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3 O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO FRENTE ÀS INOVAÇÕES DISRUPTIVAS

3.1 A ESCOLHA DO CONSTITUINTE ORIGINÁRIO PELO ESTADO REGULADOR

A Constituição Federal de 198835 inaugura uma nova fase do papel do Estado no domínio econômico ao romper com um modelo de Estado Intervencionista, caracterizado pela intensa atuação direta do Estado na economia (na produção de bens e prestação de serviços36) para o advento do Estado Regulador, marcado pela atuação indireta na economia, mormente com a atuação de entes específicos para cuidar da regulação setorial, a saber, as agências reguladoras.

Logo, a opção do Constituinte Originário pelo Estado Regulador coincide com a saída do Estado Interventor com a adoção de uma postura estatal menos intervencionista por uma posição mais norteadora, fiscalizatória e reguladora de atividades econômicas que sejam de relevante interesse público.

Em que pese essa mudança de paradigma, convém reconhecer que o Estado Brasileiro sempre foi muito grande, o que implicava em muitas atribuições de natureza eminentemente econômica, sem interesse público relevante a justificar a intervenção estatal, que em tese não lhe caberia, pois poderiam e deveriam ser prestadas pela própria iniciativa privada, tendo talvez apenas uma atuação reguladora do Estado.

Após o inchaço da máquina estatal com um boom de mais de 300 (trezentas) empresas estatais entre a década de 1960 e 197037, somado aos altos custos para manter esse Estado agigantado e sua ineficiência na produção de certos bens e prestação de determinados serviços ocasionou a necessidade de se repensar esse modelo de Estado.

Ato contínuo, tem-se na década de 1990 o desencadeamento de várias transformações econômicas para mudar o perfil de Estado brasileiro, sintetizados por Luís Roberto Barroso em três ordens: i) a extinção de parte das restrições ao capital estrangeiro; ii) a flexibilização dos monopólios estatais; e iii) privatização ou desestatização38.

35 A Constituição Federal de 1988 assim dispõe: “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. [...]” e “Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.

(BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 01 dez. 2018.). 36 MISSE, Daniel Ganen. História e Sentido da criação das agências reguladoras no Brasil. 2010, p. 11. 37 BARROSO, Luís Roberto. Estado e iniciativa na experiência constitucional brasileira. 2014. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI199284,71043-

Estado+e+livre+iniciativa+na+experiencia+constitucional+brasileira. Acesso em: 20 dez. 2019. 38 Ibidem.

Nesse contexto, em meio a reforma do aparelho estatal, mormente após o Plano Nacional de Desestatização – PND, instituído pela Lei n.º 8.031/1990, tem-se a proliferação da figura das agências reguladoras, que são autarquias de regime especial, criadas para atuar sobre a economia, em setores específicos e estratégicos, de forma politicamente independente, sendo para tanto dotadas de uma autonomia qualificada, especialmente financeira e administrativa, ponderando e harmonizando os diversos interesses contrapostos envolvidos entre os seus regulados: o Estado (interesse político39), os agentes econômicos (interesse econômico) e os cidadãos (interesses coletivos).

Essa autonomia qualificada de tais autarquias caracteriza-se uma um alto grau de tecnicidade e especialidade conferido às tais entes independentes no intuito de atender de forma racional, técnica e científica a diferentes demandas com distintos níveis de complexidade.

No entanto, passado algum tempo, o imbróglio referente às agências reguladoras há muito tempo deixou de se referir a sua autonomia qualificada, desvinculada da subordinação hierárquica ao Executivo Central, enquanto elemento indispensável a sua atuação imparcial, técnica e eficiente.

A discussão hodierna pauta-se na suposta ausência de legitimidade democrática e eficiência econômica de tais entes independentes40.

Quanto à questão da legitimidade democrática das agências reguladoras, alguns administrativistas brasileiros41 identificaram um déficit democrático atribuído a tais autarquias, na medida em que seus dirigentes não são escolhidos por meio do voto popular. Por essa razão, tais autores defendem a necessidade da participação popular no processo decisório das agências reguladoras, seja por meio de consultas de opinião, debates públicos e audiências públicas, no intuito de conferir-lhes legitimidade democrática e eficiência, trazendo um modelo de gestão pública baseado na democracia participativa, no diálogo e na consensualidade entre

39 Insta frisar que o interesse do Estado envolve também não apenas o aspecto político, mas também a faceta econômica do Estado agindo como agente econômico, ainda que tal postura seja excepcional. Nesse ponto, encontra-se um grande problema, como as agências podem atuar sem sobrepor os interesses do Estado como agente econômico diante dos demais agentes econômicos? Por isso a defesa da “distância” entre o Estado e as agências reguladoras, a fim de que possa ser preservada a autonomia dessas instituições para que não atendam a interesses específicos e se tornem órgãos meramente políticos.

40 MOURA, Kate de Oliveira. O “Déficit Democrático” das Agências Reguladoras Brasileiras: Análise do Panorama Atual de Mecanismos de Participação Popular no Processo Decisório das Agências Reguladoras para uma Legítima Regulação Setorial Democrática. 2015. 76 f. Monografia (Graduação). Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015, p. 20.

41 Sobre o tema: BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 289; JUSTEN FILHO, Marçal. Agências Reguladoras e Democracia: Existe um Déficit Democrático na “Regulação Independente”?. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. (Org.). O Poder Normativo das Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 227-250.

Administração e administrados.

Ressalta-se que a questão da legitimidade democrática das agências reguladoras tem uma característica peculiar, na medida em que a legitimidade democrática dessas agências não é conferida pelo título, isto é, pelo sufrágio universal, mas sim pelo exercício do poder.

É dizer que a legitimidade das agências reguladoras está diretamente atrelada à racionalidade econômica e à consecução dos interesses públicos pelos quais tais entes foram criados, de forma independente, técnica e eficiente.

Nessa senda, esclarece Marçal Justen Filho (2006) que “o parâmetro fundamental norteador das decisões das agências não é a vontade, mas sim a racionalidade”42. Por essa razão, a eficiência administrativa e econômica das agências reguladoras ganha tanta evidência, de modo que uma atuação ineficiente da agência reguladora estaria colocando em xeque a sua própria razão de ser.

A respeito dos limites a regulação, ensina Floriano Azevedo Marques Neto (2006)43 que a regulação estatal encontra limites nos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. No que diz respeito ao princípio da subsidiariedade, esse seria uma espécie de limite horizontal a atuação reguladora do Estado, na medida em que propõe que só caberia ao ente estatal intervir quando uma finalidade de interesse geral não consiga ser alcançada pelas instituições sociais. Desse modo, frisa-se a ideia de que as instituições sociais não dependem do Estado para resolver os seus conflitos. Logo, a Administração Pública só deveria intervir diretamente quando os valores constitucionais estejam ameaçados, e ainda assim, de forma restrita e menos prejudicial possível.

Por seu turno, o princípio da proporcionalidade diz respeito a adstrição da atividade estatal a um patamar mínimo de plausibilidade nas escolhas administrativas.

Recentemente, atrelado aos baluartes da subsidiariedade e proporcionalidade, a regulação setorial brasileira passa a gozar de um perfil mais democrático, com fulcro na consensualidade e não na coercibilidade. Por intermédio da consensualidade, o Estado valoriza soluções mais céleres, flexíveis, eficientes, eficazes e com maior legitimidade democrática face ao maior engajamento da sociedade, além de menores gastos44.

42 JUSTEN FILHO, Marçal. Agências Reguladoras e Democracia: Existe um Déficit Democrático na “Regulação Independente”? In: ARAGÃO, Alexandre Santos. (Org.). O Poder Normativo das Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 244.

43 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 4, nov./dez. 2005, jan. 2006, p. 9.

44 MOURA, Kate de Oliveira. O “Déficit Democrático” das Agências Reguladoras Brasileiras: Análise do Panorama Atual de Mecanismos de Participação Popular no Processo Decisório das Agências Reguladoras para

A mudança de perspectiva surge após a percepção do Estado de que os objetivos traçados pelo órgão regulador podem ser alcançados de uma forma mais eficaz e eficiente se a Administração Pública buscar conciliar o conteúdo do ato unilateral ao máximo de anuência que puder alcançar do maior número de sujeitos envolvidos, ao invés de atuar de forma unilateral e imperativa por meio de mecanismos verticais de intervenção regulatória, de sorte que se privilegia o convencimento e a consensualidade ao invés da imperatividade45.

Nesse prisma, o Estado Regulador ultrapassa a visão maniqueísta de Estado versus mercado, como se fossem institutos antagônicos. Ao contrário, o Estado Regulador vê ambos como um único substrato, utilizados para uma mesma finalidade: consecução de direitos fundamentais e do interesse público. Logo, “o mercado se justifica enquanto dirigido pela regulação rumo ao interesse público. O pressuposto do Estado regulador é a persistência de ambos”46.

A partir da compreensão do Estado Regulador, questiona-se, por consequência, sobre a regulação, posto que vista como pressuposto do Estado Regulador.

Na visão de Marcio Iorio Aranha47, a regulação pode ser compreendida como um método de planejamento estatal para fins de orientar setores de relevante interesse via atividade contratual, ordenadora, gerencial ou fomentadora.

Entretanto, deve-se ter em mente que a orientação da regulação é mutável e multifacetado, influenciado por uma conjuntura de fatores externos (ex: história das ideias e substrato econômico a ser regulado48). Para fins de ilustração, tem-se uma regulação que ora prioriza a legitimidade da ordem capitalista, ora a defesa do consumidor-trabalho-meio ambiente.

Tendo em vista a escolha do Constituinte pelo Estado Regulador, este não deve se manter inerte as inovações disruptivas. Ou seja, seve existir um método de planejamento para dirigir e orientar as atividades econômicas envolvidas, de sorte a consagrar os direitos fundamentais encartados na Constituição Federal (ex: direito concorrencial e livre iniciativa), bem como para a busca do interesse público.

uma Legítima Regulação Setorial Democrática. 2015. 76 f. Monografia (Graduação). Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015, p. 45-46.

45 ARAGÃO, Alexandre dos Santos. O Atual Estágio de Regulação Estatal. In: ARAGÃO, Alexandre dos Santos. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 110-111.

46 ARANHA, Marcio Iório. Manual de Direito Regulatório: Fundamentos de Direito Regulatório. 3. ed. Londres, Editora Laccademia Publishing, 2015, p. 73.

47 Ibidem, p. 31.

Contudo, compreender qual é o papel desse Estado Regulador, como intervir, em que medida, qual o tipo de regulação, em qual momento, é um verdadeiro desafio ao Direito atual. Até porque, à medida em que as inovações tecnológicas vão sendo incorporadas ao nosso dia a dia, é preciso se debater sobre os possíveis limites dessa regulação, seu tipo e de que modo o parâmetro normativo existente precisa de uma atualização, seja para endurecer as regras ou flexibilizá-las.