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3 O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO FRENTE ÀS INOVAÇÕES DISRUPTIVAS

3.3 OS DESAFIOS DECORRENTES DAS INOVAÇÕES DISRUPTIVAS PARA O ESTADO

3.3.4 Como se dirimir a judicialização da regulação setorial ante às inovações

O surgimento da sociedade de massas deu origem aos conflitos de massa. Novos conflitos surgem diante da complexidade de relações que se forma dentro da comunidade. Desse modo, o jurista exerce um papel fundamental ao adequar os velhos postulados as novas conjunturas fáticas e jurídicas.

Em meio ao contexto de Neoconstitucionalismo, da constitucionalização dos direitos e do fortalecimento da Jurisdição Constitucional, se nota uma hipertrofia do Poder Judiciário, com enfoque na Judicialização da Política e até mesmo no Ativismo Judicial.

Tal panorama decorre de uma crise institucional, política e moral sem precedentes pela qual perpassa a sociedade brasileira desde a redemocratização do Brasil. Para tanto, criou-se uma crença desmedida no Poder Judiciário para solucionar toda a sorte de dilemas da vida humana em sociedade, face à letargia e excessos dos demais Poderes eleitos.95

Nesse prisma, observa-se um assombroso número de demandas que chegam ao Poder Judiciário, as quais, a priori, seriam de competência dos Poderes democraticamente eleitos (Poder Executivo e Poder Judiciário), fato que pode configurar a violação da divisão harmônica entre os Poderes, cláusula pétrea da República Federativa Brasileira.

É dizer que o Judiciário tem sido instado a se manifestar em matérias que seriam de

95 SURINI, Kate de Oliveira Moura; JÚNIOR, Leonardo Medeiros. Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional: existe de fato uma liberdade decisória do gestor público insindicável pela tutela jurisdicional. XXVII Encontro Nacional do CONPEDI, Salvador: CONPEDI, 2008, p. 44-60. Disponível em: <https://www.conpedi.org.br/publicacoes/0ds65m46/7t3wrh2j/1QUKRj4I90619SWT.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2018.

competência da própria agência reguladora, o que evidencia um nítido processo de judicialização da regulação setorial.

A respeito do fenômeno da judicialização, salutar as considerações do professor Luís Roberto Barroso (2008)96:

judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo. (...) Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade.

O termo judicialização se refere ao fenômeno caracterizado pela atuação do Poder Judiciário na decisão de inúmeras questões sociais e políticas ao invés do Congresso Nacional ou do Poder Executivo, os quais têm por baluarte o voto popular. Portanto, a judicialização promove, como consectário lógico, a transferência de poder para os tribunais e juízes, de sorte que as decisões proferidas acerca dessas matérias de cunho eminentemente político são feitas diferentemente no que tange a forma de argumentação e a participação da população.

Com o desiderato de sistematizar o tema, Luís Roberto Barroso (2008) elenca três causas para a judicialização. A primeira delas seria a Redemocratização do Brasil, cujo ápice se deu com a Constituição Federal de 1988. Isso porque com a Carta Cidadã, o Poder do Judiciário passou a ter amplo poder para garantir a força normativa da constituição, até mesmo em conflito com os demais poderes. Ademais, o ambiente democrático fomentou a cidadania, promovendo, por conseguinte, uma maior conscientização popular acerca de seus direitos, o que ocasionou um aumento vultuoso da procura pelos juízes de tribunais. Ocorreu, porquanto, um indubitável fortalecimento do Poder Judiciário e um aumento da demanda pela justiça.

A segunda causa consiste na constitucionalização abrangente, uma vez que considerando o caráter analítico da Constituição brasileira, várias matérias antes resolvidas pelo processo político majoritário passaram a ser disciplinadas por normas constitucionais. Dessa forma, questões antes políticas se converteram em direito, e, consequentemente, em pretensões jurídicas passíveis de serem formuladas através de ação judicial.

Por fim, a terceira causa seria o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que abrange características tanto do sistema difuso norte-americano quanto do modelo de controle concentrado europeu.

96 BARROSO, Luís Roberto. Ano do STF: Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista Consultor Jurídico. 2008, p. 3. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2008-dez- 22/judicializacao_ativismo_legitimidade_democratica >. Acesso em: 27 nov. 2018.

O fato é que o advento da Constituição de 1988 inaugurou uma luta teórica e judicial pela conquista de efetividade pelas normas constitucionais. Assim, foi dado ênfase ao papel do Judiciário na concretização efetiva aos princípios, regras e direitos inscritos na Constituição97.

Tratando também a respeito do papel do jurista na consecução dos valores e preceitos emanados pela Constituição no contexto do Neoconstitucionalismo, Clemerson Merlim Cléve (1995)98 elenca três pressupostos para a correta atuação do magistrado no contexto pós- constitucional: i) uma ética de responsabilidade; ii) uma política de criatividade, e iii) um compromisso ideológico definido.

No que concerne à ética da responsabilidade, o jurista, no momento em que assume a responsabilidade de solucionar os casos concretos, assume também a função de construção e de reconstrução do ordenamento jurídico.

Quanto à política da criatividade, cabe ao jurista buscar novas soluções ao problemas postos em pauta. Contudo, no momento em que os juristas reconhecem categorias e concedem direitos, eles participam ativamente do processo de criação do direito, expressando a sua formação jurídica e posição ideológica. Tal fenômeno é potencializado pelo grau de abstração dos preceitos normativos, os quais ampliam o poder de inovação dos juristas.

Por ser a Constituição um sistema aberto, que se comunica com a realidade fática, bem como com os diversos campos do conhecimento, é possível o seu processo de reforma sem a alteração formal do seu texto (mutação constitucional), conferindo dinamicidade e vivacidade ao texto constitucional.

Mas, a atividade do jurista não se resume a interpretação do direito positivo. Cabe a ele a missão de concretizar o direito à luz da Constituição, tornando-a efetiva. Não se pode, todavia, confundir a norma com o texto da norma. Já que o texto positivado não representa toda a profundidade da norma, esta deve ser compreendida como o resultado da interpretação do texto legal. O texto vem representar apenas a moldura da concretização material da norma. A norma, por seu turno, só existe quando diante do caso concreto; por isso que inexiste norma pronta, como sustentavam os positivistas.

No que tange ao compromisso ideológico definido, o autor desconstrói a crença na neutralidade dos juristas, especialmente dos juízes que “aplicam o direito tal como o compreendem, ajustando-o à sua professada ideologia, todavia argumentando que o fazem com

97 BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto. Revista Brasileira de Políticas Públicas, UNI/CEUB, v. 5, 2015.

98 CLÉVE, Clemerson Merlin. A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo: para uma dogmática constitucional emancipatória. In: Estudos em homenagem a Gustavo Henrique de Carvalho: o editor dos juristas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 34-53.

apoio unicamente na lei”99. Logo, o controle de uma decisão judicial se dá no plano do que não se diz, e não daquilo que se diz.

A questão que se coloca é com relação ao desenvolvimento desenfreado de postulados normativos voluntaristas e subjetivos, desprovidos do rigor teórico. Na realidade, o fundamento teórico oscila para o lado que se pretende justificar uma tomada de decisão. Ou seja, primeiro se decide, depois se busca o fundamento da decisão, afastando-se da base metodológica e científica do Direito.

Pois bem, nada obstante a exigência da sociedade contemporânea brasileira pela força normativa e efetividade da Constituição como um todo, em todos os seus capítulos, regras, princípios, preceitos, objetivos e valores, norteando e filtrando o direito infraconstitucional, tal panorama não deve se corresponder ao esvaziamento da atividade administrativa e legislativa em face da hipertrofia do Judiciário.

Nesse ínterim, questiona-se por qual motivo tantas demandas de alçada das agências reguladoras, detentoras de tecnidade e cientificidade para tratar da regulação setorial, não são resolvidas nesse âmbito administrativo?

Ora, se a regulação setorial funcionar de forma eficiente, ela atuará de forma a antever e se antecipar as manobras das grandes empresas na busca de lucros, ao mesmo tempo em que resguardaria os direitos dos consumidores.

Contudo, o que se está percebendo é um total descrédito em relação à função executiva- administrativa, em razão de um Judiciário agigantado.

Convém ressaltar que tal crítica não pode ser confundida com a proibição de usuários ou consumidores buscarem a via judicial para terem a devida tutela de seus direitos, até pela obediência ao princípio da inafastabilidade da jurisdição.

O que se está a examinar é o número exponencial de demandas judiciais decorrentes diretamente de uma insuficiente e duvidosa atuação das agências reguladoras referente a questões eminentemente técnicas.

Diante das considerações feitas, se a regulação setorial funcionasse de forma eficiente, não teríamos um índice altíssimo de demandas judiciais relacionadas a má prestação dos serviços públicos ou mesmo aos abusos perpetrados por empresas em desfavor dos consumidores e até mesmo da ordem econômica.

Para além do fenômeno da captura do ente regulador, a judicialização da regulação

99 CLÉVE, Clemerson Merlin. A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo: para uma dogmática constitucional emancipatória. In: Estudos em homenagem a Gustavo Henrique de Carvalho: o editor dos juristas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 46.

setorial é um fenômeno que precisa ser melhor analisado e debatido.

Isso porque a judicialização da regulação setorial coincide com uma crise de representatividade, de legitimidade democrática e de funcionalidade dos Poderes Legislativo e Executivo. Tem-se um grande descrédito da sociedade civil para com os Poderes Executivo e Legislativo, face aos reiterados exemplos de negligência, letargia, e escândalos de corrupção, o que coincide inclusive com a ausência de interesse e, consequentemente, baixa participação popular nos processos decisórios de tais Poderes.

Outrossim, nada obstante se reconhecer que a judicialização tem possibilitado a expansão da atividade judiciária que, defendendo os valores constitucionais, profere decisões judiciais no intuito de: i) suprir as omissões administrativas e legislativas; ii) resguardar os valores constitucionalmente assegurados na Carta Magna, tantas vezes menosprezados pelos gestores e legisladores. O fato é que o magistrado não dispõe de conhecimento técnico e científico suficiente para resolver os dilemas próprios do âmbito regulatório, motivo pelo qual há uma razão para que as agências reguladoras sejam dotadas de autonomia e tecnicidade no seu processo decisório.

Além disso, tem-se um Judiciário cada vez mais individualista, que apenas concebe o direito na perspectiva da justiça do caso in concreto, desconsiderando as situações similares, na perspectiva da universalização habermasiana. Ou seja, tem-se uma cultura jurídica que menospreza os efeitos socioeconômicos de suas decisões, tratando cada caso isolado do contexto maior em que está inserido.

Sobre a temática, Daniel Wang (2006)100 assevera que esse tipo de decisão judicial que se limita a resolver a lide de forma microscópica, na medida em que decide quem ganha, mas ignora aqueles que perdem, pode gerar maiores problemas.

Nesse ínterim, interessante trazer à baila os ensinamentos de Stephen Holmes e Cass R. Sustein (2000)101 de que “levar os direitos a sério significa também levar a escassez a sério”, de sorte que as escolhas administrativas ganham maior importância, e devem ser encaradas com maior cientificidade e seriedade face a limitação de recursos e o crescente número de demandas judiciais.

Em outras palavras, é preciso compreender que a implementação de um direito acarreta a marginalização de outros considerados menos valorosos, tendo por base que os recursos são

100 WANG, Daniel Wel Liang. Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível na jurisprudência do STF. Revista Direito GV, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 539-568, 2008. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/35163/33968>. Acesso em: 23 nov. 2018. 101 HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: W. W. Norton & Company, 2000, p. 44.

finitos e escassos, e que essa escassez não é acidental, mas essencial102.

Daí que surge a importância de se pensar a gestão da coisa pública, no âmbito do Executivo, Legislativo e Judiciário, de forma racional e eficiente, recorrendo à argumentação e à ponderação, a fim de fazer sempre a melhor alocação de recursos, na busca constante da melhor decisão.

Nesse diapasão, percebe-se a importância das escolas de direito na formação dos novos e até mesmo antigos juristas. Ocorre que, não raras vezes é possível se deparar com a reprodução da dogmática jurídica tradicional, muitas vezes já obsoleta, surrealista e reacionária aos novos tempos.

Faz-se imprescindível, portanto, buscar substrato teórico necessário a construção de uma nova dogmática que perceba o Direito de uma forma global, com suas estruturas edificantes e problemas. Nesse sentido, a Lei Fundamental pode ser tanto fonte de atualização do direito como parâmetro definidor dos objetivos do ordenamento jurídico.

102 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: Critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

4 A CONCORRÊNCIA NO CONTEXTO DAS INOVAÇÕES DISRUPTIVAS: UMA