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Relacionamento: conceito em permanente construção

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Capítulo IV – A COMUNICAÇÃO ENQUANTO RELACIONAMENTO

1. Relacionamento: conceito em permanente construção

Goffman2, Watzlawick etc” (MATTELART; MATTELART, 2004, p. 67). Nessa mesma época, Schutz produz seus estudos fenomenológicos na New School for Social Research, instalada na cidade de Nova York.

O fato é que essas linhas de pensamento inovaram a forma de enxergar o processo comunicativo naquela época e, não sem motivos, estão sendo retomadas por pesquisadores contemporâneos. É bastante provável que o processo de midiatização justifique esse resgate: a comunidade científica procura compreender o fenômeno da comunicação envolvida nas relações sociais no cenário dominado pela liquidez.

FIGURA 7. Prédio central da Universidade de Stanford, em Palo Alto, 2014

Fonte: Arquivo pessoal

A validação da hipótese requer, ainda, profunda discussão a respeito do planejamento e adoção dos encontros presenciais por organizações que objetivam construir, reforçar ou manter relacionamentos com stakeholders. Mais do que simples ilustração da proposição teórica, o conhecimento científico das experiências organizacionais torna-se emblemático para a sistematização do papel da comunicação face a face no campo empresarial globalizado, conectado, midiatizado.

1. Relacionamento: conceito em permanente construção

1 Biólogo, especialista em história natural, antropólogo, teórico da comunicação, da psiquiatria e da cibernética, Bateson concebia os organismos em sólida relação com o meio ambiente. Ele via a comunicação humana como um jogo em que é preciso interpretar de forma coerente o que é dito (comunicação digital) e a forma de dizer (comunicação analógica). Sua obra destaca a comunicação não-verbal (MARCONDES FILHO, 2011). 2 A citação de Goffman por Mattelart e Mattelart (2004) merece um esclarecimento. Ora o pesquisador de origem canadense é incluído no grupo dos interacionistas (p. 137), ora entre os representantes de Palo Alto (p. 67). Ao invés de confundir, essa dupla identificação pode indicar uma real aproximação entre as duas correntes teóricas. A discussão sobre o posicionamento de Goffman será retomada posteriormente.

O ponto de partida para problematizar o conceito de relacionamento está em definições prévias propostas por sociólogos e filósofos que estudaram a fundo questões da sociabilidade. Um deles é Max Weber (2002, p. 45), para quem relação social é “a situação em que duas ou mais pessoas estão empenhadas em uma conduta onde cada qual leva em conta o comportamento da outra de uma maneira significativa, estando, portanto, orientada nestes termos”. Levar em conta o comportamento do Outro pressupõe determinado grau de atenção a esse indivíduo durante certo período – fundamento que aproxima as visões de Weber e Schutz.

Definição na mesma linha é proposta por Habermas (1983a apud FERREIRA, 2011, p. 87), que utiliza o termo “relacionamento social” para se referir ao “comportamento dos diversos atores, que é reciprocamente relacionado e orientado, em seu conteúdo e significado. O conceito de relacionamento social levaria o sujeito social a ponderar sobre os seus interesses e os dos demais sujeitos”. Nesse caso, há interesses outros na construção do relacionamento que extrapolam a instância pessoal, e eles estão devidamente justificados pela inclusão do “social” para qualificar o tipo de relação. Há que se atentar, no entanto, para a orientação recíproca observada por Habermas, isto é, a noção de mutualidade o ajuda a descrever o fenômeno.

Outra questão discutida por Habermas está vinculada à continuidade dos relacionamentos. Ao abordar a interação como sistema, teóricos de Palo Alto defendem que as sequências de comunicação ocorrem durante um período de tempo, estabelecendo determinado padrão. Relações duradouras, portanto, dependeriam de uma continuidade nos contatos.

Já para Habermas (1983a), a cada contato, um acordo está sendo estabelecido, ou seja, é um processo fluido e em contínua transformação. Acompanhar a trajetória das mudanças é necessário para ajustar as estratégias e compreender melhor, a cada contato, quem é o interlocutor, suas intenções, posição na rede e prováveis reações. [...] A persistência em manter canais de diálogo é um caminho que leva a revelar quem somos e quais as nossas reais intenções, motivações e capacidade de nos reinventarmos. (FERREIRA, 2011, p. 230).

A ideia de relacionamento está naturalmente associada à durabilidade, à construção de um processo de interação recíproca que se estenda durante determinado tempo, seja por meio da repetição constante de padrões, seja pelas transformações recorrentes sugeridas por Habermas. Nota-se, no entanto, que a continuidade ou interrupção de uma relação social está

condicionada a uma série de fatores, incluindo interesse, empatia, intimidade, motivação, afinidade, conveniência, prazer, necessidade, coerção, respeito, curiosidade, ideologia, entre outras.

Uma terceira contribuição é apresentada por Schutz, criador do conceito de “relacionamento do Nós”, antecipado no capítulo 1. Para esse autor,

é somente dentro do relacionamento do Nós que posso vivenciar concretamente você num determinado momento de sua vida. Vamos colocar esses pontos em termos de uma fórmula: posso viver dentro dos seus contextos de significado subjetivos somente na medida em que vivencio você diretamente dentro de um relacionamento do Nós atualizado e dotado de conteúdo. (SCHUTZ, 1979a, p. 183-184).

Para o pensador, o relacionamento se concretiza a partir do momento em que os interlocutores captam as experiências vividas pelo Outro, por meio da presença corporal e dos sinais que o corpo revela da consciência alheia. “Envelhecer juntos” é uma prática possível se as experiências compartilhadas forem simultâneas. Outra observação bastante original desse autor é sua convicção de que o relacionamento só pode ser percebido reflexivamente a partir do momento em que o contato presencial é suspenso.

Quando você e eu estamos imediatamente envolvidos um com o outro, toda experiência é colorida por esse envolvimento. Na medida em que vamos pensar sobre as experiências que temos em conjunto, aí temos que nos distanciar um do outro. Se vamos focalizar nossa atenção no relacionamento do Nós, temos que parar de focalizá-la um no outro. Mas isso significa sair do relacionamento face a face, porque somente nesse último é que vivemos dentro do Nós. (SCHUTZ, 1979a, p. 184, grifo do autor).

Portanto, as proposições de Schutz invocam a necessidade de o relacionamento transcender o simples contato e emergir na consciência dos participantes, manifestar-se subjetivamente enquanto relação. Em todas as definições apresentadas, a questão da alteridade adquire caráter decisivo. Não resta dúvida de que relacionamento exige atenção entre as partes e conhecimento dos contextos onde a interação se desenvolve. Esse contexto, por sua vez, não se restringe ao ambiente físico, pois incorpora também matizes histórico-culturais que possam estar envolvidas nos relacionamentos, sejam eles conjugais, familiares, organizacionais ou sociais. Essa última característica acrescenta um elemento novo à construção conceitual, já que mudanças contextuais podem implicar transformações na concepção e na forma de se relacionar.

Há poucas décadas, por exemplo, a expressão “relacionamento virtual” mostrava-se distante da cotidianidade e da análise acadêmica. Trata-se, na modernidade líquida, de uma prática comum cujas especificidades os cientistas ainda procuram entender com exatidão. Bauman (2011) é um dos estudiosos que questionam se o padrão de conectividade que permite interações sociais praticamente ininterruptas traz algum tipo de vantagem pessoal. “As relações virtuais contam com teclas de „excluir‟ e „remover spams‟ que protegem contra as consequências inconvenientes (e principalmente consumidoras de tempo) da interação mais profunda” (BAUMAN, 2011, p. 23).

Retomando o conceito de virtual trabalhado no primeiro capítulo, os relacionamentos

virtuais seriam aqueles que precedem os relacionamentos atuais, ou seja, apresentam

potencialidade de vir a ser. Ainda não são, e justamente por ainda não serem, estariam fortemente vinculados ao imaginário dos envolvidos, ao universo das sensações estimuladas – e equidistantes do relacionamento do Nós, atualizado, concreto e consciente de Schutz. O contato virtual tende a se tornar um relacionamento, porém, nada garante que será efetivado.

De qualquer modo, a comunicação atua, no mínimo, como fio condutor para a criação de relacionamentos e de vínculos entre interlocutores. Porém, pode representar algo mais. Na próxima seção serão abordadas possíveis inter-relações entre os dois conceitos – relacionamento e comunicação –, discussão que possibilita aprofundar o conhecimento teórico-conceitual antes de analisar se as relações face a face estabelecidas nas organizações contribuem ou não para essa finalidade.

1.1 Relacionamento e comunicação: identificando inter-relações

Qual é, no entanto, a relação entre comunicação e relacionamento? Pode-se dizer que há interdependência entre os dois conceitos? Existe comunicação sem relacionamento ou relacionamento sem comunicação? São termos equivalentes? A abordagem de Baxter e Montgomery (1996 apud BERGER, 2005, p. 428, tradução nossa) coloca a comunicação como origem dos relacionamentos. “A perspectiva dialética relacional postula que os relacionamentos pessoais surgem através da comunicação, e mesmo que os parceiros de relacionamentos pareçam ter a mesma visão, as perspectivas deles são necessariamente diferentes; assim, a completa fusão entre eles pode não ocorrer”.

De acordo com as pesquisadoras norte-americanas3, as relações próximas encarnam situações antagônicas, como a de interdependência e a de independência. Ou seja, estar em

comunicação ou estar se relacionando com não implica, necessariamente, aliança permanente

ou pensamento uníssono. Por meio das práticas comunicativas, os agentes sociais fazem emergir as contradições que organizam suas relações.

Wolton também propõe algumas interligações entre os dois conceitos. O pensador apregoa que “só a comunicação possibilita o gerenciamento dessa relação ambivalente entre eu e o outro” (WOLTON, 2004, p. 56), ou seja, ele atribui à comunicação a possibilidade de eventual articulação e controle sobre o relacionamento. A própria definição que esse estudioso concebe de comunicação envolve a noção de relacionamento: “a comunicação é o aprendizado da convivência num mundo de informações onde a questão da alteridade é central” (WOLTON, 2010, p. 88). Aqui, a ideia de relacionamento subjaz à questão do Outro: saber se relacionar é pré-requisito para aprender a comunicar.

Para George Mead, conforme visto anteriormente, a comunicação configura-se como o

eixo explicativo das interações sociais, que, potencialmente, podem vir a se transformar em

relacionamentos. Estudiosa da obra de Mead, França, V. (2008, p. 75) pontua que

é a comunicação que permite a superação dos dualismos contra os quais ele [Mead] se batia: indivíduo/sociedade, interior/exterior, mente/conduta. Assim é que as palavras “comunicação”, “processo comunicativo”, “linguagem” são repetidas reiteradamente ao longo dos vários capítulos de seu livro, o que nos permite e nos incita a explorar o uso e a natureza desse conceito para o autor.

Ainda segundo a autora, Mead presume existir comunicação “quando os gestos se tornam símbolos, quando eles fazem parte de uma linguagem e trazem um sentido partilhado por todos os indivíduos envolvidos na ação” (FRANÇA, V., 2008, p. 76). A comunicação seria, assim, elemento básico para que sujeitos em interação obtenham sintonia para fins de compreensão mútua durante o processo interativo.

Para decifrar melhor essa inter-relação é crucial conhecer o conceito de “ato social” utilizado pelo pensador americano. De acordo com Mead (1973, p. 55, tradução nossa), o ato social pode ser entendido como “um todo dinâmico – como algo que está acontecendo –, do qual nenhuma parte pode ser considerada ou entendida em si mesma – como um complexo processo orgânico que está implícito em cada estímulo particular e em cada reação individual

3 Em 2014, Leslie Baxter atuava como professora da University of Iowa e Barbara M. Montgomery era decana da Millersville University.

envolvidos nele”.

O ato social não equivale aos conceitos de relacionamento já estudados, mas aproxima-se sobremaneira da ideia de uma cena conversacional, já que é nesse ato que estímulos e respostas serão intercambiados a partir de um mecanismo de significação. A comunicação subsidia e explica esse processo, que permite a interação entre humanos a partir do uso de símbolos.

Além das inter-relações de origem, explicação, articulação e controle entre os dois conceitos, há uma corrente teórica que justapõe comunicação e relacionamento, fundindo-os de forma bastante sólida. Para os estudiosos de Palo Alto, a inter-relação existente entre os dois conceitos ganha o status de razão de ser: o relacionamento é encarado como propósito da comunicação. É hora de desvendar o que eles denominam metacomunicação.

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