a criação de um coletivo que trate do assunto, define-se que a relação com os meios de comunicação seria feita por alguns dos dirigentes mais capacitados e orienta- se que todos mantenham bons contatos com jornalistas, além de indicar a produção de materiais de qualidade para serem divulgados. (FONSECA, 2006, p. 10).

Assim como outras empresas, o movimento social elabora sua política de comunicação e, também por isso, as estratégias adotadas não devem ser ignoradas pelas pesquisas de comunicação organizacional. Isabel Costa da Fonseca (2006) observa que os acampamentos construídos com barracas de lona funcionam como espaço de estímulo aos laços de solidariedade e troca comunicativa. A articulação em rede, nessa organização, valoriza também os contatos presenciais: “agenda-se reuniões com as famílias em suas casas e em „espaços públicos‟ das comunidades, forma-se grupos de sem terra para uma ocupação, realiza-se assembleias, organiza-se encontros regionais e assim por diante” (FONSECA, 2006, p. 13-14).

Embora o enfrentamento se configure como diretriz do MST para expor sua luta em favor da reforma agrária diante de uma conjuntura considerada desfavorável à organização, percebe-se que alguns relacionamentos buscam a cordialidade também como mecanismo de legitimação e desenvolvimento. Assim como quaisquer outras organizações, o grupo busca constituir uma identidade por meio da utilização de recursos simbólicos.

Em alguns casos, organizações que planejam sua comunicação em ações de confronto estão à procura da visibilidade proporcionada pela mídia. Atos violentos, como a decapitação de cristãos ou o sequestro de adolescentes na África, são noticiados com grande destaque pelas grandes corporações midiáticas. A ciência da comunicação já começa a questionar os efeitos desse tipo de divulgação. De qualquer forma, ainda que os embates sejam a

formatação desejada para a autoapresentação de algumas organizações, sabe-se que com alguns públicos específicos o relacionamento cultivado deverá ser amistoso ou, ao menos, consensual.

Marcondes Filho (2011) reconhece que os pesquisadores de Palo Alto não chegaram a aprofundar o debate sobre as relações de poder na metacomunicação, mas considera que abriram caminho para essa discussão. “É esse plano – o das relações de poder, segundo nós – que detém a posição dominante e que, em última análise, valida a comunicação” (MARCONDES FILHO, 2011, p. 117).

Para os integrantes do Colégio Invisível, ao menos outros dois fatores interferem na constituição dos relacionamentos: as manifestações não-verbais expressas durante o contato e o contexto em que a comunicação ocorre. Atentam que o contexto sempre restringe a comunicação, em maior ou menor grau, e incluem nesse caráter limitante a própria troca de conteúdos. “Numa sequência comunicacional, toda e qualquer troca de mensagens restringe

o número dos possíveis movimentos seguintes” (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON,

2007, p. 120, grifo dos autores).

Os três teóricos explicam que o termo metacomunicação tem origem na analogia com a matemática, considerando que “a estrutura formal da matemática é um cálculo; e metamatemática é esse cálculo expresso” (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 2007, p. 36). O prefixo “meta” indica ir além, transcender o radical “comunicação”, sentido condizente com a situação em que a ação comunicativa pretende o estabelecimento de relações através da interação social.

Watzlawick, Beavin e Jackson (2007, p. 36, grifos dos autores) reforçam que a metacomunicação se manifesta “quando deixamos de usar a comunicação para comunicar, mas a empregamos para comunicar sobre comunicação, como inevitavelmente acontece na pesquisa de comunicação, então recorremos a conceitualizações que não são parte da comunicação, mas sobre esta”.

Considerando então o aspecto relacional da comunicação humana mais importante que a troca de dados, os teóricos de Palo Alto oferecem contribuições metodológicas que ajudam a caracterizar essa abordagem. Eles recomendam, por exemplo, que para entender “por que” uma determinada relação existe, deve-se tentar averiguar “como” ela existe. A adaptação da pergunta é um modo de identificar a natureza do relacionamento sob uma perspectiva que, certamente, vai considerar elementos da comunicação na resposta.

Recorde-se que, em toda e qualquer comunicação, os participantes oferecem- se mutuamente definições de suas relações ou, em termos mais categóricos, cada um deles procura determinar a natureza da relação. Do mesmo modo, cada um reage com a sua definição das relações, a qual pode confirmar, rejeitar ou modificar a do outro. (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 2007, p. 121).

Sem o reconhecimento dessas definições mútuas, relacionamentos correm o risco de se dissolver, já que eles carecem de regras para se tornarem estáveis. A perspectiva teórica originada em Stanford assegura, assim, o princípio de que a comunicação traduz-se em relacionamento. De fato, esse parece ser o propósito de organizações que investem em projetos de comunicação face a face: construir relacionamentos sólidos, duradouros e de qualidade com seus públicos. Em contrapartida, o que impediria que a finalidade de promover esses relacionamentos fosse também para melhor comunicar?

No documento Download/Open (páginas 119-124)