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2 A ASCENSÃO DA “ESQUERDA DEMOCRÁTICA” NO CONTEXTO DE CRISE DO

2.2 A ASCENSÃO DE UM PROJETO DE CONCILIAÇÃO DE CLASSE PROTAGONIZADO

2.2.6 A “esquerda democrática” e sua crítica enviesada

De caráter estrutural, a crise do capital já foi amplamente abordada, sob diferentes enfoques, por analistas que não se renderam ao fim das grandes narrativas como explicação da realidade social137. A economia política do capitalismo do final do século XX provocou mudanças radicais nos processos de trabalho; na apreensão e aceleração espaço-tempo, sobretudo, em que se movem as transações financeiras que asseguram rentabilidade ao capital; nos hábitos; modos de vida e de consumo e nas configurações geopolíticas. Enfim, trata-se de alterações qualitativas que atingiram, a um só tempo, todas as dimensões da vida social.

Desde o início da década de 1970 vinham ocorrendo mudanças substanciais nas práticas culturais e político-econômicas, mudanças estas que estavam intrinsecamente vinculadas e determinadas à emergência de novas modalidades dominantes de experimentação do tempo- espaço (HARVEY, 1999); a entrada num novo contexto de liberdade quase total do capital para se desenvolver e valorizar-se sem os entraves que fora obrigado a conviver no período pós-1945,

137Para citarmos alguns analistas desta problemática: Mandel (1990); Chesnais (1995 e 1997); Harvey (1999); Antunes

(1995;1999); (Dias (1997 e 2005); Mota (1995); Behring (1998; 2003); Mèszáros (2002); Coggiola (2002) e Sader (2005).

especialmente na Europa (CHESNAIS, 1997); ao esgotamento do período de maior crescimento da economia mundial (SADER, 2005).

Do ponto de vista de Harvey,

o longo período de expansão do pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, e de que esse conjunto pode com razão ser chamado de fordista-keynesiano. O colapso desse sistema a partir de 1973 iniciou um período de rápida mudança, de fluidez e de incerteza [...] Mas os contrastes entre as práticas político-econômicas da atualidade e as do período de expansão do pós-guerra são suficientemente significativos para tornar a hipótese de uma passagem do fordismo para o que poderia ser chamado regime de acumulação flexível uma reveladora maneira de caracterizar a história recente (HARVEY, 1999, p. 119).

Para Coggiola (2002), é fundamental registrar e não esquecer que durante a fase expansiva posterior à II Guerra Mundial, a estabilidade política e o acesso a direitos sociais, bem constituídos, só existiu no centro do sistema138 e, nesta direção, a crise contemporânea revela que o capital teria chegado, num momento do seu desenvolvimento, em que se coloca contra a história. Para o autor, nesta afirmação não reside nenhuma expressão determinista, mas expressa, de modo preciso, síntese de uma análise criteriosa sobre a gênese e estrutura da crise contemporânea.

Diante da ofensiva do capital para superar a lei tendencial da queda da taxa de lucro, o que está em configuração são mudanças efetivas na constituição da sociabilidade. A esse respeito, Dias139 afirma que “o capital subordinou o trabalho, real e formalmente”. Interroga, ainda, “afinal, é a sociedade do trabalho que perece ou se trata de quebrar o trabalhador coletivo e/ou os coletivos de trabalhadores e, com eles, as suas sociabilidades? ”.

Para Mèszáros (2002), começou, a partir da década de 1970, um processo “continuum” da produção destrutiva. Isto implica afirmar que

138 Mesmo num quadro de expansão, adverte Coggiola (2002, p.453), que este só foi possível depois do capital “ter

debelado diversas situações revolucionárias ao final da conflação bélica), já que uma onda de guerras e revoluções continuou a varrer as nações oprimidas, a começar pela China em 1949. Na própria Europa Oriental revoluções antiburocráticas varreram a Hungria (1956), a Checoslováquia (1968), a Polônia. Outros exemplos foram a `comuna de Xangai´ (Janeiro de 1967), durante a `revolução cultural´ chinesa, a assembleia popular na Bolívia de 1970-71, as mobilizações revolucionárias na América Latina nas décadas de 1960 e 1970, no esteio da Revolução Cubana de 1959- 61. Na Europa Ocidental, o proletariado protagonizou situações revolucionárias, desde o maio Francês de 1968, passando pelo `outono quente´ italiano (1969) até a Revolução Portuguesa (1974-75).

o nosso modo de vida e a reprodução de nossa sociedade, incorporam a crise como se ela fosse um dado natural. O resultado dificilmente poderia ser outro: aos poucos nos tornamos insensíveis às suas consequências mais cruéis, à crescente perdularidade do sistema, à destruição voraz do planeta e ao embotamento da vida cotidiana de` todos´ e de cada um de nós (LESSA, 2001, p. 25).

Neste espaço-tempo em que a crise do capital se manifestava com vigor, a “esquerda democrática” procurava elaborar e consolidar seu pensamento. Uma de suas teses centrais, como vimos, constitui-se na crítica às lacunas das “sociedades pós-capitalistas”. Tratava-se de uma conjuntura em que estava muito viva e, exaustivamente posta por vários estudos a crítica ao chamado “socialismo real” que não atendia ao ideário da liberdade. Almejava-se com o socialismo homens e mulheres livres e iguais. Contudo, nas sociedades “pós-capitalistas”, por razões que não vamos discutir aqui, não se efetivou a igualdade e a liberdade substantiva. Ao contrário disso e, sob diversos enfoques, foi a ausência da liberdade que predominou, inclusive no que diz respeito ao campo das opressões particulares.

Na explicação da crise e posterior esgotamento do sistema soviético, várias interpretações foram feitas, destacando-se, no âmbito da esquerda democrática, a tese da burocratização intensa do Estado e de sua institucionalidade autoritária. Por essa tese, a ausência dos instrumentos democráticos teria enrijecido o partido, as principais lideranças e o próprio Estado em seu sentido global, tornando-o impermeável ao atendimento das demandas democrático- populares e à socialização da política.

Mèszáros (2002) propõe outra leitura do fracasso das sociedades “pós-capitalistas”. Em seu pensamento, aquelas experiências encerraram mais uma tentativa de instaurar a transição para ordem reprodutiva socialista, segundo a estratégia da menor resistência. Isto implica no entendimento de duas questões centrais. A primeira é que não foram levadas em consideração as distinções entre o sistema do capital e o capitalismo. Sendo assim, foi subtraído do centro da teoria e da prática política a realidade de que o capital constitui-se numa relação e num processo, sendo, também, “o poder econômico onipotente da sociedade burguesa (...) É por isso que o capital em sua forma plenamente desenvolvida deve constituir o ponto de partida e o ponto de chegada” (MÉSZÁROS, 2002, pp. 702-703). A esse respeito:

qualquer tentativa de ganhar controle sobre o capital tratando-o como uma “coisa material” ligada a uma “relação simples” com seu proprietário privado – em vez de

instituir uma alternativa sustentável ao seu processo dinâmico, “em cujos vários momentos ele nunca deixa de ser capital” - pode apenas resultar em fracasso catastrófico. Nenhum mecanismo jurídico pode, por si só, remover o capital, como comando necessário sobre o trabalho, do processo sociometabólico sob as circunstâncias que prevaleceram historicamente durante tanto tempo e que inevitavelmente foram herdadas após a revolução. Não é possível restituir o poder alienado de comando sobre o trabalho ao próprio trabalho simplesmente atingindo as personificações do capital privado, isto ocorrerá apenas quando se substituir o “sistema orgânico” estabelecido como controlador absolutamente abrangente e dominante da reprodução societária. Isto requer a auto emancipação substantiva do trabalho, ao contrário da ficção jurídica da emancipação tragicamente perseguida sob a dependência do fetichismo herdado do capital – [...]”.

Do ponto de vista de Mandel (1985, p. 51):

Na URSS e outras sociedades similares, o socialismo não se materializou em virtude de três causas: 1º) o insuficiente nível de desenvolvimento das forças produtivas; (2) o isolamento dessas sociedades em relação às nações industriais hegemônicas, e (3) o resultado da luta pela necessidade ou o restabelecimento da “imundície anterior”.

Na efervescência dos MS estava ali impressa uma crise estrutural do capital, mas foi a crítica ao socialismo, enquanto projeto societário, que se destacou nas décadas de 1960 a 1990. Não foi apenas a crítica às “sociedades pós-capitalistas” que veio para primeiro plano, crítica esta, diga-se de passagem, necessária, mas sim a crítica radical aos postulados e perspectivas teóricas que sinalizavam para além da sociabilidade do capital.

Note-se que os MS que protagonizaram suas reivindicações particulares na década de 1960-1970 emergiram, inicialmente, nos países de capitalismo central. Foram nesses países que eclodiram as manifestações sobre questões tais como: os problemas socioambientais; a insuportabilidade com que o meio-ambiente estava sendo tratado; o fato de que homens e mulheres estivessem vivendo mediante práticas e estilos de vida extremamente consumistas, com tendência à banalização e à coisificação das relações humanas.

Se olharmos para a década de 1960, veremos que apesar da sociedade capitalista ter atingido um patamar elevado de desenvolvimento tecnológico e avanço nas demais dimensões da vida social, não tinha sido capaz, até aquele momento histórico, de enfrentar devidamente questões como a discriminação por orientação sexual; a questão racial e ambiental; as diferenças na relação entre os gêneros, que tratadas como desigualdades resultaram, muitas vezes, em formas plurais de violência.

Assim, os MS, por meio de suas reivindicações, colocaram para o conjunto da sociedade, de forma política, a existência de uma série de problemas que abriram terreno e denunciavam a existência de opressões particulares que, até então, não tinham sido alvo nem das políticas públicas, nem de qualquer outra forma de enfrentamento real na vida cotidiana.

A crítica ao “socialismo real” tomou a dianteira das reflexões teórico-políticas, tendo inflexões nos MS e demais organizações coletivas. Boa parte da esquerda que, sob determinadas condições sócio históricas, se reorganizava na conjuntura da década de 1960, tanto em nível mundial e nacional, abraçou o ideário de aperfeiçoar o capitalismo. Ao defender bandeiras históricas pertinentes ao Estado social transformou tais bandeiras na essência de seu projeto político.

Diante da violação dos direitos, seja através das práticas do nazismo ou do stalinismo, seja através das ditaduras militares que se irradiaram, na América Latina, o que mereceu destaque, no pensamento e na prática das esquerdas, foi a necessidade do Estado de direito. O problema é que, para a “esquerda democrática” isto ocorreu não como uma necessidade histórica, mediante situações em que a violência e a tortura ganhavam legitimidade, como instrumentos de controle e ação política do Estado. Naquela conjuntura, se fortaleceu o ideário de defesa da cidadania, dos direitos humanos e da democracia como horizonte máximo de um projeto político de esquerda: “Um quadro como este somente é possível porque vivemos no período contrarrevolucionário mais longo desde que as revoluções surgiram como fenômeno social” (LESSA, 2001, p. 75).

Passado mais de vinte anos deste processo já não é possível admitir, a não ser como ideologia ou má fé que o esgotamento das “sociedades pós-capitalistas” justifique aceitar o projeto do capital como único projeto societário que, inclusive, circula como o grande vencedor da chamada “guerra fria”, do nazismo e do stalinismo, cabendo, portanto, à esquerda assumir tal projeto e aperfeiçoá-lo na perspectiva de incluir segmentos que circulam sem direitos, numa tentativa de corrigir situações extremas de injustiça social e de autoritarismo.

Com a ascensão do neoliberalismo veio, no mesmo receituário, a conformação ideológica quanto à impossibilidade de alterar o ritmo e a direção das decisões econômicas e políticas. Foi amplamente anunciada, sobretudo, na década de 1990, a ideia de que só havia uma única alternativa para as sociedades contemporâneas e que esta seria, necessariamente, o aprofundamento da ascendência do capital, que assumiria, enfim, a condição universal enquanto

único projeto societário viável. Mèszáros (2002) considera curioso que tenha partido, justamente daqueles que definiram a política como sendo “a arte do possível”, esta recusa a pensar em alternativas aos ditames do capital financeiro e seus agentes privilegiados (FMI e Banco Mundial): “Afinal, como entender a política como `a busca do possível socialmente confiável´, se a viabilidade de qualquer alternativa aos imperativos da ordem vigente está a priori excluída por ser impossível? ” (MÈSZÁROS, 2002, p. 37).

Vale destacar, de forma breve aqui, o caráter extremamente ideológico da noção de exclusão social, que emerge com força teórica neste contexto sócio-político. Esta noção circunscreve a ideia de projeto político único. Isso porque supostamente teríamos o(a) excluído(a) e o(a) incluído(a) da vida social. Isto implica reconhecer que objetivamente não temos alternativa ao sistema do capital que é visto não em sua dimensão histórica, mas como uma forma eterna e cristalizada de relações sociais. A tarefa dos segmentos de esquerda, através de várias organizações e práticas coletivas, seria incluir determinados segmentos, secundarizando, quando não em explícita oposição à luta, para transformar esta forma histórica de sociedade que exclui, que produz e se alimenta da desigualdade social, repondo continuamente exploração e reatualizando, sob novas bases, as opressões particulares.

O desprezo desses “novos críticos” da modernidade pela ontologia conduziu a uma concepção em que a história é a resultante de uma avalanche caótica de episódios, fatos e acontecimentos, desconectados uns dos outros e aleatoriamente produzidos e ordenados no processo sócio histórico. Por isso, não é possível a percepção de fenômenos universais, porque todos os fatos que constituem esse processo são singulares. O fenômeno no particular seria único em sua singularidade (EVANGELISTA, 1992, p. 35).

Na trincheira deste amplo movimento de reconceituação do pensamento da “esquerda democrática” consolidou-se uma espécie de crítica à modernidade, dada sua incompletude e dificuldade de acolher novos sujeitos coletivos e suas questões particulares, sobretudo relacionadas à dimensão da identidade. Tudo isso veio numa velocidade intensa, subvertendo princípios e orientações históricas. Foi neste quadro que ganhou notoriedade a constituição da agenda política pós-moderna que se reivindica de esquerda e emancipatória. É o que analisaremos no terceiro capítulo ao centralizarmos o debate na relação entre o pensamento da esquerda e a política de identidade.

Como já dizia Djavan

(Dois homens apaixonados)

Frejat/Cazuza

Cheio de sol entre as trevas Todo homem será rei na terra E não haverá mais guerra

Pois só quem tem os sonhos mais básicos Pode amar e dizer a verdade

Ipanema é uma sala de estar Pro nosso barato hipnótico A ponte aérea, o barulho do mar E as estrelas ainda vão nos mostrar Que o amor não é inviável

Num mundo inacreditável Dois homens apaixonados

Todo dia será um dia de paz Pra quem vive a verdade

Todo fim de tarde será rapaz

Toda lua será moça Todo dia será um dia a mais

3 A ESQUERDA, A POLÍTICA DE IDENTIDADE E A IDEOLOGIA DA PÓS-