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1.2 DIREITO: A QUEM SERÁ QUE SE DESTINA?

1.2.3 Particularidades do Direito enquanto complexo social

Destacaremos duas características principais que particularizam o direito enquanto complexo social. Em primeiro lugar, o direito não surge espontaneamente. Sua gênese e seu modo de ser estão subordinados à crescente divisão social do trabalho e, neste sentido, constitui-se uma necessidade, a princípio imposta pela classe dominante para regular seus interesses. Não apresenta, portanto, uma natureza universal nem no sentido do tempo histórico, pois houve sociedades que não constituíram o direito como mediação das relações sociais; nem é universal, enquanto necessidade eterna do gênero humano, algo vital para o seu desenvolvimento. De acordo com Lessa (1997, p. 82):

a afirmação, por Lukács, do caráter limitado, não universal, do complexo do direito não deve nos levar a crer que ele desconheça a necessidade de alguma forma de regulamentação social mesmo nas sociedades sem classes. [...] Na ausência das classes, a regulamentação social é efetivada sem ter como pressuposto a manutenção da exploração do `homem´ pelo `homem´. O complexo do direito, enquanto instrumento social de manutenção da exploração, seria superado por uma regulamentação qualitativamente superior dos conflitos sociais. As coisas – e não os `homens´ – é que seriam administradas.

Em segundo lugar, enquanto complexo social parcial, sua dinâmica é, em si, contraditória. Observemos, aqui, que todo complexo social traz, em sua relação com a totalidade social, a força de uma ineliminável contraditoriedade, que se apresenta sob a forma de inúmeras mediações. O campo de mediações pode servir à constituição de uma visão de mundo crítica à ordem estabelecida; à elaboração de instrumentos políticos de resistência e de iniciativas que, nas sociedades de classe, a depender da direção social que assumem, auxiliam na explicitação da desigualdade e no enfrentamento das formas de opressão e exploração, exigindo ação do Estado e, em algumas situações, iniciativas de desobediência civil, de modo a garantir condições materiais mínimas e, no limite, a reter índices de barbárie.

Somente nas condições sócio concretas e no ambiente contraditório da luta de classes é possível definir precisamente se determinada luta por direito e sua respectiva configuração legal, orienta-se para desmistificar formas históricas de dominação ou, ao contrário, aprofunda e reforça ações conformistas, por disseminar, ideologicamente, a igualdade perante a lei, como se esta fosse a própria resolução de uma dada forma de opressão e de exploração. Disciplinar, amenizar conflito e resolver formas de opressão são questões qualitativamente diferentes. No primeiro caso, trata-se de administrar os problemas e, no segundo, enfrentá-los. O processo, portanto, distancia-se em tudo da famosa tese quanto à existência, no pensamento marxiano, de um determinismo da economia, pelo qual o direito e a política perderiam seus estatutos e movimentos para constituírem um epifenômeno das relações econômicas.

Quanto a este caráter contraditório do complexo do direito, alguns elementos merecem destaque, a exemplo das dimensões ética e política. A dimensão ética porque os sujeitos demandatários de direitos, para além da legalidade instituída, podem revelar novas questões, desafios e necessidades; podem articular interesses e contribuir para alterar, qualitativamente, o modo de vida, valores e aspectos da concepção de mundo dos indivíduos. Trata-se, portanto, de expressar identidade com valores ético-morais de modo objetivo, sinalizando a direção da luta para o real atendimento das necessidades humanas. A perspectiva é a ruptura com a defesa de valores ético-morais abstratos e diluídos na ideia do interesse comum capitaneado pelo Estado.

A diferença entre o que é legal e o que é ético pode potencializar o desenvolvimento do gênero humano, via identificação daquilo que de fato são as necessidades humanas. Não estamos afirmando, com isto, que a identificação das necessidades reais dos indivíduos e a consciência da situação de dominação são suficientes para transformar relações estruturadas desigualmente, mas que se constituem dimensões relevantes no processo de elaboração do projeto das classes subalternas. Também não há como deduzir ou generalizar que as configurações legais em si não seriam éticas. A condição para discernir sobre a substância e a qualidade da relação entre a lei e a ética; entre a legalidade e sua eficácia, na vida cotidiana, é a análise concreta de situações concretas. Quanto à dimensão política, a luta por direitos se realiza enquanto ação política, na medida em que a regulamentação de um determinado direito, numa sociedade fundada no antagonismo de classe, não acontece naturalmente, mas é, na maioria das vezes, produto da organização coletiva, da correlação de forças e da articulação entre luta institucional, parlamentar

e luta popular, extraparlamentar. Esse quadro de mediações mostra que “o momento predominante no desenvolvimento do direito é o devir-humano” (LESSA, 1997, p. 83). Lembremos aqui do famoso discurso sobre a ação política da classe operária realizado por Engels, em 1871, quando afirmou que:

a experiência da vida atual, a opressão política a que os governos existentes submetem os trabalhadores (tanto com objetivos políticos como sociais) obriga-os a se dedicarem, querendo ou não, à política. Pregar a abstenção política aos operários significa lançá-los aos braços da política burguesa (ENGELS, 1981, p. 100).

A política é considerada um complexo social que se destina à luta pela conquista do poder e à defesa de certos interesses e direitos. Essas lutas tiveram o papel e, ainda podem diminuir o nível da exploração e da opressão imposta às classes trabalhadoras, bem como foram e são importantes para o seu acúmulo ideológico na disputa hegemônica. Em síntese, podemos afirmar que, apesar da origem e da natureza do direito, não há derivações mecânicas frente ao movimento histórico da formação social no seu todo.

Em outras palavras, o desenvolvimento global da formação social sempre coloca novas demandas a todos os complexos parciais. Os complexos reagem às demandas desenvolvendo a si próprios, levando adiante as suas legalidades específicas. Quanto mais complexa e desenvolvida a formação social, mais complexas são as tarefas e, consequentemente, mais ricos e articulados devem ser os complexos sociais parciais (LESSA, 1997, p. 79).

Neste momento histórico em que a perspectiva da subjetividade ganha a dianteira, seja na produção do conhecimento, seja na ação política, torna-se relevante o conhecimento ontológico. Identificar a origem, natureza e função social de complexos como o direito possibilita apreender os limites da regulamentação sócio jurídica na resolução das formas de opressão. O abandono da perspectiva ontológica obscurece a relação entre direito e sociabilidade e isto têm sérias implicações na construção dos instrumentos de classe para a conquista da emancipação humana porque:

na imediaticidade da vida cotidiana, contudo, essa relação entre fundado e fundante aparece invertida. Não é mais o desenvolvimento social que funda o direito, mas é o estabelecimento de um ordenamento jurídico que fundaria a sociedade. As leis jurídicas determinariam, segundo esta concepção típica dos juristas e do senso comum cotidiano, o

ser dos `homens´ – e não o contrário. A potencialidade dessa inversão entre fundado e fundante para justificação do status quo é facilmente perceptível. Sendo breve, se o `homem´ é o que determina a lei, a lei é sempre justa. E se a lei afirma o direito à propriedade privada como garantia jurídica de o `direito´ do capital explorar o trabalho, não há injustiça na exploração do `homem´ pelo `homem´. Por essa via, o complexo do direito, por milhares de anos, tem fornecido elementos importantes à constituição de uma visão de mundo que, nas sociedades de classe, tem auxiliado em tornar `operativa´ a práxis cotidiana dos indivíduos. E, nessa exata medida, o direito é uma forma específica de ideologia (LESSA, 1997, pp. 52-53).

Do nosso ponto de vista, identificar a dimensão fundante e operar com as determinações ontológicas não são detalhes de especulação filosófica73, mas servem, tanto ao

conhecimento da realidade, quanto, via um amplo arco de mediações, à objetivação das lutas. Neste último caso, pela possibilidade de evidenciar, para os sujeitos individuais e coletivos, a natureza, a função social e ideológica dos complexos sociais. Assim, a realidade pode ser apreendida em sua força contraditória e os complexos sociais parciais integrados à totalidade.

Nessas condições, tornam-se mais fecundas as estratégias e táticas que esses sujeitos podem lançar mão, em sua práxis cotidiana, com o objetivo tanto de resistir como de enfrentar às formas de exploração e de opressão. Se não identificar bem a dimensão de classe, as possibilidades e os limites que permeiam o campo sócio jurídico e mais do que isto, a relação de dependência deste complexo à totalidade, os sujeitos coletivos podem abstrair o campo objetivo que é polo regente e esperar solução de onde só é possível atingir, em situações concretas favoráveis, regulação e iniciativas parciais para atenuar desigualdade e opressão.

Em que medida os indivíduos sociais articulados em espaços coletivos ao defenderem seus direitos, mediados por inúmeras necessidades74, explicitam a substância da vida social, ou seja, o jogo complexo e contraditório dos interesses de classe? Por fim, qual a força que o direito tem para controlar a dinâmica do capital, exercendo, sobre esta, limites e orientando-a para o

73 Sobre a relevância da ontologia do ser social, afirma Lukács (1978, p.02), “na história da filosofia, como se sabe,

raramente o marxismo foi entendido como uma ontologia. Em troca, o que aqui nos propomos fazer é mostrar como o elemento filosoficamente resolutivo na ação de Marx consistiu em ter esboçado os lineamentos de uma ontologia histórico-materialista, superando teórica e praticamente o idealismo lógico-ontológico de Hegel. (...) A ontologia marxiana afasta daquela de Hegel todo elemento lógico-dedutivo e, no plano da evolução histórica, todo elemento teleológico”.

74 Na medida em que a sociedade se complexifica, os indivíduos apresentam reivindicações as mais diversas. A luta

por direitos se estende por várias dimensões da vida humana, sintetizando um amplo processo de mediação para a compreensão das necessidades humanas.

atendimento das necessidades humanas? Analisar os DH sob a perspectiva da totalidade possibilitará o entendimento sobre essas questões.