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1.2 DIREITO: A QUEM SERÁ QUE SE DESTINA?

1.2.5 A gramática dos Direitos Humanos em sua dimensão histórica

A grandiosidade dos princípios, definidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 10 de dezembro de 1948, e em documentos complementares, contrasta com a realidade sócio-econômico-cultural, de profunda escassez, vivenciada por segmentos majoritários da humanidade. A crise contemporânea do capital expressa seu lado perverso, na medida em que atinge segmentos expressivos da população, que são submetidos ao desemprego; à

violência e a crescente falta de perspectiva na vida, sobretudo, nos países de capitalismo periférico, com sua integração subalterna à ordem mundial e com efetivação de uma agenda político-social contrária à efetivação dos direitos. Segundo Sader (2000)82, “se fosse definir sinteticamente a época em que vivemos, diria que se trata de uma época de expropriação de direitos. Do lado econômico, é uma época de desregulamentação e, do lado político e social, é uma época de regressão da civilização, de expropriação de direitos”.

As últimas décadas foram de retração dos direitos face à universalização das relações mercantis, em que nada parece escapar à força, ao controle e direção do sistema do capital que submete todas as dimensões da vida social ao valor de troca. Em tempos difíceis assim, há uma tendência contraditória para a reação, que pode se expressar: na forma de imobilismo; na adesão passiva à ordem ou na resistência, que assume direção política variada, a depender, do nível de organização e capacidade crítica, protagonizada pelos sujeitos coletivos. No entanto, conforme nos adverte Tonet (2002, p. 13), é preciso examinar, com cautela e precisão teórica, as saídas propostas, pois este é um tempo de profunda nebulosidade teórico-política: “Trata-se da fratura, cada vez maior, que se está abrindo no mundo de hoje, entre a realidade objetiva e os valores éticos proclamados”. Ou seja, quanto mais se dilaceram as condições de existência, maior é o apelo à valorização dos direitos humanos; ao desenvolvimento sustentável; a ética na política, dentre outras alternativas que se interpõem com o objetivo de conter e preservar o vínculo social.

Longe de negar ou desvalorizar as lutas memoráveis pela realização dos direitos, o que está em jogo é a capacidade da esquerda em construir um projeto político emancipatório frente ao capital e, neste sentido, duas condições são essenciais: (1) discernir as armadilhas liberais para delas se diferenciar; e (2) na construção dos instrumentos de luta, jogar força teórico-política, para que as estratégias direcionem as táticas e não o contrário, como tem prevalecido no pensamento da “esquerda democrática”.

A tendência predominante na prática de muitos sujeitos coletivos e na interpretação sociológica, no campo dos DH, tem sido a do comando quase absoluto da tática, a ponto de não se constituir exagero perguntar: existe uma estratégia no pensamento da “esquerda democrática”? Em que consiste esta estratégia, quando as representações partidárias, os movimentos sociais e outros

82 Cf. Sader, Emir. Direitos humanos e subjetividade In: Psicologia, direitos humanos e sofrimento mental. Conselho

sujeitos coletivos se lançam na luta imperiosa pela defesa do ideário da democracia e pela realização dos DH, como o horizonte máximo de suas lutas? Seriam, então, esses os pilares do projeto societário da esquerda nos dias atuais? O ideário dos DH tem uma história e várias interpretações que constituem sua gramática. Resgataremos algumas dimensões desta trajetória histórica.

Na literatura sobre DH, sobressai a tendência de classificar esses direitos em diferentes gerações83. Nessa perspectiva, o caráter histórico dos DH é entendido enquanto um construto linear

e evolutivo e há uma tendência para a dissimulação das relações de classe. Na gramática dos DH84,

os direitos de primeira geração, também denominada direitos de liberdade, se referem especialmente ao panorama do século XVIII e são os direitos civis e políticos85. O enfoque dado refere-se à ideia de que o indivíduo possui direitos inalienáveis como a vida; a liberdade; a expressão do pensamento; a propriedade, dentre outros. Para a garantia desses direitos o Estado deve manter-se ausente. É a noção dos direitos negativos que supostamente não demandariam a presença ativa do Estado para a sua realização.

Vale lembrar que a constituição da chamada primeira geração dos DH ocorreu, justamente, no momento histórico em que a burguesia se empenhava para ascender à condição de classe social dominante.86 É o momento de superação política do Ancien Regime e da efetivação do capitalismo como forma dominante de organização da vida social. Esta primeira geração de direitos expressa, portanto, todo o empenho da burguesia na consolidação do seu projeto político. Sobre isto é importante ter clareza de que:

83 Ressalte-se que nesta perspectiva de classificar os direitos em diversas gerações está posta a ideia de um permanente

desenvolvimento do Estado e da democracia e, nesses termos, a qualquer momento histórico poderá surgir uma nova geração de direitos. Daí que mais recentemente tem se falado da existência da quarta geração de direitos que não abordaremos aqui.

84 Com algumas diferenças em termos da periodização, Marshall é um dos grandes inspiradores desta tendência, por

ter classificado os direitos, de forma evolutiva, em períodos históricos determinados. Em Cidadania, Classe Social e

Status, o autor ao se referir à Inglaterra propõe a célebre divisão cronológica na qual os direitos civis teriam surgido

no século XVIII; os direitos políticos no século XIX e os direitos sociais no século XX.

85 Para a caracterização de cada um desses conjuntos de direitos, Cf. Bedin (1998).

86 Este é o momento histórico no qual “eliminam-se privilégios de sangue, consagrando-se a igualdade de todos os

homens perante a lei e os direitos naturais e imprescritíveis do homem são proclamados: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão; garante-se a liberdade de pensamento e de opinião, se estabelece a divisão de poderes, impõe-se garantias perante os que aplicam as leis” (SORONTO In: CDROM – Enciclopédia Digital de Direitos Humanos).

a classe burguesa, carro-chefe da revolução, tinha a possibilidade real de apresentar um projeto global para a sociedade, capaz de unir ao seu redor todos aqueles que aspiravam por uma sociedade mais igualitária. Não era simplesmente um oportunismo clamar a revolução todos os oprimidos pelo sistema feudal. Era uma proposta real, progressista como se diria hoje, ainda que, por sua própria natureza, limitada (TONET, 1997, p. 13).

Entretanto, apesar de todos os avanços conquistados em relação ao sistema feudal, as limitações do projeto burguês vieram à tona mediante o fato deste projeto representar os interesses de uma classe particular. Além disso, configurou-se um processo de apropriação privada do excedente da produção. Assim, a riqueza espiritual e material socialmente produzida foi, e permanece, apropriada por um segmento absolutamente minoritário. Enquanto isto, a maioria da população que participou com o seu trabalho na produção desta riqueza, fica impedida de se apropriar dos resultados alcançados e, em determinadas conjunturas sócio-políticas, nem mesmo suas necessidades mais imediatas são atendidas.

Desse modo, como consequência do desenvolvimento e expansão do capitalismo, ao invés do cumprimento das promessas de liberdade feitas pela burguesia, no seu momento progressista, os segmentos majoritários da população foram submetidos, de forma mais intensa, à exploração por meio da incorporação do maquinário moderno no processo produtivo87.

A expansão do sistema capitalista ocorreu mediante o crescimento das desigualdades sociais, o desenvolvimento da economia industrial e o fortalecimento da classe trabalhadora. As classes fundamentais interagem na defesa de interesses antagônicos, num jogo de forças que embora comandado pelo capital tem nos segmentos do trabalho o sujeito antagônico que efetiva seu processo de organização e protagoniza lutas sociais contra a dominação capitalista. A tática utilizada é a busca incessante da garantia e ampliação dos direitos com direção social contrária às promessas da burguesia.

Na trajetória histórica do século XX, especialmente no contexto sócio-político após a II Guerra Mundial, o confronto entre o socialismo e o capitalismo incidiu, diretamente, nas lutas pela realização dos DH, notadamente, sob dois aspectos. Em primeiro lugar, verifica-se, no front

87 Segundo Barbalet (1989, p. 21), “durante os séculos XVIII e XIX os direitos de cidadania coexistiram em inteira

harmonia com as desigualdades de classe da sociedade capitalista”. Os direitos civis apareciam como necessários à manutenção daquela forma particular de desigualdade social. Isto porque os direitos civis conferem a quem os tem a possibilidade de entrar nas trocas de mercado como agente independente e autossuficiente. Capitalistas e trabalhadores não se distinguem uns dos outros do ponto de vista dos direitos civis, por terem o mesmo direito de participar nas trocas e contratos de mercados uns com os outros (BARBALET, 1989, p. 21).

das divergências, entre liberais e socialistas que esses últimos foram disseminando a ideia de que sem direitos sociais, econômicos e culturais não seria possível a objetivação dos direitos humanos. Em segundo lugar, nos países capitalistas centrais foram estabelecidas táticas para impedir o avanço do socialismo. Assim, o jogo da luta de classes se intensificou. Longe de uma posição de neutralidade, o Estado é tensionado pela ação política das classes sociais. Recebe, então, as requisições do capital e do trabalho. Para o capital, o objetivo maior voltava-se para exigir do Estado a formação de um mercado consumidor que possibilitasse agilizar o desenvolvimento capitalista. É um momento histórico-conjuntural em que o Estado se vê em plena correlação de forças, pressionado que estava pelas demandas do capital e pela presença política da classe trabalhadora, especialmente através dos sindicatos que incorporaram, como prioridade, em suas lutas, reivindicações pela efetivação dos direitos sociais. A resposta do Estado vem no front da correlação de forças. A expansão de um leque abrangente de políticas sociais que resultaram na melhoria das condições de existência da classe trabalhadora ocorreu no espaço-tempo em que pelas mãos do Estado estava garantido também a ampliação do mercado consumidor.

A materialização deste processo se deu, nos países capitalistas centrais, através do Estado Social88 que atendeu um conjunto de reivindicações, efetivando, desse modo, os direitos de segunda geração ou direitos de igualdade. São os direitos sociais, econômicos e culturais. Destacam-se as reivindicações em torno do direito ao trabalho; à organização sindical; à seguridade social; à justa remuneração, dentre muitos outros considerados coletivos89. Na literatura sobre os DH, comumente esses direitos são pensados equivocadamente como uma consequência quase natural dos direitos de primeira geração e não como resultantes das lutas sociais empreendidas pela classe trabalhadora e as respostas dadas pelo Estado no front das lutas cotidianas. Além disso, há uma tendência para a generalização, como se as conquistas do Estado Social tivessem atingido todos os países. Esse tipo de generalização mostra as implicações danosas que podemos apreender quando as particularidades nacionais e regionais são subtraídas da análise.

88 Utilizaremos, nesta tese, o termo Estado Social de acordo com Boschetti (2003, p. 59) “para designar genericamente

a ação do Estado capitalista na regulação das políticas sociais. Preferimos sua utilização a terminologias como Welfare State, Estado Providencia e Estado de bem-estar social por entendermos que cada uma dessas categorias se refere a contextos históricos e socioeconômicos bem específicos, com características próprias aos países a que se referem. Para um histórico da constituição do Estado Social nos países capitalistas Cf. Potyara Pereira (2000) ”.

89 Os direitos de segunda geração integram o pacto internacional dos direitos econômicos; sociais e culturais (DESC)

Ainda sob as determinações do fim da II Guerra Mundial, com a derrota dos regimes nazifascistas, foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) que passou a funcionar como uma espécie de divisor de águas, referência obrigatória no debate contemporâneo sobre este tema. Esta declaração, ao fazer referência aos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, procurou romper, ainda que de modo indicativo, com a tendência à classificação em diferentes gerações de direitos humanos. No entanto, em termos objetivos, ao invés da compreensão quanto à indivisibilidade dos DH, o que ocorreu foi a divulgação da terceira geração de direitos.

Trata-se daquilo que foi denominado direitos dos povos. A ideia é de que todos os povos tenham direito à existência; à preservação de sua cultura; tenham direito à paz e ao pleno desenvolvimento, ou seja, que a humanidade possa se autodeterminar. É somente, neste período, que a defesa dos DH transcende a esfera dos Estados nacionais para atingir o campo internacional90. Um dos problemas nesta interpretação evolutiva na conceituação dos DH reside no efeito ideológico que tal abordagem produz ao naturalizar a passagem de uma geração a outra de direitos. É como se as reivindicações de um determinado período histórico estivessem completamente atendidas e, diante do processo de desenvolvimento da humanidade, uma nova geração de direitos, começaria a se gestar. Acrescente-se, ainda, o risco das novas reivindicações serem consideradas mais importantes frente àquelas de um período anterior. Na interpretação de Benvenuto (2000, p. 14),

a crítica à classificação geracional de direitos humanos alcança também a distinção de que os direitos civis e políticos seriam anteriores aos direitos econômicos, sociais e culturais. Essa distinção não leva em consideração que determinados direitos, como é o caso do direito à propriedade – direito econômico por excelência – tenha surgido no bojo das lutas liberais, portanto, no período de validação dos direitos civis e políticos [...].

Outro limite, desta classificação, é que ela é feita, na maioria das vezes, sem o exame criterioso do processo sociopolítico nos países periféricos. Assim, é comum, no debate sobre DH, não se levar em consideração os graves problemas decorrentes do desenvolvimento do capitalismo: do fato deste se constituir um sistema de produção voltado, fundamentalmente, para a produção de

90 A perspectiva é que a atividade voltada para a proteção internacional se realize em três aspectos: promoção, controle

mercadorias. Isto significa que sua produção não tem como objetivo primeiro satisfazer as necessidades humanas e, sim, a busca permanente da valorização do valor91.

A classificação geracional dos DH pode levar à subtração das contradições e tensões presentes na realidade. Daí porque não é possível pensar a trajetória histórica de realização dos direitos, de forma ascendente e progressiva, sem explicitação do movimento contraditório da realidade e da tensão permanente presente nas lutas sociais92. É possível afirmar que apesar da luta pela realização dos DH evoluir com a aprovação da Declaração Universal e com o conjunto de questionamentos sobre a indivisibilidade dos direitos, este processo foi permeado por signos progressivos e regressivos, enquanto síntese de inúmeros acontecimentos históricos e da dinâmica da luta de classes. Não é um processo linear, de ascensão permanente, como nos faz pensar Bobbio (1992) ao sentenciar “a era dos direitos” ou Marshall com a perspectiva de universalizar a experiência inglesa com a clássica separação temporal em que supostamente os direitos civis, políticos e sociais teriam se materializando.

Nas últimas décadas, no âmbito do debate e das lutas pela realização dos DH busca-se romper com este ideário de subdividir os direitos. Ganha maior efetividade, do ponto de vista do discurso dos militantes e estudiosos da questão, a defesa dos direitos civis, políticos; econômicos; sociais e culturais como algo indivisível. Benvenuto (2001) defende esta indivisibilidade dos direitos e critica a classificação geracional como uma concepção tradicional dos DH que define os direitos civis e políticos como DH por excelência. Exatamente, por isso, são os únicos que, demandariam ao Estado, a criação de mecanismos para sua realização prática. Os demais direitos (econômicos, sociais e culturais), considerados, pela classificação geracional, como tendo realização progressiva, dispensariam a criação de dispositivos de regulamentação de modo imediato.

Não negando a existência de diferenças entre os DH, inclusive em relação à especificidade dos instrumentos de exigibilidade, o que a indivisibilidade destaca é a

91 Trata-se “de um processo autônomo, auto reflexivo, um movimento que existe em função de si mesmo: tudo se

refere a ele, inclusive os homens, cuja força de trabalho se transforma em instrumento de sua valorização. Quanto mais desvinculado da questão da satisfação das necessidades dos homens reais, tanto melhor se impõe o valor como sujeito de todo o sistema” (OLIVEIRA, 1995, p. 16).

92 Basta lembrar a postura dos EUA que não hesitou em efetivar uma forte represália intitulada – Guerra contra o Terror

– desenvolvida após 11 de Setembro de 2001, em reação às explosões no Word Trade Center e Pentágono. Nas suas táticas de intervenção, o governo americano não levou em consideração nenhum princípio contido na declaração universal dos direitos humanos, em documentos e pactos similares.

impossibilidade prática de compartimentar os direitos humanos, mediante a visão de que só é possível materializar direitos tidos como civis e políticos se houver direitos tidos como econômicos, sociais e culturais minimamente respeitados e vice-versa. Por essa razão, para que se consiga imbuir os DH na ideia de indivisibilidade, considero mais adequado se falar em DH civis e políticos e em DH econômicos, sociais e culturais. Essa perspectiva, ao mesmo tempo que reconhece a existência de tipos diferentes de direitos, os abriga sob o manto dos DH, atribuindo-lhes uma unidade conceitual (BENVENUTO, 2001, p. 08).

Do nosso ponto de vista, é necessário situar a crítica à classificação geracional dos DH no universo da sociabilidade vigente. Trata-se de romper com o ideário dos DH enquanto valores universais entendidos de forma abstrata. Caso contrário, apesar de bem articulada e carregada de boas intenções, a crítica permanecerá restrita à arena da formulação democrática burguesa, acrescida de uma exigência ética por mudanças parciais na estrutura operativa do capital. Merece destaque o fato de que todo o esforço para objetivação dos DH e a criação de uma cultura política de defesa dos direitos universais aconteceu mediante inúmeras tensões políticas, decorrentes das posições dos dois blocos nos quais o mundo se dividiu depois da II Guerra Mundial. No entanto, predominou, na abordagem sobre o tema, a ideia de que tudo se passava como se todos os países estivessem, da mesma forma, verdadeiramente, empenhados na conquista dos direitos humanos.