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3 O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO FRENTE ÀS INOVAÇÕES DISRUPTIVAS

3.3 OS DESAFIOS DECORRENTES DAS INOVAÇÕES DISRUPTIVAS PARA O ESTADO

3.3.3 Necessidade da Análise do Impacto Regulatório (AIR) no planejamento regulatório

Como explanado, não se pode simplesmente vedar absolutamente ou restringir parcialmente o ingresso de inovações tecnológicas sob a perspectiva da incerteza de suas consequências. Tal postura seria uma afronta direta aos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência. Portanto, leis nesse sentido estariam eivadas de inconstitucionalidade material.

Tendo por fundamento a Constituição Federal, qualquer restrição a um direito fundamental é medida excepcional. Logo, a interdição à livre iniciativa e livre concorrência (art. 1º, IV e 170, caput, CRFB/88) só poderá ser admitida se houver comprovação de sua absoluta e imperiosa necessidade85.

Outrossim, ainda que se justifique o afastamento dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, tal limitação apenas poderá existir e persistir se comprovada sua atual necessidade e aptidão para o alcance das finalidades almejadas86.

84 Sobre o tema: “Na Europa, a Google foi multada em quase 20 bilhões de reais pela Comissão de Concorrência em razão de acordos comerciais que privilegiavam a instalação de seus aplicativos em celulares com sistema operacional Android. Na Alemanha, a Autoridade Antitruste (Bundeskartellamt) investiga o Facebook por “abuso de posição dominante” pela coleta de dados em sites de terceiros e aplicações integradas em sua interface de programação (API). No Brasil, o Cade firmou acordos com Booking.com, Decolar.com e Expedia para cessar cláusulas que impediam que hotéis tivessem preços menores em seus próprios canais de venda”. (IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Idec realiza evento gratuito para ativistas de direitos digitais. 2018. Disponível em: <https://idec.org.br/noticia/idec-realiza-evento-gratuito-para-ativistas-de-direitos-digitais>. Acesso em: 15 dez. 2018.

85 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Limites à Abrangência e à Intensidade da Regulação Estatal. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, n. 1, jan./mar. 2003, p. 69-93.

Afinal, o Direito não pode negar a realidade fática, aproveitando-se de conceitos clássicos e muitas vezes ultrapassados para lidar com as inovações tecnológicas e disruptivas.

Igualmente, a inexistência de um controle estatal mínimo pode acarretar mais malefícios do que benefícios, na medida em que ignora as possíveis externalidades positivas e negativas que possam vir a ocorrer.87 Trazendo o exemplo do aplicativo Uber, a ausência de qualquer regulação pode ocasionar aumento nos pontos de congestionamento nas grandes cidades, com a maior demanda por transporte individual de passageiros, maiores índices de poluição ambiental, com frota crescente e ilimitada de novos motoristas de Uber.

No entanto, o que chama atenção é que as novas tecnologias se proliferam e se desenvolvem em nichos de mercado atendidos de forma precária e insuficiente pelos serviços públicos, a exemplo do serviço de transporte público.

Desse modo, analisar o papel do Estado frente às inovações disruptivas enseja, primeiramente, uma reflexão acerca da escolha do Constituinte Originário pelo Estado Regulador ao invés do Estado Interventor, que deve intervir de modo subsidiário e proporcional.

Somado a isso, se advoga pela necessidade de se aferir previamente as consequências e os efeitos de cada escolha administrativa, de modo a: i) evitar dissensos desnecessários e entendimentos contraditórios a causar confusão nos administrados; ii) insegurança jurídica com decisões que mudam a todo tempo ao sabor da vontade do ente regulador, e iii) ausência de legitimidade decisória, face a baixa ou insuficiente adesão popular no processo decisório das agências reguladoras.

Nesse sentido, diante do caráter agigantado do Estado Democrático de Direito para resolver toda a infinidade de dilemas da vida humana, Alexandre Santos de Aragão (2017)88 enfatizou a necessidade do Direito Brasileiro implantar a Análise de Impacto Regulatório (AIR) como requisito prévio ao processo decisório das agências reguladoras, especialmente no que concerne às inovações tecnológicas disruptivas.

Segundo o autor, a razão é que, nada obstante um conjunto de causas para essa figura agigantada do Estado, chama a atenção dois pontos em especial: i) o fetiche do Estado Brasileiro pela regulação do mercado; ii) apatia política, econômica e social dos cidadãos em dispor de

quadrantes da publicatio e da assimetria regulatória. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 14, n. 56, p. 75-108, out./dez. 2016, p. 80.

87 GARCIA, Flávio Amaral. Uber x Táxi: a solução pela via da regulação. Revista Direito do Estado. 2016. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/flavio-amaral-garcia/uber-x-taxi-a-solucao-pela- via-da-regulacao>. Acesso em: 07 dez. 2018.

88 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Breves notas pela adoção da Análise de Impacto regulatório – AIR no direto brasileiro. In: FREITAS, Rafael Véras de; RIBEIRO, Leonardo Coelho; FEIGELSON, Bruno (Coord.). Regulação e novas tecnologias. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 151-153.

suas liberdades e de tomarem suas próprias decisões, arcando com os ônus decorrentes dela, deixando a cargo do Estado tal incumbência.

No que se refere ao fetiche pela regulação do Estado, tal postura fica evidente com a atitude, muitas vezes, prematura e inconsequente do Estado em regular atividades sem a necessária compreensão daquela atividade, mormente no caso das inovações disruptivas. Com receio de perder sua autoridade frente aos seus regulados, o Estado lança mão de instrumentos regulatórios que lançam freio a própria inovação, esvaziando-a.

Em relação à apatia política, econômica e social dos cidadãos, interessante trazer à tona, de forma sintetizada, a explanação de Diogo Figueiredo Moreira Neto (1992) sobre o tema. No que tange à apatia política, esta corresponderia a falta de estímulo por parte da Administração quanto à participação popular dentro das decisões administrativas. Em segundo, a abulia

política consiste na rejeição dos cidadãos em participar das escolhas administrativas, por

desacreditarem na sua eficiência e legitimidade. Em terceiro, a acracia política se refere aos entraves burocráticos, especialmente no que tange ao formalismo administrativo, que impedem ou dificultam a participação cidadã89.

Pois bem, na visão de Alexandre Santos de Aragão (2017), a Análise de Impacto Regulatório (AIR) consiste em um estudo que prescinde da satisfação de três pressupostos, quais sejam: i) necessidade de comunicação, entrosamento e coordenação entre as instâncias regulatórias; ii) imprescindibilidade do caráter técnico e independente90 da agência reguladora; e iii) alcance do referido estudo para configurar uma instância de coordenação da Administração Pública, em suas mais diversas instâncias.

A ênfase a necessidade de entrosamento se contrasta com a realidade fática, marcada pelo distanciamento entre as instâncias decisórias, pela falta de diálogo entre os entes administrativos, no que tange a tomada de decisões. Tal hiato contribui para a existência de decisões contraditórias, desperdício de tempo e de dinheiro.

89 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Direito da Participação Política. Rio de Janeiro, Renovar,1992. 90 O termo mais apropriado com relação a autonomia reforçada das agências reguladoras é que elas gozam de uma autonomia frente ao Governo Central, mas isso não quer dizer que são independentes. Apesar de parecerem similares, as nomenclaturas ‘autonomia’ e ‘independência’ são ontologicamente distintas. A independência consiste em uma ampla liberdade na sua função regulatória sobre economia, configurando um órgão totalmente independente para a escolha de metas e meios utilizados para se alcançar as suas finalidades, funcionando praticamente como um quarto poder. A autonomia, por sua vez, corresponde a uma atuação regrada dentro de parâmetros legais pré-definidos. Sobre a temática: “É importante chamar a atenção para o fato de que a agência reguladora não é um quarto poder, mas sim um ente integrante da própria Administração Pública indireta e, portanto, submetida aos comandos do administrador, com a vantagem de estar protegida contra as interferências de ordem política sobre a sua atuação, que deve ser técnica” (SILVA, Eduardo Marques da. A independência das Agências Reguladoras no Brasil e o Projeto de Lei nº 3.337/2004. Rio de Janeiro. Prêmio SEAE, 2006, p. 53.)

Em segundo lugar, enfatiza-se, mais uma vez, a imperatividade do caráter técnico e independente das agências reguladoras, sob pena de perderem sua eficiência e legitimidade democrática.

Mister esclarecer que a legitimação democrática das agências não se dá pela via democrática, mas por decisões técnicas que visem a eficiência regulatória. Desse modo, compreende-se que a legitimidade democrática e a legitimidade técnica são conceitos que não se equivalem91. Enquanto que a legitimidade democrática está relacionada ao modo de composição dos órgãos por meio do sufrágio universal, a legitimidade técnica se refere a realização das melhores escolhas, tendo baliza no critério técnico-científico.

Todavia, em que pese não serem equivalentes, os conceitos de legitimidade técnica e legitimidade democrática, no contexto das agências reguladoras ganham nova roupagem. Nada obstante o fato das decisões das agências independentes serem guiadas pelas ideias de racionalidade econômica, eficiência e interesse público, não se pode dizer que tais entes seriam desprovidos de legitimidade democrática apenas sob o viés do sufrágio universal, já que inexiste participação popular na estrutura organizacional de tais entes92.

Primordial esclarecer a existência de dois tipos de legitimidade democrática, a saber, a legitimação pelo título e a legitimação pelo exercício do poder. Enquanto que a legitimidade democrática diz respeito ao meio de eleição, ou seja, àqueles legitimados porque eleitos ou porque nomeados por quem foi eleito (a exemplo das agências reguladoras); a legitimidade democrática se relaciona a ideia de legitimidade conferida pelo exercício pleno do poder, isto é, por meio da efetiva perseguição dos interesses públicos designados quando do exercício do poder.

Sob esse prisma, irretocáveis as palavras de Fábio Konder Comparato (1997)93 no

sentido de que a legitimidade do Estado se fundamenta na sua capacidade de atingir as finalidades públicas, e não na expressão da soberania popular de eleger os seus representantes94.

91 JUSTEN FILHO, Marçal. Agências Reguladoras e Democracia: Existe um Déficit Democrático na “Regulação Independente”? In: ARAGÃO, Alexandre Santos. (Org.). O Poder Normativo das Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 243.

92 MOURA, Kate de Oliveira; NETO, Otacílio dos Santos Silveira. A superação da tensão existente entre as agências reguladoras brasileiras e o regime democrático. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 9, n. 2, p. 329 - 349, 19 jun. 2017, p. 341.

93 COMPARATO, Fábio Konder. Juízo de Constitucionalidade das Políticas Públicas. In: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, v. 2. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 350-351.

94 Corroborando tal posicionamento, Fernando Martins propõe três pressupostos para a configuração da

legitimidade democrática ao exercício da função regulatória, a saber, i) o atendimento das finalidades públicas fixadas para aquele setor econômico; ii) a presença de espaços públicos de discussão; e iii) a sujeição aos princípios constitucionais. (MARTINS, Fernando Barbalho. A legitimidade democrática das agências reguladoras. Revista

Nessa senda, tendo em vista que a legitimidade da agência reguladora está diretamente atrelada a sua eficiência regulatória e a consecução de valores constitucionais, quando isto não ocorre, se coloca em dúvida a própria razão de ser da agência reguladora.

Por fim, destaca-se a urgência na construção de um aparato técnico que tenha abrangência sobre todas as esferas com competência regulatória, inibindo a existência de decisões contraditórias e o desperdício de tempo e de recursos.

Destarte, a Análise do Impacto Regulatório (AIR) tem por escopo analisar e avaliar os efeitos socioeconômicos das opções de escolha a serem adotadas pelo ente regulador, como os aspectos positivos e negativos, custo-benefício e quais os instrumentos a serem utilizados, a fim de concluir se a restrição de determinada liberdade, como medida excepcional que é, foi necessária, adequada e proporcional.