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Violência sexual contra crianças e adolescentes

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2. REVISÃO TEÓRICA

2.1.4. Violência sexual contra crianças e adolescentes

Definir o conceito de abuso sexual não é tarefa simples e talvez não seja possível estabelecer uma única definição, uma vez que, na literatura especializada, encontram-se diversas formas de conceituar o tema.

Faleiros (2000) realizou uma vasta revisão dos conceitos relacionados à violência sexual contra crianças e adolescentes e, sua pesquisa resultou na obra denominada “Repensando os conceitos de violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes”. Neste, a referida autora afirma que o termo abuso sexual é o mais utilizado para referir-se a situações de violência sexual contra crianças e adolescentes, principalmente quando este ocorre no ambiente familiar, e acrescenta que “conceitualmente o abuso sexual é considerado e nomeado ora como maus tratos ora como violência” (Faleiros, 2000, p.13).

Buscando clarificar a questão, Faleiros (2000) percorre os conceitos de abuso sexual, maus-tratos e violência. Desse modo, cita Gabel (1997), que considera o abuso como a ultrapassagem de limites ou transgressão, Faleiros resume da seguinte forma o conceito de abuso sexual:

Em síntese, o abuso sexual deve ser entendido como uma situação de ultrapassagem (além, excessiva) de limites: de direitos humanos, legais, de poder, de papeis, do nível de desenvolvimento da vítima, do que esta sabe e compreende, do que o abusado pode consentir, fazer e viver, de regras sociais e familiares e de tabus. E que as situações de abuso infringem maus tratos às vítimas (Faleiros, 2000, p.15).

Em seguida, a autora detém-se sobre o conceito de violência sexual, considerando-o como “categoria chave na compreensão do abuso sexual contra crianças e adolescentes” (Faleiros, 2000, p.17), ressaltando a importância de se analisar o fato em seus contextos histórico, social, econômico, cultural, social e ético e, assim como outros atores, denomina relação de poder o que ocorre na violência sexual contra crianças e adolescentes.

É consensual nos estudos sobre violência sexual contra crianças e adolescentes que esta se constitui numa relação de poder, autoritária, na qual estão presentes e se confrontam atores/forças com pesos/poderes desiguais de conhecimento, autoridade, experiência, maturidade, recursos e estratégias (Faleiros, 2000, p.15).

A citada autora diferencia violência, abuso sexual e maus-tratos e diz que os conceitos são epistemologicamente distintos. Explica que, a violência seria a categoria explicativa da vitimização sexual, referindo-se à natureza da relação estabelecida; o abuso sexual seria a situação de uso excessivo, de ultrapassagem de limites e, os maus-tratos seriam a descrição empírica do abuso sexual, referindo-se a danos, atos e consequências do abuso (Faleiros, 2000, p. 20). Com isso, conclui que “todas as formas de violência sexual contra crianças e adolescentes são ABUSIVAS e VIOLENTAS [grifo da autora]” (p.21).

Azevedo e Guerra (2007) conceituam o abuso-vitimização sexual como todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa (p. 42).

O Ministério da Saúde adota um conceito semelhante para definir a violência sexual contra crianças e adolescentes, referindo-se à mesma como

[...] todo ato ou jogo sexual com intenção de estimular sexualmente a criança ou o adolescente, visando utilizá-lo para obter satisfação sexual, em que os autores da violência estão em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado que a criança ou adolescente. Abrange relações homo ou heterossexuais. Pode ocorrer em uma variedade de situações como: estupro, incesto, assédio sexual, exploração sexual, pornografia, pedofilia, manipulação de genitália, mamas e ânus, até o ato sexual com penetração, imposição de intimidades, exibicionismo, jogos sexuais e práticas eróticas não consentidas e impostas e voyeurismo (Ministério da Saúde, 2010, p. 33).

Ambas as definições consideram a diferença de nível de maturidade entre vítima e agressor, a intencionalidade do ato e contemplam as relações homo e heterossexuais. O Ministério da Saúde (2010) clarifica o conceito, mencionando

os comportamentos que exemplificam a ocorrência da violência sexual contra crianças e adolescentes. Mesma preocupação teve a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Ministério da Educação ao publicarem o Guia Escolar (2004), com o objetivo de instrumentalizar os profissionais da educação na identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. O guia também contempla as formas de abuso sexual, que podem ocorrer sem contato físico entre agressor e vítima - assédio, abuso sexual verbal, telefonemas obscenos, exibicionismo, voyeurismo, pornografia -, ou com contato físico - carícias nos órgãos genitais, tentativas de relações sexuais, masturbação, sexo oral, penetração vaginal e anal (SEDH, 2004).

Outra classificação importante quando se refere à violência sexual, é a compreensão que esta pode ser praticada dentro do contexto familiar por parentes da criança e do adolescente; no ambiente doméstico por pessoas que independente do grau de parentesco tem relações próximas de afetividade ou responsabilidade pela criança ou adolescente; fora do âmbito familiar, praticada por pessoas que possuam (ou não) vínculo com a vítima; e para fins de exploração sexual da criança ou adolescente.

Abuso sexual intrafamiliar

Dados de 28 países indicam que, em média, nove em cada dez meninas e adolescentes que foram vítimas de sexo forçado relatam que o autor da primeira violação era alguém próximo ou conhecido delas (UNICEF, 2017).

Segundo dados do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, no período de 2011 a 2017 houve um aumento de 83% nas notificações ao Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN) de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. A maioria das situações acontece dentro da casa e os agressores são pessoas de convívio da vítima, geralmente familiares (Ministério da Saúde, 2018).

Considerando um total de 58.037 crianças na faixa etária de 0 a 9 anos de idade vítimas de violência sexual, em 69,2% dos casos a violência ocorreu na

residência, sendo praticado por familiares (pai, mãe, padrasto, madrasta e irmão) em 37% dos casos e amigos/conhecidos em 27,6%. Com relação à idade da vítima em 55,8% dos casos tinham até cinco anos de idade (Ministério da Saúde, 2018).

Na faixa etária de 10 a 19 anos foram notificados ao SINAN83.068 casos. Destes em 58,2% dos casos a violência ocorreu na residência e a vítima tinha entre 10 e 14 anos, tendo sido praticado por familiares (21,3%), parceiros íntimos (17,1%) e amigos/conhecidos (27,4%). A categoria “familiares” se refere a pai, mãe, padrasto, madrasta, irmão e filho. A categoria “parceiros íntimos” se refere aos cônjuge, ex-cônjuge, namorado e ex-namorado (Ministério da Saúde, 2018).

O abuso sexual intrafamiliar pode ser conceituado como “qualquer ação de caráter sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente ou entre um adolescente e uma criança, quando existe um laço familiar (direto ou não) ou relação de responsabilidade” (Cohen, 1993; SEDH, 2004, p. 37).

Nesta modalidade de abuso sexual, o agente autor da violência é algum membro da família, que mantém uma relação de parentesco com a criança ou adolescente vítima. Nesta categoria são considerados laços biológicos, afetivos ou de responsabilidade. São abusos praticados por pais, mães, padrastos, madrastas, irmãos e demais parentes ou cuidadores que exercem a função de responsabilidade pela criança e pelo adolescente.

Este abuso também é chamado de abuso intrafamiliar incestuoso quando há laços consanguíneos diretos, tais como pai, mãe e irmãos/irmãs. Incesto é a relação sexual e/ou amorosa entre pessoas com laços consanguíneos, que são impedidos de contrair matrimônio por lei (SEDH, 2004).

Cohen (1993) explica que a origem da palavra incesto deriva do latim incestus, que significa impuro, manchado, não casto, ou seja, in = não e castus = puro. Logo, “o incesto deixaria a família impura ou manchada, ou seja, a família incestuosa é uma família que perdeu a castidade” (Cohen, 1993, p. 14).

As famílias incestuosas ou incestogênicas geralmente apresentam estruturas fechadas, com pouco contato social. Possuem uma hierarquia rígida,

com submissão à autoridade masculina. O padrão de relacionamento demonstra uma confusão de papeis e as demonstrações de afeto, quando existem, são misturadas com dose de erotismo (Furniss, 1993; Guerra, 1998).

Nesse sentido, o incesto pode ser interpretado e definido por vários ângulos, dependendo se será avaliado como um problema genético, mental, sexual, social, ético ou legal (Cohen, 1993).

Importante registrar que, no Brasil, a relação incestuosa em si não caracteriza como crime e nem como violência sexual. Quando estabelecida entre adultos, com consentimento mútuo e sem ameaças ou coerções físicas ou psicológicas, não é considerada crime. Mesmo nesses casos, o Código Civil brasileiro, em seu Artigo 1.521, Incisos I a V, proíbe casamento dos ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; de afins em linha reta; do adotante com quem foi cônjuge do adotado e entre o adotado com o adotante; de irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau; e entre o adotado com o filho do adotante (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002).

No entanto, mesmo diante dessas considerações, sempre que a relação incestuosa envolver a relação de um adulto com uma criança ou adolescente será considerado abuso sexual, ainda que não haja o emprego de força física e tenha o consentimento da vítima (Cohen, 1993; Gabel, 1997; SEDH, 2004).

Ainda acerca do incesto, Cohen (1993) classifica-o em três tipos: o incesto propriamente dito, praticado entre consanguíneos; o paraincesto, perpetrado por pessoas que poderiam ser considerados parentes, como padrasto, madrasta e filhos destes; e o incesto polimorfo que inclui relações sexuais que ocorrem entre pessoas que se aproveitam do cargo ou função que exercem para se satisfazerem sexualmente com um subalterno, como chefe- secretária, médico-paciente.

Diante dos estudos acima referidos é possível verificar que diversos autores apontam o pai biológico seguido pelo padrasto, como as pessoas que mais abusam sexualmente de crianças e adolescentes (Ficar de Bem – CRAMI, 2018; Neves et al., 2010; Serafim, Saffi, Achá & Barros, 2011; Saffioti, 1995).

Do ponto de vista legal, o abuso sexual, sendo este incestuoso ou não, praticado por adultos contra crianças ou adolescentes abaixo de 14 anos é considerado estupro de vulnerável pelo Código Penal Brasileiro, com pena de reclusão que pode variar de 8 a 15 anos (Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940).

Abuso sexual extrafamiliar

Trata-se de um tipo de abuso sexual que ocorre fora do âmbito familiar, que pode ser praticado por pessoas desconhecidas ou por pessoas próximas da criança e do adolescente, tais como amigos da família, vizinhos, professores ou demais pessoas sem relações de parentesco ou de responsabilidade formal em relação à criança ou ao adolescente abusado(a) (CRAMI ABCD, 2008; Pires & Miyazaki, 2005; SEDH, 2004).

Abuso sexual em instituições de atendimento à criança e ao adolescente

É uma modalidade de abuso sexual similar aos tipos já mencionados, que ocorre em instituições públicas (governamentais) ou privadas encarregadas de prover, proteger, defender e cuidar de crianças e adolescentes (CRAMI ABCD, 2008; SEDH, 2004). Pode ocorrer em qualquer instituição que ofereça atendimento, espaços de socialização, serviços de acolhimento institucional e de cumprimento de medidas socioeducativas instituições educacionais e de saúde, tais como escolas, hospitais, clínicas, entre outros. O abuso pode ocorrer entre as próprias crianças e adolescentes ou entre os profissionais da instituição e as crianças/adolescentes. Quando ocorre entre as próprias crianças e adolescentes, “os recém chegados são forçados a se submeterem sexualmente a grupos de adolescentes mais velhos e antigos na instituição e que dominam o território e poder local” (SEDH, 2004).

No caso de abuso praticado pelos profissionais, a violência sexual não tem necessariamente a função de satisfação do prazer, mas sim de poder e subjugação da vítima (SEDH, 2004). Pode-se dizer que o abuso sexual em

instituições de atendimento à criança e ao adolescente é um abuso sexual extrafamiliar (uma vez que não é praticado por pessoas que tem relações familiares), mas com algumas características de abuso sexual intrafamiliar (pelo papel e vínculos existentes entre os profissionais e as crianças e adolescentes, nos cuidados e relações estabelecidas).

Independente da modalidade de violência sexual sofrida pela criança ou adolescente, existe indicadores físicos, comportamentais e familiares que podem sinalizar a ocorrência da violência, sempre lembrando que um indicador isolado não é indicativo da violência, devendo ser levado em conta um conjunto deles associado ao contexto social e cultural em que a criança ou adolescente está inserida.

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