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A Escuta de crianças e adolescentes vítimas de violência

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2. REVISÃO TEÓRICA

2.2. Marcos legais da infância

2.2.6. A Escuta de crianças e adolescentes vítimas de violência

Desde 2003, por ocasião da implantação do chamado Depoimento sem Dano (DSD) em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, inúmeros debates vêm sendo estabelecidos sobre a prática por profissionais do Serviço Social e da Psicologia.

O DSD, em sua proposição inicial, consistia em procedimento de inquirição judicial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes, especialmente quando há suspeita de abuso sexual. A inquirição da criança seria intermediada por um assistente social ou psicólogo em sala separada, interligada à sala de audiência, por meio de recursos audiovisuais, em que a criança ou adolescente não teria contato com o réu (AASTJ-SP & CRESS-SP, 2012).

As justificativas para implantação desta prática se sustentava em dois grandes pilares: a) a não revitimização da criança, por estar em ambiente separado sem contato direto com o réu e demais participantes da audiência (juiz, promotor, advogados, escrivão), cujos entrevistadores traduziriam as inquirições feitas pelo juiz de uma forma que fosse compreendida pela criança e; b) combate à impunidade do acusado pelo crime de abuso sexual, utilizando a fala da criança ou adolescente como prova no processo criminal (AASTJ-SP & CRESS-SP, 2012).

Diversos argumentos favoráveis e contrários à prática do DSD foram tecidos por profissionais envolvidos na inquirição (assistentes sociais, psicólogos, advogados e demais operadores de Direito) e pelos Conselhos Federais de Psicologia (CFP) e de Serviço Social (CFESS).

Em 2009 o CFESS institui a Resolução nº 554/2009 que dispõe sobre o não reconhecimento da inquirição das vítimas crianças e adolescentes no processo judicial, sob a Metodologia do Depoimento Sem Dano/DSD, como sendo atribuição ou competência do profissional assistente social (CFESS, Resolução nº 554/2009).

Em 2010 o CFP institui, através da Resolução nº 010/10, a regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes envolvidos na situação de violência, na Rede de Proteção, em que, dentre outros itens, estabelece os referenciais técnicos para o exercício profissional do psicólogo na escuta. O referencial veda ao psicólogo o papel de inquiridor no atendimento de Crianças e Adolescentes em situação de violência (CFP, Resolução nº 010/10).

Ações judiciais tramitadas e ajuizadas nos estados do Rio de Janeiro e do Ceará suspenderam ambas as resoluções em todo o território nacional. Inicialmente a resolução nº 010/10 do CFP foi suspensa por ação ajuizada pela 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Posteriormente, no estado do Ceará, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contrária ao Conselho Federal de Psicologia e ao Conselho Federal de Assistência Social, a fim de suspender a Resolução CFP nº 010/10 e a Resolução CFESS nº 554/2009 em todo território nacional. A ação foi julgada procedente e determinou a suspensão das resoluções em todo o território nacional, bem como a abstenção dos

conselhos de fiscalização de aplicar penalidades éticas aos profissionais que atuam na escuta psicológica da criança e do adolescente.

Como consequência os Conselhos Regionais de Psicologia se abstiveram de fiscalizar os psicólogos na prática do DSD, mas mantiveram o assunto em pauta com o intuito de preservar a autonomia do profissional de Psicologia e efetivar a garantia dos direitos de crianças e adolescentes.

Mesma postura adotou os Conselhos Regionais de Serviço Social, que passaram a não considerar a resolução para fiscalização do exercício profissional de assistentes sociais, mas continuaram a avaliar medidas possíveis para reverter a decisão.

Em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) emite a resolução 169/14, que dispõe sobre a proteção dos direitos de crianças e adolescentes em atendimento por órgãos e entidades do Sistema de Garantia de Direitos, que envolve o Sistema de Justiça, os órgãos de Segurança Pública e do Poder Executivo, e os Conselhos Tutelares. A resolução contempla uma série de recomendações, todas voltadas para respeitar a fase de desenvolvimento que a criança e o adolescente se encontram, devendo respeitar o tempo e o silêncio de quem é ouvido, priorizando as medidas de proteção (CONANDA, Resolução 169/14).

Após inúmeras discussões, em 2017 foi sancionada a lei nº 13.431/17, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera o Estatuto da Criança e do Adolescente.

A aplicação desta lei contempla a violência física, psicológica, sexual e institucional e estabelece que crianças e adolescentes serão ouvidos por meio de escuta especializada e depoimento especial. A escuta especializada é “o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade” (Lei 13.431/17, art. 7º). O depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente

vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária (Lei 13.431/17, art. 8º).

Para orientar a realização dessas práticas foi elaborado os Parâmetros de Escuta de Crianças e Adolescentes, pela Comissão Intersetorial de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, colegiado vinculado à Secretaria Nacional de dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos (SNDCA/MDH).

O documento em questão destina-se a todos os serviços que compõem a rede de atendimento e o Sistema de Garantia de Direitos, orientando quanto ao papel de cada política pública na escuta de crianças e adolescentes, evitando assim a duplicidade de ações e a repetição do relato da violência, que seria uma revitimização vivida por crianças e adolescentes. Desta forma,

a escuta faz parte de um processo mais amplo de proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes, na perspectiva de um atendimento protetivo, que envolve a identificação de sinais de violência, o diálogo e o acolhimento da vítima, o atendimento nos serviços e a responsabilização do autor da violência (SNDCA/MDH, 2014).

Tanto a lei 13.431/17, como os Parâmetros de Escuta de Crianças e Adolescentes, não definem a formação do profissional que fará a escuta especializada ou o depoimento especial. Esta definição está voltada ao objetivo de cada política pública. Os serviços da área da educação, saúde, assistência social, conselho tutelar e segurança pública, farão a escuta de acordo com a atribuição e seu papel na rede de atendimento.

Às escolas caberá a identificação de sinais de violência e/ou de revelação de situações de violência contra crianças e adolescentes, acolhendo e escutando-os, com um mínimo de questionamentos. Cabe ainda à escola informar a criança ou adolescente sobre o dever e os procedimentos da notificação às autoridades e acompanhar possíveis consequências, como por exemplo, a evasão escolar. Aos serviços da saúde cabe a adoção de medidas profiláticas, tratamento de agravos e acompanhamento do quadro de violência (anteriores e sequelas), além da notificação compulsória. Às políticas públicas da assistência social cabe o encaminhamento da vítima para o serviço especializado do território ou para o profissional de referência da Proteção Social

Especial no local, para que seja realizada a escuta especializada. O acompanhamento especializado compreende a realização de atendimentos continuados, segundo as demandas e especificidades de cada situação. As ações visam o fortalecimento da função protetiva da família, enfrentamento da situação de violação/violência e construção de novas possibilidades de interação familiares e com o contexto social.

Os conselhos tutelares recebem as notificações e encaminham aos órgãos do Sistema de Garantia de Direitos conforme as atribuições específicas que cada caso demanda. Ao Conselho Tutelar cabe a aplicação das medidas de proteção previstas no art. 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990).

Todas as ações acima mencionadas retratam a escuta especializada, condizentes a cada segmento das políticas públicas. No Sistema de Segurança Pública, a força policial ostensiva - responsável pela prevenção e flagrante de situações - também realiza a escuta especializada. Somente o âmbito da polícia investigativa, responsável pela apuração da materialidade e autoria do crime, realizará o depoimento especial com a criança e o adolescente, após esgotadas outras possibilidades de coleta de evidências e provas (SNDCA/MDH, 2014).

Tanto a escuta especializada como o depoimento especial devem ser realizados por profissionais que pautam sua atuação pelo respeito específico às competências específicas do serviço ao qual pertencem. Pelos Parâmetros de Escuta de Crianças e Adolescentes, o atendimento protetivo no contexto da rede de proteção possui caráter de acolhimento e acompanhamento, e não necessariamente da confirmação da ocorrência ou não da violência.

Em fevereiro de 2018 o Núcleo de Depoimento Especial de Criança e do Adolescente Corregedoria Geral da Justiça (NUDECA) emitiu uma nota de apoio à “Carta sobre a participação de profissionais da Psicologia no Depoimento Especial (DE) de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência”. O documento foi elaborado pelo Grupo Permanente de Psicologia Jurídica e Escuta de Crianças (GPPJEC) em resposta ao posicionamento contrário do Conselho Federal de Psicologia (CFP) à Lei 13.431/2017, que tornou o depoimento especial obrigatório em todo o país.

De acordo com o grupo, formado por psicólogos que atuam no sistema de Justiça, a escuta especial com crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência já vem sendo realizado e aperfeiçoado ao longo dos anos no Poder Judiciário e o psicólogo possui competências técnicas e metodológicas para exercer essa prática. Na carta, eles defendem ainda que a Psicologia é uma das principais profissões a contribuir para o conhecimento das situações de violência, técnicas e protocolos de entrevista, funcionamento da memória, comunicação e desenvolvimento humano (GPPJEC, 2018).

Vários autores corroboram que posicionamentos firmados contra ou a favor da técnica não tem contribuído na perspectiva da proteção integral de crianças e adolescentes e podem extinguir uma discussão mais aprofundada da garantia dos direitos no tratamento e na escuta da criança vítima de abuso sexual. Recomendam uma interlocução entre o Poder Judiciário e outras áreas de conhecimento, para aprovação de uma metodologia que traga de fato benefícios e maior proteção de crianças e adolescentes (Brito & Parente, 2012; Caribé & Lima, 2015; Machado & Arpini, 2013; Pelisoli, Dobke & Dell´Aglio, 2014).

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