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2 A ASCENSÃO DA “ESQUERDA DEMOCRÁTICA” NO CONTEXTO DE CRISE DO

2.2 A ASCENSÃO DE UM PROJETO DE CONCILIAÇÃO DE CLASSE PROTAGONIZADO

2.2.1 Revisões conceituais incidem na direção social da luta

A observação de Lênin de que “sem teoria revolucionária não há prática

revolucionária” nunca foi tão possível de compreensão. O pensamento da “esquerda democrática”

transita por um amplo movimento de revisão conceitual. Direitos humanos, democracia e sociedade civil constituem as “palavras mágicas” que revelam, a um só tempo, a força mobilizadora imediata

e a fragilidade teórico-política do pensamento de esquerda, quando fundamentado na perspectiva da subjetividade. Intelectuais identificados com lutas e causas emancipatórias há mais de três décadas buscam revitalizar o campo semântico e teórico-político da “esquerda democrática”. Nesta árdua tarefa identificamos um ponto de partida que são as experiências classificadas de totalitárias do século XX. Antes de abordarmos as categorias centrais que foram reconceituadas (DH, democracia e sociedade civil) com o objetivo, dentre outros, de acolher a agenda política posta pelos sujeitos coletivos, no enfrentamento das opressões particulares, torna-se relevante, então, situarmos a questão do totalitarismo.

Pensemos, aqui, na produção teórica de intelectuais, como Arendt (1998) e Lefort (1987), pela influência que tiveram na estruturação do pensamento da “esquerda democrática”. Ambos fizeram referência ao uso da noção de totalitarismo para explicar e criticar os desdobramentos da política no século XX. A noção de totalitarismo foi entendida mediante a lógica na qual contra o terror do Estado policial que ameaça o indivíduo e suprime sua liberdade, deve consagrar-se o direito e a lei, princípios do Estado de direito.

Lefort (1987) contrapõe, de forma cristalina, totalitarismo e democracia. Assim, na concepção lefortiana, “o Estado totalitário não é um Estado onde a arbitrariedade flagela. É um Estado que em seu princípio denega o direito, denega o livre exercício do pensamento”. De modo contrário, a chamada democracia burguesa contém o princípio da afirmação do direito, apesar do caráter formal atribuído à igualdade e da ideologia dominante que insiste em universalizar interesses que são particulares de uma classe. O que prevalece, para o autor, é a ideia de que, mesmo sob o signo da sociedade capitalista, é absolutamente possível se pensar na materialização dos direitos, enquanto, nos regimes totalitários, isto não foi possível, posto que vigorou, como princípio, por excelência, a denegação do direito. Do seu ponto de vista,

O discurso totalitário apaga a oposição entre o Estado e a sociedade civil; dedica-se a tornar manifesta a presença do Estado em toda extensão do espaço social, isto é, a veicular, através de uma série de representantes, o princípio de poder que informa a diversidade das atividades e as contém no modelo de uma submissão comum (LEFORT, 1990, p. 326).

três questões: “o que havia acontecido? Por que havia acontecido? Como pode ter acontecido? ” A autora considerava extremamente grave que o regime nazista tivesse contado com o apoio das massas. Esse fato foi confirmado a partir de 1965, ano em que foram divulgados relatórios realizados pela SS116 sobre pesquisa de opinião pública no período de 1939-1944. A esse respeito, Lenharo (2001, p. 08) mostra que nestes relatórios ficava “patente que a população alemã estava notavelmente bem informada sobre o que se passava com os judeus e a política de guerra, e dava seu aval às iniciativas do regime”.

Arendt concentra sua análise no nazismo e no stalinismo dispensando ao primeiro maior atenção. E a partir daí elabora sua teoria sobre o totalitarismo. Do seu ponto de vista, os principais instrumentos característicos do regime total podem ser assim sintetizados. O totalitarismo constitui-se num tipo de governo fundado: no terror; nos campos de concentração; no forte apelo à ciência como força justificadora para combater a diversidade humana; na utilização da propaganda como o principal elemento de diálogo e de convencimento entre as lideranças e os indivíduos que são estimulados a permanecerem atomizados; na transformação dos sujeitos individuais e coletivos em massa; na destituição das representações coletivas e supervalorização de líderes personalistas; no aniquilamento do espaço público, situação em que os indivíduos deixando de interferir nas decisões políticas, são compelidos ao isolamento e submetidos à manipulação de todas as ordens.

Arendt (1988, p. 361) faz referência ao surgimento das massas enquanto um aglomerado de pessoas “que simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores”. É neste sentido que nos regimes e movimentos totalitários117 há uma descaracterização do espaço público e uma valorização do indivíduo-massa. Para Arendt (1990, p. 101), “se a lei é a essência do governo constitucional ou republicano, o terror constitui aquela do governo totalitário”.

116 “Schutzstaffel – Tropas de proteção): criadas em 1925, após 1934 suplantam as SA (milícia privada e paramilitar

do partido nazista) em importância e tornam-se uma gigantesca organização independente, com mais de trezentos mil membros, a controlar todo o aparelho policial do país (LENHARO (2001, p. 90).

117 Para Arendt (1988), há uma distinção entre movimento e regime e isto é importante porque adverte para o fato de

Na perspectiva de realizar uma crítica radical e, do nosso ponto de vista, absolutamente necessária, à violência e a todas as atrocidades cometidas contra a vida humana durante os regimes nazistas e stalinistas, a noção de totalitarismo acabou por se confrontar com o liberalismo e, neste embate, reside a vulnerabilidade da argumentação de Arendt e Lefort. Isso porque, dentre outros, dois problemas principais se manifestaram. O primeiro foi a identificação entre nazismo e stalinismo como expressão de um mesmo projeto, o totalitário118 e, o segundo, é que, por este raciocínio, o capitalismo se edificou na condição de modo de produção e projeto civilizatório racionalmente insuperável. Tratava-se, a partir de então, de ampliar e reconhecer direitos, de consolidar o espaço público, fazendo emergir a política como condição humana por excelência. Quais as condições sócio concretas para garantir a efetividade desses postulados no âmbito da sociedade regida pelo capital é uma tarefa que não ocupou diretriz central no pensamento de Arendt nem no de Lefort.

Em sua análise crítica sobre o totalitarismo, Chasin (1977, p. 122) chama atenção para o fato de que:

o Estado liberal vem a ser o sistema onde predominam a lei, a razão e a liberdade, garantidas pela difusão do poder e pela estrutura pluripartidária. E o Estado totalitário o sistema onde prevalecem a violência extremada – o terror – e a dominação hipertrofiada pela concentração do poder e nutrida pelo monopólio do partido único. Um portanto, é o regime da liberdade, regido pela lei, pela razão; o outro, o da opressão comandada pela violência.

Considerando que, na análise liberal, opera-se o ocultamento da desigualdade concreta e real frente à valorização extrema da legalidade formal, temos como consequência que o liberalismo não foi entendido como expressão da hegemonia burguesa, mas como expressão da igualdade de todos os indivíduos perante a lei. A noção de totalitarismo, portanto, redundou numa intensa simplificação e redução de toda explicação ao emprego de universais abstratos que obscureceram a compreensão das particularidades dos fenômenos sociais porque “em lugar de reproduzir conceitualmente o concreto, evidenciando em cada caso a particularidade decisiva, somos conduzidos, por aquela análise, a nos defrontar com a razão em geral, a liberdade em geral,

118 Para uma análise crítica da noção de totalitarismo e, particularmente, para a crítica da identificação entre o Terceiro

o cidadão em geral, a violência em geral etc.” (CHASIN, 1977, p. 125).

Junto com a crítica ao sistema totalitário foi colocado, simultaneamente em xeque, as alternativas ao sistema do capital. Tratava-se a partir de então de aprimorar as condições de existência postas na sociedade capitalista. Nesse processo, os DH e a democracia assumiram condição ineliminável, com status de valor universal. A sociedade civil foi considerada a arena privilegiada por onde os sujeitos deveriam se mover em busca da participação política e da realização dos direitos. Autonomizada das relações sociais, em sua totalidade, e concebida como um campo empírico de organizações coletivas defensoras dos direitos e da democratização da vida social, a sociedade civil, no pensamento da “esquerda democrática”, recebeu um novo tratamento teórico, com profundas implicações políticas. Passemos, então, à análise dos DH, da democracia e da sociedade civil, categorias centrais, na redefinição conceitual que está sendo efetivada pela “esquerda democrática”.