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O “modelo social-democrático” e suas implicações no pensamento da esquerda

2 A ASCENSÃO DA “ESQUERDA DEMOCRÁTICA” NO CONTEXTO DE CRISE DO

2.1 CARACTERIZAÇÃO DO PENSAMENTO DA “ESQUERDA DEMOCRÁTICA”

2.1.2 O “modelo social-democrático” e suas implicações no pensamento da esquerda

Considerando diversas interpretações realizadas atinentes à trajetória da organização das forças políticas do trabalho, elegemos, em nosso estudo, elementos que favoreçam a compreensão das táticas e estratégias que a esquerda contemporânea, em sua tendência dominante, a “perspectiva democrática”, absorveu como legado e crítica deste passado. Estamos, de acordo com Bihr (1999), chamando de “modelo do movimento operário”:

uma certa configuração deste, caracterizada ao mesmo tempo por formas organizacionais, institucionais e ideológicas determinadas, assim como por seu arranjo de acordo com uma estrutura característica. Essas formas e esse arranjo correspondem sempre a uma estratégia dominante na luta de classe do proletariado, a uma concretização histórica particular de seu projeto de emancipação, em relação a um aspecto particular da luta de classes, dando nascimento a uma forma original de desenvolvimento do capitalismo (BIHR, 1999, p. 19).

Esse modelo, em suas origens históricas, contempla duas vertentes principais, uma de caráter reformista e outra revolucionária. Esta última distancia-se da nomenclatura – socialdemocracia, abraçando a perspectiva da crítica à sociedade capitalista e disseminando “o mito do progresso”, com a inevitabilidade do socialismo. A vertente reformista herda e populariza o nome socialdemocracia como o ideário das reformas democrático-populares.

Na objetivação dessas duas orientações teórico-políticas, configura-se uma série de particularidades nacionais que geraram heterogeneidade na constituição das práticas políticas. Mesmo assim, de acordo com Bihr (1999), esta heterogeneidade não coloca em xeque a constituição de um modelo. Ao contrário, desdobra todas as suas potencialidades. Uma vez que estas duas variantes do “modelo social-democrático” estiveram em disputa acirradas, em vários momentos históricos, o que nos autoriza a entendê-las como manifestações de um mesmo modelo?

só podemos falar de modelo do movimento operário à medida que é possível colocar em evidência que suas diferentes características (estratégicas, organizacionais, ideológicas) respondem a uma mesma fórmula que garanta sua estabilidade estrutural, apesar das inevitáveis diferenças e particularidades históricas e geopolíticas. Nesse sentido, a existência e a originalidade do modelo socialdemocrata está relacionada, em primeiro lugar, a seu curioso projeto que propõe ao proletariado emancipar-se do capitalismo de Estado, emancipando o Estado do capitalismo (BIHR, 1999, p. 20).

A despeito disso concordamos com a análise de Bihr (1999) que identifica nas duas perspectivas um aspecto central que consiste no fato de que ambas elegeram o Estado como alvo de sua ação política. Ou seja, os objetivos que pretenderam atingir, passaram, necessariamente, pelo Estado. Exatamente, por isso, trata-se de “um modelo” que, mesmo dividido, com táticas diferentes, perseguiu, a rigor, o mesmo alvo e não conseguiu escapar da setorialidade e parcialidade impostas pelo sistema do capital. As forças organizadas do trabalho foram aprisionadas pela pressão em torno da realização de demandas parciais e imediatas97.

A setorialidade e a parcialidade podem ser verificadas em termos da organização política. Isso porque as forças de esquerda carregam, em sua tradição, a criação de associações parciais, lócus de ordenamento das reivindicações e oportunidade para reunir os sujeitos individuais em torno de objetivos comuns. Assim, foram criados os sindicatos; as associações profissionais; os movimentos sociais, dentre outros espaços parciais e setoriais de organização política. Mèszáros (2002) analisa que a centralização da setorialidade não se limitou ao tipo da organização (associações parciais; sindicatos), mas afetou as condições de existência do movimento socialista, em sua totalidade, configurando-se, num problema de determinação objetiva98 e não apenas um problema subjetivo decorrente, do fato do movimento, ter adotado a tática errada, como analisa Bihr (1999) ao criticar o modelo “social-democrático”.

Além da centralização da setorialidade, podemos apanhar como característica do “modelo social-democrático” sua posição defensiva e uma certa tendência autoritária. O aprofundamento da posição defensiva levou parte significativa das forças políticas de esquerda, através, sobretudo, dos sindicatos, a se constituir num:

[...] interlocutor do capital, sem deixar de ser objetivamente seu adversário estrutural.

97 “O domínio da parcialidade sobre a sociedade como um todo é sempre sustentado pela política como o complemento

necessário à iniquidade das relações materiais de poder estabelecidas. Isto explica a impossibilidade de a sociedade emancipar-se do domínio da parcialidade sem radicalmente transcender a política e o Estado” (MÉSZÁROS, 2002, p. 568).

98 Para Mèszáros (2002, p. 22), “A pluralidade dos capitais não podia, e ainda não pode ser superada no âmbito da

estrutura da ordem metabólica do capital, apesar da tendência avassaladora para a concentração e centralização monopolísticas – e também para o desenvolvimento transnacional, mais precisamente por seu caráter transnacional (e não genuinamente multinacional), necessariamente parcial – do capital globalizante”.

Desta nova posição defensiva, foi possível ao movimento operário, em condições favoráveis, obter algumas vantagens para certos setores do movimento. Isto se tornava possível desde que os elementos correspondentes do capital pudessem se ajustar, em escala nacional – de acordo com a dinâmica do potencial de expansão e acumulação do capital – às demandas propostas pelo movimento operário defensivamente articulado. Um movimento que operava no âmbito das premissas estruturais do sistema do capital, como um interlocutor legalmente constituído e regulado pelo Estado (MÉSZÁROS, 2002, pp. 22-23).

Vale considerar que, do nosso ponto de vista, não se trata de destituir a política de sentido. Na perspectiva da totalidade, a política assume especial relevância se for capaz, de enquanto, complexo parcial, conduzir os indivíduos a pensarem para além das “restrições impostas pelo pensar no interior da estrutura da política [...] isto é, do metabolismo fundamental da sociedade, o social” (MÈSZÁROS, 2002, p. 569).

As tendências autoritárias, identificadas neste modelo, referem-se, sobretudo, a relação entre as diferentes modalidades de sujeitos coletivos. O partido político que, em tese, apresenta frente aos movimentos sociais e entidades de defesa de direitos, maior capacidade de universalizar os interesses das forças organizadas do trabalho, agregando demandas socioculturais, não efetivaram esta tendência. Ao contrário, enquanto outros sujeitos coletivos tiveram papel fundamental na identificação de formas de opressão e na formação política dos indivíduos, pressionando, inclusive os partidos para atualização de sua agenda e maior abrangência no seu processo de atuação, os partidos tenderam à burocratização; ao afastamento de sua base de militância e de seus princípios ideológicos.

Com a constituição dos partidos políticos trabalhistas – que assumiu a forma da separação do “braço industrial” do movimento operário (os sindicatos) de seu braço político (os partidos socialdemocratas e de vanguarda) – aprofundaram-se as atitudes defensivas. Pois esses dois tipos de partidos se apropriaram do direito exclusivo de tomada de decisão, o que já podia ser antevisto na setorialidade centralizada dos próprios movimentos sindicais. Esta atitude defensiva tornou-se ainda pior em razão do modo de operação adotado pelos partidos políticos, que obtinham algumas vantagens ao custo do afastamento do movimento socialista de seus objetivos originais. Pois, na estrutura parlamentar do capitalismo, a aceitação pelo capital da legitimidade dos partidos políticos operários foi conquistada em troca da completa ilegalidade do uso do “braço industrial” para fins políticos, o que representou uma severa restrição aceita pelos partidos trabalhistas, e que condenou à total impotência o imenso potencial combativo do trabalho produtivo materialmente enraizado e potencial e politicamente mais eficaz (MÈSZÁROS, 2002, p. 23).

Quanto aos componentes estruturais de cada uma dessas variantes do “modelo social- democrático”, temos, na vertente reformista, que a tática utilizada para a conquista do poder do Estado, que se confunde demais, neste contexto, com administração governamental, volta-se para a via eleitoral, concedendo, ao parlamento e ao judiciário, função social especial, ao transformá- los, em lócus prioritário, para as disputas ideológicas e para o enfrentamento dos problemas cotidianos. É como se os grandes problemas da vida social tivessem que passar, necessariamente, por estas instituições para, desse modo, encontrar sua solução, ou pelo menos, tentativas reais de amenizar suas consequências.

Seguindo as orientações do partido social-democrático-alemão99, seu êxito eleitoral e suas teses revisionistas, o movimento operário passou a valorizar a luta pela democracia representativa e seus espaços de atuação. Em 1914, diante de um conjunto de fragilidades teórico- políticas determinadas pela eclosão da I Guerra Mundial e pelo processo, em curso, da revolução de outubro, ocorreu a falência política da II Internacional. Posteriormente, sob a efervescência teórico-política, gerada pela vitória soviética e pela expectativa de uma derrota do capitalismo no centro europeu e na Alemanha, ganhou maior visibilidade o conjunto de críticas que estavam sendo feitas aos fundamentos teóricos dessa Internacional.

Como legado desse momento temos que, do ponto de vista estratégico, o “Estado” através das instituições governamentais e operacionalizando uma série de políticas públicas deve ser o promotor de reformas que sejam capazes de limitar a exploração e a opressão presentes na sociedade capitalista.

Na essência, para viabilizar um projeto de modernização e democratização das forças políticas dominantes, as representações sindicais se constituíram em interlocutoras do capital e,

99 Merece destaque, nesse processo, a relação que se estabeleceu entre o partido social-democrático alemão e o

movimento operário. Sobre isso, Andreucci (1982, p. 28) afirma que: “entre 1890 e o final do século está situado o período da maior expansão na influência da socialdemocracia alemã, na influência das ideias que ela representava: todos os partidos socialistas criados após essa data declararam expressamente que assumiam os modos de ser, o programa e a doutrina da socialdemocracia alemã”. No entanto, desde 1875 já se verificava a influência da socialdemocracia na dinâmica do movimento operário. Grosso modo, podemos considerar que a influência da socialdemocracia alemã abrange três períodos: “um primeiro, menos conhecido, de 1875 até o finzinho da década; um segundo situado entre as leis antissocialistas, entre 1878 e 1890; e um terceiro, depois da vitória de 1890, se estende até o final do século, marcado pela discussão sobre o revisionismo, em seguida à qual uma progressiva internacionalização das formas de existência do movimento operário foi acompanhada por certo declínio da influência alemã” (ANDREUCCI, 1982).

neste processo, ocorreu a realização de atividades, tais como:

nacionalizações de monopólios industriais chaves; controle mais ou menos direto de grandes grupos financeiros, municipalização do solo; organização da assistência social pelo Estado; legislação do trabalho visando regulamentar as condições de exploração capitalista e contratualizar as relações entre capital e trabalho; redução das desigualdades sociais por meio da democratização do sistema fiscal e do ensino, etc. Essas reformas são, em princípio, favoráveis a certos interesses imediatos do proletariado [...], cuidadosamente organizando ao mesmo tempo, pelo menos, os interesses da fração modernista da burguesia. Pois não se trata, então, de recolocar em questão seu poder, mas muito mais de abrir o espaço de um compromisso possível com ela (BIHR, 1999, p. 20).

Três questões são fundamentais filtrar deste processo. A primeira é que este projeto de reformas constituiu-se num modo particular da burguesia administrar o capitalismo, mas foi, também, resultado da correlação de forças, num ambiente marcado pela negociação entre os interesses de classe. Conquista e concessão formaram uma unidade contraditória.

Sendo assim, o equívoco ideológico maior de amplos segmentos da esquerda foi entender e identificar, num projeto de reformas, o objetivo máximo a que poderiam chegar as forças de resistência ao sistema. A ideia de inserir-se na malha governamental, dando-lhe direção, tornou- se a grande meta da esquerda e, neste sentido, o pensamento e a prática política foram orientados para a escolha de uma alternativa entre reforma ou revolução.

A opção pelo projeto de reformas redundou, assim, na negação efetiva do projeto de revolução. Para as vertentes “reformistas”, a política foi, progressivamente, reduzida a luta puramente institucional, em sua modalidade parlamentar, o que só veio a favorecer, ainda mais, a materialização de processos de conformação à sociabilidade do capital. Isto porque o capital “por meio da supremacia estruturalmente conquistada, continuou a ser a força extraparlamentar par

excellence, em condições de dominar de fora, e a seu bel-prazer, o parlamento” (MÈSZÁROS,

2002, p. 23).

Ao contrário disso, a esquerda não conseguiu, até os dias atuais, exercer domínio sobre os seus representantes no parlamento. Os parlamentares da esquerda tendem a se distanciar, organicamente, dos interesses dos grupos organizados que lhe deram sustentação política até a chegada ao parlamento. Este tem sido um fenômeno que resulta tanto de adoção de táticas eleitorais equivocadas, mas, também, reflete um movimento de determinação objetiva, que implica no fato

de que “lutas políticas e socioeconômicas constituem uma unidade dialética e consequentemente a negligência da dimensão socioeconômica despoja a política de sua realidade” (MÈSZÁROS, 2002, p. 566).

O segundo aspecto como podemos identificar, através das reivindicações descritas anteriormente, é que as reformas traduziram mudanças reais nas condições materiais da classe trabalhadora. Nos países em que estas foram efetivadas houve uma alteração qualitativa no padrão de vida, inclusive, atendendo aos objetivos do capital naquele momento, em favorecer a adesão dos trabalhadores e trabalhadoras ao consumo em massa.

Dessa constatação, advém a terceira questão que nos parece profundamente densa, constituindo-se, também, no elemento diferencial entre a “esquerda reformista” e a “esquerda democrática”. Trata-se do fato de que, embora afirme o ideário da reforma, a “esquerda democrática”, em sua versão contemporânea, especialmente nos países periféricos, que não tiveram a efetivação do Estado Social, realiza um amplo projeto de contrarreformas, que não produz alteração positiva nas condições de vida das classes subalternas100. Ao contrário, coloca-se, ativamente, a serviço dos interesses do capital.

Podemos deduzir que há uma espécie de economicismo nesta análise? Não se trata evidentemente disso, mas de apanhar o movimento do capital no momento contemporâneo. Chesnais nos mostra que num quadro de mundialização do capital101:

a angústia vivida pelas grandes massas, praticamente no mundo todo, vem da constatação pela classe operária, a juventude e as massas oprimidas, da degradação acelerada das suas condições de existência: ressurgimento e permanência do desemprego, precariedade das condições primárias de existência, destruição da proteção social, ressurgimento da fome ou mesmo onde não há fome, novas epidemias, nova decadência tanto individual quanto social, arrogância das classes possuidoras e de uma sociedade que volta a ostentar a riqueza de uns aos olhos de todos os que não têm nada (CHESNAIS, 1997, p. 07).

O que é importante enfatizar até aqui é que ocorreu um aprofundamento e, ao mesmo

100 Voltaremos a analisar as principais diferenças entre a “esquerda reformista” e a “esquerda democrática” no item

intitulado: a ascensão da esquerda democrática.

101 Para uma análise do projeto de contrarreformas e suas particularidades no Estado brasileiro e implicações na área

social com a crescente desresponsabilização do Estado na realização dos direitos sociais, Cf. (BEHRING, 2003); (BOSCHETTI e BEHRING, 2003); (BOSCHETTI, 2003).

tempo uma descontinuidade daquele deslocamento estratégico, que foi capaz de gerar um modo de ser da “esquerda democrática” radicalmente diverso da vertente reformista que predominou até início da década de setenta do século XX. Herdeiro, portanto, da vertente reformista do “modelo social-democrático”, mas desta, cada vez mais, distante, este pensamento de esquerda se formou, também, na crítica à perspectiva revolucionária, notadamente, ao que se convencionou chamar de legado determinista. Talvez resida aí sua maior virtude. Examinemos, então, algumas características deste legado e as polêmicas que incidem na sua constituição.