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O ideário do “direito a ter direito” ganha força e função ideológica

2 A ASCENSÃO DA “ESQUERDA DEMOCRÁTICA” NO CONTEXTO DE CRISE DO

2.2 A ASCENSÃO DE UM PROJETO DE CONCILIAÇÃO DE CLASSE PROTAGONIZADO

2.2.2 O ideário do “direito a ter direito” ganha força e função ideológica

Na trajetória do século XX, a identificação entre a política e a luta pela defesa dos direitos humanos não passou sem problemas e integrou parte das polêmicas protagonizadas por duas grandes perspectivas teóricas, o liberalismo e o marxismo. Para o liberalismo, a questão era demonstrar que havia incompatibilidade entre o marxismo, a democracia e a valorização dos direitos individuais. A ênfase dada, pelo marxismo, à igualdade social significava, conforme a crítica liberal, o menosprezo aos DH, à liberdade e à democracia. A ideia de que o marxismo desconsidera a relevância dos DH e da democracia foi amplamente divulgada e disseminada ideologicamente. A contraposição mecânica entre marxismo e direito, como vimos anteriormente, encerra-se numa profunda simplificação teórico-política. Mas foi com esta argumentação que os valores liberais se expandiram.

O que nos interessa ressaltar é que, apesar das limitações do horizonte liberal para resolver os problemas reais, em virtude de seu projeto estabelecer igualdade e liberdade formais,

resultando, tão somente, num programa mínimo para as classes subalternas119, este horizonte se atualiza e mantém enorme força ideológica como arcabouço teórico-político de sustentação da burguesia. A esse respeito, Dias (2000, p. 55) nos mostra a vitalidade ideológica do liberalismo ao evidenciar que:

trata-se de uma precisa análise da eficácia da ideologia, enquanto materialização/organização das relações políticas. Ela nos revela um elemento importante da política: o presente, enquanto tal, é glorificado, é levado a pensar o diferente, o diverso, como violência, caos, artificialidade, enfim, como perigo. A ordem burguesa, pelo efeito ideológico da ideia de ordem, se naturaliza, perde sua historicidade, se eterniza. E com isso é evitada a questão central da ordem: seu caráter classista. Uma ordem é, por exemplo, burguesa ou proletária. E é o predomínio de uma dessas classes que determina o apagamento do “bom direito” da outra. O chamado Estado ético dos liberais, ou seja, um Estado “acima” das lutas de classes, mais do que uma realidade política `é uma aspiração política (...); existe apenas como modelo utópico, mas é precisamente o fato de ser uma miragem que o fortalece e faz dele força de conservação. Na esperança de que, finalmente, ele se realize na sua perfeição completa, muitos encontram a força para não o renegar e não procurar substituí-lo´120.

Quando a esquerda define os DH como terreno por onde os sujeitos coletivos vão se mover para enfrentar formas de opressão histórica e ideologicamente consolidadas, o que nos chama atenção é o risco que correm, esses sujeitos e o próprio pensamento da esquerda, de ficarem presos à cultura política própria da ordem burguesa121. A ideia de pensar os DH como suposta realização dos interesses de todos, abstraindo, desse modo, a realidade da luta de classes é, o que podemos considerar, o terreno minado por onde se movem os sujeitos coletivos no enfrentamento das opressões particulares. O desafio está em discernir o quanto “a política liberal é, a um só tempo, reino do fetiche, condição de viabilização do capitalismo e de sua negação” (DIAS, 1997, p. 72).

Nas últimas décadas do século XX, principalmente, diante do esgotamento do “socialismo real”, e da crise e reconfiguração do Estado Social, as lutas por DH resgataram o sentido da política, que se encontrava desgastada pelas derrotas da classe trabalhadora e, sobretudo,

119 Nunca é demais lembrar que tal programa se institui como produto da organização política dos segmentos

vinculados ao trabalho. As conquistas da emancipação política têm sido resultado de grandes lutas coletivas protagonizadas por segmentos das classes subalternas.

120 Gramsci. “Ter principî, ter ordini, 11/2/1917, in La città futura 1917-1918 (CF) P.5, Apud DIAS (2000, p.55). 121 Afinal, como nos adverte DIAS (2000, p.51) em sua análise do pensamento de Gramsci sobre cultura, política e

cidadania, “romper, então, com a forma da ordem burguesa significa romper com a idealidade burguesa. E com os riscos daí decorrentes. A “ordem” é assim uma concreção de formas políticas. Nesse sentido, se, para a burguesia, o liberalismo é uma ideia limite, para o proletariado ele é apenas um programa mínimo”.

pela experiência stalinista. Quando o complexo da política parecia perder a capacidade de aglutinar sujeitos individuais e coletivos, foi oxigenado pelos desafios postos à realização dos direitos. Esses dois complexos - política e direito - assumiram intensa visibilidade através dos MS que se revelaram possuidores de uma força capaz de envolver os sujeitos e colocá-los, novamente, no circuito da luta política.

Sujeitos coletivos os mais variados inscreveram suas reivindicações na arena dos direitos humanos. O movimento feminista foi um dos primeiros sujeitos coletivos a manifestar que “sem as mulheres, os direitos não seriam humanos”. Sucessivamente outros segmentos foram ampliando a agenda dos DH. Tratava-se de uma espécie de reconciliação entre a esquerda e a luta pela realização da democracia e dos direitos humanos.

Como fundamento dessa reconciliação enraizava-se a concepção de que o importante era perseguir o possível, identificado como um conjunto de condições que, supostamente, poderia ser efetivado de imediato, sem necessidade de transformações societárias de caráter mais amplo, ou seja, tratava-se de exercer controle sob o desenvolvimento do capital com o objetivo de reconhecer direitos os mais elementares para a efetivação do Estado de direito e evitar índices elevados de injustiça social. Eis a meta que ganhava expressão no pensamento da esquerda e, especialmente, daqueles que se envolviam no enfrentamento das opressões particulares.

A cultura política dos DH é assumida no pensamento da esquerda sob a crítica aberta ao socialismo e ao marxismo, este último profundamente reduzido às injunções deterministas122. A luta pela realização dos DH reoxigenou as forças de esquerda que estamos conceituando, neste trabalho, de “esquerda democrática” e ganhou maior adesão e legitimidade, quando agregada ao famoso ideário do “direito a ter direitos” e à noção de valorização da esfera pública não estatal.

O pensamento de Hannah Arendt e Habermas influenciou, sobremaneira, na constituição da “esquerda democrática”. Arendt, notadamente, no que se refere a dois aspectos: na concepção de que a política está na centralidade da vida social e na consideração sobre o indivíduo enquanto ser que tem “direito a ter direitos”. A influência habermasiana recaiu na ideia de valorização da esfera pública não-estatal como lócus da realização da política e do interesse

122 Marcos Rolim é um dos expoentes do PT que parte da crítica do marxismo para a defesa dos DH como valor

público, amplamente difundida a partir da década de 1980. Vejamos mais de perto aspectos desta influência, tendo em vista a relevância dessas posições para o aprimoramento da relação entre a esquerda, a luta pela realização dos DH e o enfrentamento das formas de opressão.

Arendt lança mão da noção do “direito a ter direitos” quando analisa o nazismo e o stalinismo como modos de ser da sociedade totalitária que denega, por princípio, o direito123. O

objetivo da autora consistia em mostrar a importância da liberdade como prática que deveria ser instituída, na sociedade, para que daí pudesse se desenvolver plenamente o exercício da política como condição humana.

Quando boa parte da “esquerda democrática”, em nível internacional e nacional, passa a assimilar o ideário do “direito a ter direitos”, verificamos uma tendência a desconsiderar o contexto em que a autora produziu sua obra. Assim, este ideário é adotado como princípio orientador das lutas, notadamente, no âmbito das opressões particulares, sem que se busque o entendimento efetivo da produção ideológica e seus efeitos práticos na elaboração da visão de mundo dos indivíduos. O resultado, como veremos, vai de uma tendência mobilizadora à construção de uma agenda política defensiva e superficial em torno dos direitos.

Isto porque, de início, o ideário do “direito a ter direitos” operou como um dispositivo ético-moral mobilizador. Vários sujeitos, antes em silêncio, frente às formas de opressão vivenciadas, passaram a se manifestar, publicamente, impulsionados pelo reconhecimento subjetivo e simbólico de que tinham “direito a ter direitos”. Em relação aos segmentos LGBT, esta dimensão teve enorme força aglutinadora. Contudo, paulatinamente, foi perdendo sua radicalidade ao ser assimilada pela lógica cultural dominante, que direcionou a solução da homofobia para o terreno do “politicamente correto”, numa perspectiva de mudança centrada, especialmente, na vontade e na alteração da linguagem em sua dimensão individual.

A noção do “direito a ter direitos” reforça a tendência dos sujeitos individuais e coletivos a permanecerem sob a dominação ideológica liberal-burguesa, porque por este entendimento, ainda que não seja esta a intenção dos sujeitos, ocorre uma ruptura entre as formas de opressão e o universo societário que possibilita sua reprodução ou atualização sob novas

123 No início deste capítulo abordamos algumas implicações teórico-políticas que podem ser apreendidas da concepção

modalidades. Os grupos específicos, mesmo sem direitos, passam a reproduzir, ideologicamente, a noção de que são sujeitos que “têm direitos a ter direitos”, quando na verdade, são sujeitos que expressam cotidianamente o não acesso ao direito e à justiça. A escassez ou total ausência dos direitos fica subsumida na dimensão positiva de uma subjetividade que afirma possuir direitos. Com isso, o modo de estruturar as reivindicações e as táticas de visibilidade adotadas explicitavam mais à vontade que os sujeitos possuíam de ter direitos do que a situação de opressão vivenciada.

Ao ideário do “direito a ter direito” agregou-se a noção de esfera pública-não-estatal. Inspirada, especialmente, na análise de Habermas, num contexto em que, para o autor, os países capitalistas avançados vivenciavam uma forte tendência a uma vida pública degradada, em que a democracia liberal se dissolvia em manipulação de formas de participação, a exemplo dos plebiscitos que eram realizados sob forte jogo de mídia e perdiam muito da sua força diante da apatia que crescia na vida social. Para o autor esse foi um momento no qual os indivíduos eram levados a não expressar suas posições e desistirem de formar coletividades atuantes politicamente. No final da década de 1980, avaliava Habermas que isto estava acontecendo, sobretudo, pelo fato de que “a utopia de uma sociedade do trabalho perdeu sua força persuasiva” (HABERMAS, 1987, p. 106).

após a II Guerra Mundial, todos os partidos dirigentes alcançaram maioria, de forma mais ou menos acentuada, sob a insígnia dos objetivos sócio estatais. Entretanto, desde a metade dos anos 70 os limites do projeto do Estado Social ficam evidentes, sem que até agora uma alternativa clara seja reconhecível. Em razão disso gostaria de precisar minha tese acima: a nova ininteligibilidade é própria de uma situação na qual um programa de Estado Social, que se nutre reiteradamente da utopia de uma sociedade do trabalho, perdeu a capacidade de abrir possibilidades futuras de uma vida coletivamente melhor e menos ameaçada (HABERMAS, 1987, p. 106).

Habermas propôs como indicação para o enfrentamento de tal situação, o que podemos caracterizar como sendo uma espécie de “restauração” da esfera pública. Isto deveria ocorrer mediante o processo de democratização dos partidos políticos, da mídia e demais instituições. Num quadro que misturava perplexidade frente aos partidos de esquerda que migravam, do ponto de vista do autor, do mundo da vida para o sistema político, a novidade emergia

velha classe média, em parte alinhadas de um modo `pós materialista´, mas em todo caso resistentes, que se tornaram o núcleo das esferas contra públicas autônomas – velhos e jovens, feministas e homossexuais, deficientes e desempregados ativos, profissionais radicais, donas-de-casa suburbanas etc. (HABERMAS, 1987, p. 96).

Este foi o clima político que se estabeleceu depois do fim da II Guerra Mundial, do esgotamento da era stalinista, das ditaduras na América Latina e dos sistemas do Leste Europeu. As forças políticas da esquerda democrática consagraram a democracia como horizonte societário e valor universal. Assim, durante as décadas de 1970 e 1980 vários intelectuais de esquerda empenharam-se para construir e consolidar os fundamentos democráticos como pensamento e prática da esquerda. Esta foi uma tarefa relevante para recompor direitos civis e o quadro democrático por onde é possível instituir práticas de resistência. O problema é que no decurso da retomada do Estado de direito, houve uma espécie de adaptação das forças democráticas de esquerda ao horizonte liberal-burguês. É o que veremos em seguida.