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O retorno ao debate clássico para o conhecimento e crítica do presente

2 A ASCENSÃO DA “ESQUERDA DEMOCRÁTICA” NO CONTEXTO DE CRISE DO

2.2 A ASCENSÃO DE UM PROJETO DE CONCILIAÇÃO DE CLASSE PROTAGONIZADO

2.2.5 O retorno ao debate clássico para o conhecimento e crítica do presente

Do ponto de vista teórico a noção de sociedade civil tem uma longa tradição no Ocidente. Sob diferentes perspectivas, um vasto campo de associação humana foi identificado, sendo sua principal característica atuar além do governo e até mesmo em contraposição a este. Esses tipos associativos que, à primeira vista, pareciam ser produto da distinção entre Estado e Sociedade, têm, dentre outras, uma determinação central, que reside no desenvolvimento da propriedade privada que se põe como raiz e fonte do poder social. Com isso, embora a concepção moderna de sociedade civil emergente no século XVIII, esteja vinculada às relações de propriedade consolidadas no capitalismo, torna-se relevante não diluir as diferenças em relação às concepções anteriores, pois são estas diferenças que possibilitam a apreensão das particularidades da sociabilidade do capital, seu modo civilizatório de apropriação e de exploração (WOOD, 2003)134. Da doutrina jusnaturalista, que concebe a sociedade civil em contraposição à sociedade natural à formulação da sociedade civil global, proposta por analistas contemporâneos, pensadores, como Hegel, Marx e Gramsci, elaboraram importantes distinções conceituais na apreensão da sociedade civil. Obviamente que nas suas interpretações se colocaram particularidades sócio históricas que não temos como objetivo analisar neste momento135. No entanto, para entendermos o caráter central que esta categoria assume, enquanto instrumento analítico e estratégico na direcionalidade das lutas, torna-se importante identificar as principais diferenças contidas nas reflexões realizadas por estes autores como fonte de inspiração para o conhecimento e crítica do uso corrente de sociedade civil.

Hegel se opôs à concepção jusnaturalista, pois, em seu entendimento, não se tratava da contraposição entre Estado de Natureza e Estado de sociedade, mas, sim, entre sociedade civil e sociedade política, ou Estado136. O Estado assume, nesta concepção, uma dimensão de

134 Sobre isso, Wood (2003, p. 206) afirma que “[...] embora os romanos antigos, tal como os gregos, ainda tendessem

a identificar o Estado com a comunidade de cidadãos, o `povo romano´, eles produziram alguns dos principais avanços na separação conceitual de Estado e “sociedade”, especialmente no direito romano, que distinguia a esfera pública da privada e dava à propriedade privada um status e uma clareza legais de que ela nunca gozou antes. ”

135 Dentre outros analistas que resgataram as diferentes interpretações de sociedade civil e suas implicações políticas,

Cf. Tonet (1989) e Wood (2003). Para a defesa de uma nova concepção de sociedade civil Cf., dentre outros, Santos (1995a) e Vieira (1997 e 2001).

136 “Para Hegel, a sociedade civil é o momento que sucede à família como lugar de satisfação das necessidades. Da

universalidade, condição mais elevada da existência humana, em que os interesses particulares são contidos pelo interesse geral. E como tal, o Estado não representa o consenso dos indivíduos, como postulava a doutrina jusnaturalista. Ao contrário, na perspectiva hegeliana, o Estado se constitui um momento superior de racionalidade e, só por seu intermédio, é possível conter e unificar a sociedade civil. Assim, ao invés de consenso, em determinadas situações, ele poderá representar o oposto da vontade dos indivíduos, desde que o objetivo esteja voltado para assegurar o interesse geral entendido enquanto o bem comum.

Em Hegel, não é a sociedade civil que funda o Estado, mas é o Estado que funda a sociedade civil, porém agora como sociedade política regida pelo princípio da universalidade. Longe de representar, como nos jusnaturalistas, um momento de alienação da liberdade natural, é o Estado que torna os indivíduos livres (TONET, 1989, p. 07).

Na concepção marxiana sociedade civil está na raiz da própria compreensão da realidade social. Partindo de Hegel, Marx admite que a sociedade civil significa as condições materiais de existência. O elemento diferencial em relação ao pensamento de Hegel, é que, no pensamento marxiano, a sociedade civil expressa a matriz ontológica do todo social e neste sentido: Marx transformou a distinção de Hegel entre Estado e `sociedade civil´ ao negar a universalidade do Estado e insistir que o Estado expressava as particularidades da `sociedade civil´ e suas relações de classe, uma descoberta que o forçou a dedicar sua vida ao trabalho de explorar a anatomia da `sociedade civil´ sob a forma de uma crítica da economia política (WOOD, 2003, p. 207).

Ou seja, tratava-se do entendimento da anatomia da sociedade burguesa. Esta é a chave para a compreensão da realidade social. Sob a regência do capital e fundada na propriedade privada, a sociedade burguesa se estrutura na ineliminável contradição radical entre capital e trabalho. Adquire, assim, maior objetividade a explicação marxiana quanto aos limites essenciais do Estado e dos complexos da política e do direito para resolver as desigualdades sociais e as formas variadas de opressão, de tal modo que

o surgimento e a natureza do Estado decorrem dessa mesma natureza da sociedade civil.

todos eles tendo por base os interesses econômicos. Na medida em que cada um desses grupos tem por objetivo principal a defesa dos seus interesses, a tendência é estabelecer-se uma anarquia generalizada, um `bellum omnium contra omnes´, que põe em perigo a própria sobrevivência da sociedade. A necessidade do Estado como princípio superior de ordenamento racional põe-se exatamente porque a sociedade civil, por si mesma, não tem condições de superar esse estado de anarquia” (TONET, 1989, p. 06).

Dilacerada pela contradição entre interesses gerais e particulares e não podendo resolvê- los ela mesma, dá origem a uma esfera, com um aparato, com tarefas, com uma especificidade própria, mas cuja função fundamental seria a de solucionar essa contradição. Sua origem, porém, delimita-lhe precisamente os limites. Deste modo, solucionar a contradição não significa superá-la, porque isso está para além das suas possibilidades, mas antes administrá-la, suprimindo-a formalmente, mas conservando-a realmente, e deste modo contribuindo para reproduzi-la em benefício das classes mais poderosas (TONET, 1989, p. 08).

Partindo da perspectiva de explicar o fracasso da revolução socialista nos países onde existia um desenvolvimento tal das forças produtivas que mobilizava a sociedade para mudanças em seu modo de intervenção política e cultural, o pensamento de Gramsci volta-se, então, para as sociedades consideradas complexas do ponto de vista dos espaços de socialização da política e do movimento da luta de classes. Isto significa, como nos mostra Dias (1996, p. 10), que na concepção gramsciana,

a questão central é o nexo entre a capacidade de construção de uma visão de mundo (weltanschauung) e a realização da hegemonia. A capacidade que uma classe fundamental (subalterna ou dominante) tenha de construir sua hegemonia, decorre da sua possibilidade de elaborar sua visão de mundo própria, autônoma. Esse processo de construção da hegemonia, que ocorre no cotidiano antagônico das classes, decorre da sua capacidade de elaborar sua visão de mundo autônoma e da centralidade das classes. Essa centralidade, tomada como síntese de múltiplas determinações, e não como um a priori lógico, como um efeito da estrutura, é determinante no exercício da hegemonia. Diferenciar-se, contrapor-se como visão de mundo às demais classes, afirmar-se como projeto para si e para a sociedade; ser direção das classes subalternas e dominadas na construção de uma nova forma civilizatória. Para tal, é fundamental ter a capacidade de estruturar o campo de lutas a partir do qual ela poderá determinar suas frentes de intervenção e articular suas alianças. A hegemonia é a elaboração de uma nova civiltá, de uma nova civilização. É uma reforma intelectual e moral.

Como é possível observar, no pensamento de Gramsci, não se apresenta nenhuma intenção de ruptura com a perspectiva da totalidade. Além disso, é relevante ressaltar que a lógica de reduzi-lo a um teórico da cultura, da subjetividade, das instituições, em síntese, da “superestrutura” é uma forma de destituir seu pensamento dos fundamentos quanto à transformação das condições materiais e simbólicas de existência das classes subalternas. A reforma intelectual e moral não significa uma espécie de autonomização entre economia e política. Ao contrário, em Gramsci, há uma relação dialética e contraditória entre economia e política, de tal forma que “pensar-se a construção de uma nova forma social, uma nova sociabilidade, só é possível se se

pensam conjuntamente as formas específicas de sua realização – a um tempo – material e simbólica” (DIAS, 1996, p. 10).

A concepção de sociedade civil proposta por Gramsci não poderia, então, romper com a dimensão dos interesses classistas. No seu pensamento, a sociedade civil não pode ser pensada como portadora de uma suposta neutralidade ou posicionada numa única direção política. Isto redundaria numa perspectiva homogeneizadora de interesses e visão de mundo. Diferentemente do pensamento liberal, o autor dos cadernos do cárcere, reconhece que as ideologias e os projetos classistas se expressam, através dos sujeitos coletivos. A sociedade civil em Gramsci longe de se orientar de modo neutro ou unívoco, reúne, contraditoriamente, interesses estruturalmente desiguais, tendo no horizonte a racionalidade classista dominante (DIAS, 1996).

A interpretação concedida à sociedade civil, pela “esquerda democrática”, põe, assim, em circulação, ainda que contra a vontade de alguns sujeitos individuais e coletivos, a ruptura com qualquer forma de narrativa que busque apanhar as determinações do modo de ser da individualidade e do estado atual das coisas. Tudo se passa como se o que restasse a fazer se constituísse na perspectiva de garantir melhoria nas condições de vida ou como afirma Wood (2003, p. 205):

por mais diferentes que sejam os métodos para dissolver conceitualmente o capitalismo – o que inclui tudo desde a teoria do pós-fordismo até os `estudos culturais´ pós-modernos e a `política de identidade´ -, eles em geral têm em comum um conceito especialmente útil: `sociedade civil´.

Considerando as contribuições gramscianas sabemos que este é um processo ideológico de enorme efeito, até porque as ideias, quando se enraízam, têm força material. O problemático, neste momento histórico, é que as forças dominantes se empenham para conquistar corações e mentes dos indivíduos e dos sujeitos coletivos, e, de modo especial, das lideranças que foram construídas na oposição à sociabilidade burguesa. Assim, os espaços históricos de elaboração de resistência são fortemente abalados e atravessados pela ideia de diluir o capitalismo enquanto modo de produção e projeto civilizatório.

No lugar do capitalismo, o poder da “sociedade” enquanto algo abstrato e, assim, os problemas existentes são tratados como decorrentes diretamente do modo de ser de cada indivíduo,

como se suas características pessoais fossem atributos de um Eu isolado das relações sociais. Dissemina-se uma intensa desvalorização dos espaços coletivos que são orgânicos à formação crítica numa perspectiva de totalidade. Acentua-se, e afirma-se o aprimoramento da ordem burguesa, ainda que na realidade, isto signifique a aceitação da desigualdade social como naturalidade e modo de ser instituído. O pensamento da “esquerda democrática” transita num campo minado: por um lado se empenha para controlar a fúria destrutiva do capital, apostando todas suas fichas, na realização dos direitos humanos; na sustentabilidade socioambiental; na universalidade dos serviços de saúde e de educação, dentre outras questões. Por outro lado, fica refém dos interesses do capital e se orienta para aprofundar a direção sócio-histórico-cultural imposta por esses interesses.