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O conceito de mediação e a prática da comunicação mediada

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Capítulo I – A SOCIEDADE MIDIATIZADA E AS ESCOLHAS DAS ORGANIZAÇÕES

2. O conceito de mediação e a prática da comunicação mediada

No universo da pesquisa em comunicação, o termo mediação pode ser considerado, no mínimo, ambíguo, quando não, complexo. Seu significado vai variar de acordo com o contexto do que se pretende classificar como mediado. O entendimento mais técnico e simplista está relacionado ao sentido de “intermediação”, ou seja, um instrumento que se interpõe entre sujeitos interlocutores. De acordo com a definição de Thompson (2008, p. 78- 79),

as interações mediadas implicam o uso de um meio técnico (papel, fios elétricos, ondas eletromagnéticas, etc.) que possibilitam a transmissão de informação e conteúdo simbólico para indivíduos situados remotamente no espaço, no tempo, ou em ambos. [...] Os participantes não compartilham o mesmo referencial de espaço e de tempo e não podem presumir que os outros entenderão expressões denotativas.

O próprio Thompson (2011, p. 193) afirma que “mesmo uma simples troca de expressões verbais numa situação face a face pressupõe um conjunto de aparelhos e condições técnicas (laringe, cordas vocais, lábios, ondas de ar, ouvidos, etc.) [...]”. Convém, no entanto, distinguir as mediações estritamente técnicas – aquelas que são artificialmente criadas ou

construídas – daquelas que se encontram naturalmente presentes no ambiente e no corpo humano, como os itens enumerados entre parênteses pelo autor.

Com base nessa caracterização, pesquisadores de várias nacionalidades têm adotado as siglas CMC (Comunicação Mediada por Computador) ou CTM (Comunicação Tecnologicamente Mediada) para referir-se às interações mediadas por objetos técnicos. Este será o entendimento para o conceito de comunicação mediada nesta tese.

No entanto, o conceito de mediação se complexifica quando passa a envolver elementos que circundam o processo comunicacional, especialmente na instância da recepção. Neste caso, o sentido é diverso e as complicações começam pelas dificuldades de tradução. Pesquisadora do Reino Unido, Livingstone (2009) constata imprecisões ao consultar colegas de idiomas esloveno, polonês, tibetano, islandês, português, búlgaro, estoniano, francês e alemão e verificar que os sentidos para “mediation” não coincidem nessas distintas línguas.

Os significados de “mediation” em inglês e “mediação” em português divergem. De acordo com Livingstone (2009, p. 4, tradução nossa, grifo da autora), “em português,

mediação é usado como um termo acadêmico para a negociação dos significados dos meios

entre produtores e consumidores, apesar de este não estar no uso rotineiro nem ser nosso uso do termo em inglês”.

Há ainda o conceito foneticamente semelhante de “midiação”, proposto por Thompson (2011), que vem do original em língua inglesa “mediazation” e é utilizado no contexto social e histórico da transmissão de formas simbólicas da cultura moderna. O processo que ele descreve como “midiação” trata da “proliferação rápida de instituições e meios de comunicação de massa e o crescimento de redes de transmissão através das quais formas simbólicas mercantilizadas se tornaram acessíveis a um grupo cada vez maior de receptores” (THOMPSON, 2011, p. 21). Difere, portanto, do sentido de “mediação” adotado pelos estudos latino-americanos.

Outra variante é apresentada por Schutz, um teórico da comunicação face a face, quando se refere à ausência dessa situação. Ele chama de “mediatidade” o processo de comunicação indireta com os “contemporâneos”8

:

Para esclarecer esse conceito de “mediatidade”, examinemos duas formas diferentes através das quais venho a conhecer um contemporâneo. A primeira forma, já mencionamos: meu conhecimento é derivado de um encontro face a

8

De acordo com Schutz (1979a, p. 217), contemporâneo “é alguém que sei que coexiste comigo no tempo, mas que não vivencio imediatamente. Esse tipo de conhecimento é, por conseguinte, sempre indireto e impessoal”. Já o interlocutor na situação face a face é tratado pelo autor como “semelhante”.

face anterior com a pessoa em questão. Mas, desde então, esse conhecimento tornou-se mediato ou indireto porque saiu do alcance de minha observação direta. Pois faço inferências com relação ao que está se passando em sua mente na hipótese de que ela permanece bastante igual desde que a vi pela última vez, embora, noutro sentido, eu saiba muito bem que ela deve ter mudado, por ter absorvido novas experiências ou simplesmente em virtude de ter envelhecido. Mas, quanto a como ela mudou, o meu conhecimento ou é indireto ou inexistente. (SCHUTZ, 1979a, p. 218).

A análise de Schutz concebe o mundo estruturado em termos do alcance real, isto é, do aqui e do agora. Embora essa perspectiva não coincida com o mundo midiatizado, que retém outro tipo de estruturação, a contribuição do autor revela-se expressiva para a constituição do conceito em questão, especialmente por associar o conhecimento indireto com a impessoalidade e a necessidade de inferências.

Considerado o precursor da teoria da mediação social, o espanhol Manuel Martin Serrano (1976, p. 180, tradução nossa) define mediação como “a atividade de controle social que impõe limites ao que poderia ser dito, e às maneiras de dizê-lo, por meio de um sistema de ordem”. Ele teria inspirado outro espanhol, Jesús Martín-Barbero9

, a aprofundar os estudos sobre o tema na América Latina.

Na década de 1980, Martín-Barbero preconizava que a pesquisa em comunicação deveria migrar seu foco dos meios de comunicação para as mediações.

Eu, desde o começo, por intuição, me opus à visão hegemônica, norte- americana, de estudar os efeitos dos meios. Eu nãonegava a importância dos meios, mas dizia que era impossível entender aimportância, a influência nas pessoas, se não estudássemos como as pessoasse relacionavam com os meios. O que eu comecei a chamar de mediações eram aqueles espaços, aquelas formas de comunicação que estavam entre a pessoa que ouvia o rádio e o que era dito no rádio. [...]Mediação significava que entre estímulo e resposta há um espesso espaço de crenças, costumes, sonhos, medos, tudo o que configura a cultura cotidiana. (MARTÍN-BARBERO, 2000, p. 154).

O conceito de mediação, bem como a teoria da mediação social proposta por Martin Serrano, será retomado e aprofundado no capítulo 7. Por ora, cabe problematizar a comunicação mediada por tecnologias, disseminada nas organizações inseridas na sociedade midiatizada. Se, por um lado, a adesão à CTM representa avanços incontestáveis nas possibilidades de contatos entre interlocutores, por outro, a onipotência da técnica preocupa

9 Nascido na Espanha, Martín-Barbero vive na Colômbia desde 1963 e sua obra tem grande capilaridade entre pesquisadores brasileiros.

cientistas sociais contemporâneos que levantam uma discussão filosófica a respeito da virtualização dos relacionamentos.

Alguns deles consideram a comunicação direta, sem artefatos técnicos, mais próxima de uma perspectiva humanista e apontam para possíveis “perdas” que acompanhariam o abandono desse hábito. Outros defendem o avanço tecnológico das práticas comunicacionais e descartam efeitos sociais negativos, classificando como “conservadoras” e “resistentes” as posturas contrárias. Essas correntes dicotômicas alimentam o que José Pinheiro Neves (2006) denomina de perspectivas tecnofóbicas e tecnofílicas da pesquisa em comunicação. A primeira, segundo ele, teme uma sociedade dominada por robôs; a segunda aposta em uma sociedade ideal em que as máquinas permitem uma vida feliz10.

Um dos autores que refletem a respeito da incidência da comunicação mediada sobre a sociedade é Zygmunt Bauman (2001, 2004, 2008, 2011), que vem insistindo na metáfora do “líquido” para descrever a época atual11

. Nesses tempos de modernidade líquida, segundo Bauman (2011, p. 27, grifo do autor), “[...] o contato face a face é substituído pelo contato tela a tela dos monitores; as superfícies é que entram em contato. [...] O que se perde é a intimidade, a profundidade e durabilidade da relação e dos laços humanos”.

O sociólogo acrescenta que não vê sentido na multiplicação das possibilidades de conexão e a proporcional solidão causada pela falta de engajamento e de interesse. Na visão dele, ainda que involuntariamente, os prejuízos subjacentes à profunda automatização das relações humanas devem superar, e muito, suas aparentes vantagens.

Pensamento semelhante é compartilhado pelo pesquisador Dominique Wolton (2004, 2006, 2007, 2010). Para ele, “nenhuma técnica de comunicação, por mais eficiente que seja, jamais alcançará o nível de complexidade e de cumplicidade da comunicação humana” (WOLTON, 2004, p. 35). Em várias obras, o autor pontua que o maior desafio na comunicação contemporânea é compreender a alteridade:

Porque na comunicação o mais complicado é sempre o outro. Quanto mais fácil é entrar em contato com alguém, de um lado ao outro do mundo a qualquer instante, mais rápido percebemos os limites da compreensão. As facilidades de comunicação não bastam para melhorar o conteúdo da interação. (WOLTON, 2004, p. 37, grifo do autor).

10

“„Tecnófobos‟ e „tecnófilos‟ têm razão em vários dos pontos a que se apegam” (SODRÉ, 2002, p. 203). Essa classificação remete aos conceitos de apocalípticos e integrados, criados por Umberto Eco na década de 1960 para rotular aqueles que viam na cultura de massa uma ameaça à democracia e os que a defendiam por entender que abriam as portas para a cultura do lazer a milhões de excluídos (MATTELART; MATTELART, 2004). 11 “Um líquido é algo que ganha novas formas sem perder seus componentes. Mas, como todo fluido, não tem nenhum tipo de forma, está sempre se reestruturando” (MARTINO, 2009, p. 234).

Para esse pensador, há equívocos envolvendo a questão da comunicação mediada por computador; um deles é que “não há relação direta entre multiconexão e capacidade de se relacionar com o outro” (WOLTON, 2006, p. 86); outro engano seria a confusão entre comunicação e informação. Diz Wolton (2006, p. 86) que “o progresso técnico permite produzir e distribuir uma grande quantidade de informações. No entanto, isso é comunicação?”, questiona.

O pesquisador brasileiro Ciro Marcondes Filho (2001, 2004, 2005, 2008a, 2009, 2010, 2011, 2012) também se posiciona de forma reticente em relação às interações mediadas pela técnica. Ele chama a atenção para a importância da “atmosfera circundante”, configurada pelo ambiente onde ocorre a cena comunicacional, exclusiva dos encontros face a face.

Na nova realidade medial, a comunicação intersubjetiva, tetê-à-tête, direta, é substituída pelos meios de comunicação socialmente abrangentes. Desaparece a mística do olhar, da percepção do rosto, da atmosfera circundante, criadora do evento comunicacional, da noção de sentido; sai de cena a magia das múltiplas linguagens que [Gregory] Bateson chamava de “jogo da comunicação”, essa arte de desvendar a fala do outro não pelas palavras propriamente ditas, mas pelo ar, pelo jeito, pela postura, pela situação, pelo contexto, por sinais invisíveis e meramente sensoriais, pela intuição, pelo “sexto sentido”. Todo um campo do relacionamento humano passa agora a competir com uma nova situação em que tudo isso é convertido em sinal técnico, registrado, fixado, eternizado. Ora, para dar conta da necessidade comunicacional das pessoas, é preciso, então, que a nova realidade medial crie um substituto para a cena comunicacional do face a face. Algo tem que fazer o papel da atmosfera, da hecceidade, do campo de sensações e de forças visíveis e invisíveis que constituíam a relação direta. É a emergência do contínuo atmosférico de sentido da sociedade de massa. (MARCONDES FILHO, 2010, p. 109, grifos do autor).

Enquanto Bauman, Wolton e Marcondes Filho indicam perdas de alguns valores que comprometeriam a humanização12 no processo de comunicação mediada, pesquisas recentes apontam para outros tipos de prejuízos, de um ponto de vista mais pragmático. É o caso do norte-americano Charles Berger, para quem os efeitos contabilizados pela CTM não seriam tão recentes. “Desde a invenção da imprensa, cada vez mais da realidade que os humanos experimentam têm se tornado simbolicamente mediada” (BERGER, 2005, p. 434, tradução nossa).

12 De acordo com Martin Serrano (2009, p. 12-13), “na „humanização‟, se tem em vista de que maneira a comunicação está envolvida na vigência das normas e na prática dos comportamentos, dos quais dependem a existência e a perpetuação dos grupos humanos. [...] Em outras palavras: „a humanização começa quando o grupo social pode comunicar sobre seus vínculos com a Natureza‟”.

A leitura que o pesquisador faz é clara: como os meios de comunicação se desenvolveram bastante, as pessoas estão cada vez menos expostas à informação natural, direta, proveniente do mundo físico. Avaliando trabalhos de Borgmann (1999 apud BERGER, 2005, p. 435, tradução nossa), ele alerta que “como a experiência de realidade das pessoas torna-se cada vez mais mediada simbolicamente, elas vão perder o contato com o mundo que, cada vez mais, é representado a elas na forma digital”. Segundo ele, o uso regular da comunicação mediada por computador, com base em textos digitados, “pode influenciar os padrões de autorrevelação, estratégias de aquisição de informações, troca de turno [revezamento de fala], velocidade de fala, e interrupções quando indivíduos se envolvem em interações face a face com outros” (BERGER, 2005, p. 435, tradução nossa).

Para ilustrar essa preocupação, Berger (2005) cita dois exemplos de interferência da comunicação indireta – no contexto de uma sociedade midiatizada – sobre a rotina dos cidadãos americanos. O primeiro seria que o cotidiano dos habitantes dos Estados Unidos é agora vivido mais como um filme, devido às sutis intervenções de longo prazo das indústrias do cinema e da televisão. O segundo envolve a educação: professores que estão na ativa há mais de 30 anos percebem que os alunos contemporâneos da graduação esperam deles uma performance mais divertida, algo semelhante à atuação de um showman, em comparação com os alunos do passado. Com isso, o estudo sugere que a exposição de longo prazo à mídia do entretenimento pode alterar as expectativas daqueles que vão acompanhar uma apresentação qualquer, mesmo fora dos ambientes tradicionais de entretenimento.

Há também no Brasil exemplos da hibridez das duas modalidades, como a transposição do anonimato típico da rede para as ruas, onde ocorrem os encontros presenciais. Em junho e julho de 2013, o país viveu uma onda de protestos políticos nas capitais e cidades do interior, muitos deles marcados pela violência. A proteção que o anonimato proporciona ao indivíduo nas relações mediadas foi perseguida durante as manifestações, com o uso de máscaras e tecidos encobrindo os rostos, especialmente por aqueles que praticavam atos de vandalismo e temiam ser reconhecidos pelas imagens de televisões e jornais. Como consequência, os governos dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo aprovaram, em 2013 e 2014, respectivamente, leis que proíbem o uso de máscaras ou qualquer outra forma de ocultar o rosto de cidadãos que participem de manifestações públicas.

Da mesma forma como o anonimato das redes migrou, em parte, para as ruas, um outro fenômeno pode ser observado na mesma ocasião. Manifestantes utilizaram com frequência as máscaras conhecidas como V de Vendetta – ou V de Vingança, em português (Figura 1) – originárias de uma história em quadrinhos publicada na década de 1980, que

depois se tornou filme, em 2005, e passou a interagir em diversos graus com internautas que utilizaram as redes sociais para articular os protestos. Esses dois exemplos ilustram não apenas as nuances nos padrões de autorrevelação previstas por Berger, como também a infiltração de elementos construídos simbolicamente no universo real13.

FIGURA 1. Máscara V de Vendetta, que se popularizou nos protestos, 2013

Foto: Ana Maio

Tratando ainda dos condicionamentos da comunicação mediada sobre o comportamento humano e social, outra pesquisa recente desenvolvida na Universidade da Califórnia revela que pré-adolescentes estão perdendo a habilidade para reconhecer as emoções humanas em função do uso intensivo da comunicação tecnologicamente mediada e da consequente falta de tempo dedicado às interações face a face. Os investigadores observaram dois grupos de pré-adolescentes com idades entre 11 e 13 anos; um deles, com 51 participantes, passou cinco dias em um acampamento onde era proibido o uso de telas; o outro, formado por 54, permaneceu na rotina que incluía o uso de smartphones, videogames e televisores.

O estudo fornece evidência que, em cinco dias de interação exclusivamente presencial, sem acesso a tela ou dispositivo de mídia para comunicação, pré- adolescentes melhoraram suas métricas relacionadas ao entendimento da emoção não-verbal, significativamente mais que o grupo de controle [...]. Portanto, os resultados sugerem que o tempo em tela digital, mesmo quando usado para interação social, poderia reduzir o tempo gasto desenvolvendo

13 Para aprofundar essa discussão, caberia explorar o conceito de narrativa transmídia, elaborado por Henry Jenkins (2009, p. 138) ao estudar a cultura da convergência: “uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo”. Essa especificidade, no entanto, foge do escopo desta tese.

habilidades em leitura de sinais não-verbais da emoção humana. (UHLS et al, 2014, p. 391, tradução nossa).14

Mais uma vez, cabe aqui relacionar a insensibilidade dos pré-adolescentes estudados ao mito platônico das cavernas; vivenciando o mundo por meio de telas, ainda que em interações sociais, essa geração teria acesso apenas a projeções das coisas (indícios), e não às coisas em si. É previsível que suas habilidades em relação à identificação das emoções humanas se desenvolvam de forma distinta das gerações anteriores ao advento das chamadas novas mídias.

Uma abordagem igualmente interessante sobre a relação homem/máquina é apresentada pelo pesquisador português José Pinheiro Neves.

A solução não passa por acabar com a técnica em direção a uma pureza humana natural [...]. Trata-se de estar atento e resistir a tudo o que nos arraste para aglomerados rígidos comandados por lógicas binárias. A questão da dicotomia, da forma binária de pensar (tal como a linguagem binária e a programação linear em fluxograma associada) não é inofensiva. (NEVES, 2006, p. 130).

O grau de complexidade dos mediadores técnicos atuais explica, segundo o investigador, a tomada de consciência do sujeito contemporâneo a respeito da onipresença da técnica. O pensamento de Neves (2006) acompanha a metáfora proposta por McLuhan, dos meios como extensão do homem, ao reconhecer o notório reposicionamento da tecnologia na vida humana: “os sistemas em rede, os computadores, são próteses cada vez mais autónomas da nossa memória e da nossa capacidade de comunicação” (NEVES, 2006, p. 99).

Uma abordagem alternativa emerge, aqui, em relação a essas possíveis intervenções dos meios técnicos sobre o homem. De acordo com Pierre Lévy (1993, p. 10), a sucessão das tecnologias que apoiam o desenvolvimento intelectual não se dá por substituição, “mas antes por complexificação e deslocamentos de centros de gravidade”. Oralidade, escrita, informática e outras técnicas de armazenamento e processamento das representações que venham a surgir “tornam possíveis ou condicionam certas evoluções culturais, ao mesmo tempo em que deixam uma grande margem de iniciativa e interpretação para os protagonistas da história” (LÉVY, 1993, p. 10, grifo nosso). A concepção deste autor afasta suas reflexões

14 Os autores apontam como uma limitação do estudo a impossibilidade de distinguir se a interação com a natureza – durante o acampamento os adolescentes se envolveram com diversas atividades no campo – teria provocado efeitos sobre a leitura dos sinais não-verbais das emoções humanas; mas sugerem que essa hipótese seria contraintuitiva, considerando que as atividades desenvolvidas nesse ambiente seriam inerentemente menos sociais.

sobre as tecnologias da inteligência de quaisquer parâmetros de determinismo tecnológico. De certo modo, quando novas tecnologias se apresentam, o homem passa a incorporá- las em sua forma de ver o mundo, dentro de um processo cumulativo, e não substitutivo. O indivíduo que têm acesso aos meios digitais desenvolve habilidades e sensibilidades distintas em comparação com aquele que utilizava apenas a oralidade e a escrita. Esse know-how cria condições para lidar com situações novas, porém, não impõe transformações, segundo a perspectiva de Lévy.

Assim como o filósofo francês, Neves rejeita o viés dicotômico sobre a relação entre homem e máquina, acrescentando que “o essencial situa-se no facto de o homem deixar de ser o único actor autenticamente intencional, passando a ser atravessado pela intencionalidade da ferramenta/aparelho” (NEVES, 2006, p. 103). A autonomia e intencionalidade das máquinas explicam, em parte, a hibridez a que o autor se refere quando se trata da comunicação face a face. As relações humanas automatizadas ganham sentido outro, que não a significação direta e simplificada que as gerações anteriores ao paradigma tecnológico estavam habituadas. O equilíbrio na adoção dos objetos técnicos apresenta-se como um caminho aparentemente viável para contemplar a convivência entre homem e tecnologia.

Neves é um dos autores que trabalham o conceito de virtual, apontando para uma proximidade entre virtual e atual substituindo a dicotomia virtual/real. “Enquanto que no par virtual/real estamos no reino da analogia e da representação, no par virtual/actual já nos situamos num outro plano, diferente” (NEVES, 2006, p. 36). Segundo este autor, torna-se irrelevante a distinção entre o virtual (pensado em termos de possibilidade) e o real (percebido como algo concreto). Neves enxerga uma relação limitante entre virtual e real, porém, explica que “o virtual e o actual estabelecem uma relação gestaltista, onde a diferença é pensada em termos de intensidade: uma cor, em si é uma virtualidade que constantemente se actualiza com diferentes intensidades” (NEVES, 2006, p. 37).

Sodré (2002, p. 120) também dedica parte de seus estudos ao “virtus como metáfora” e aponta que “são muitos os exemplos, ao longo da história, de estimulações imaginativas destinadas a favorecer no indivíduo a sensação vívida de uma realidade ausente”, ou seja, a virtualidade.

Tem-se aqui a primeira formulação do sentido duplo da palavra “virtual”: aquilo que existe em potência, que não é objetivável como “coisa”. A segunda

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