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3.4 AS POSSIBILIDADADES DA RELIGIÃO ANTE O DESENCANTAMENTO

3.4.3 M ODERNIDADE E PROTESTANTISMO : A ADEQUAÇÃO

3.4.3.1 A essência do protestantismo

A julgar que o protestantismo incorpora em sua carga genética

um vírus potente de fragmentação, de pulverização eclesial, uma determinação filogenética insuperável que tende sempre aos ‘particulares’ em detrimento dos ‘universais’, [...e, portanto,] constrói sua identidade na base de um ethos atomizado como a quintessência do processo de individuação (CAVALCANTE, 2007, p. 132),

à primeira vista pode parecer grande pretensão captar a sua essência. O núcleo duro do protestantismo não é facilmente percebido, visto que é mais profundo “do que aparente”; a

essência do protestantismo “diz respeito mais à sua fé do que às suas instituições e estruturas. Ela não salta aos olhos. Para ser bem detectada, exige um esforço que leva a conhecer e a compreender o espírito do protestantismo” (GAGNEBIN, 1997, p. 1997, p. 64). O fundamento protestante está incrustado – com todas as suas implicações que não tardaremos a discutir – no seu “princípio material da salvação pela graça de Deus e pelo princípio formal da Bíblia recebida como a única regra da fé” (GAGNEBIN, 1997, p. 1997, p. 64). Se o princípio material pressupõe a fé, o outro dá origem à Igreja que, por sua vez, reúne os salvos. Sendo assim, em renúncia aos universais, afirma o particular, o indivudual. O protestantismo afirma sua essência no trinômio Fé-Bíblia-Igreja.

a) A Fé

A comunidade cristã primitiva reunida em torno da realidade do Cristo ressurreto identificava a capacidade de manter-se coesa a esta e por esta realidade com a fé. Ao romper as fronteiras Palestina e como fruto do embate com outras “formas de fé” surgiram os credos77 apostólicos ou artigos de fé. Dessa forma, além da fé no Cristo ressurreto, exigiu-se por parte dos cristãos a crença nos artigos de fé. “No primeiro caso, pressupunha-se fé em Deus que teria ressuscitado o Cristo dentre os mortos. No segundo caso levava-se em conta o que se poderia chamar de conteúdo intelectual da fé” (MARASCHIN, s/d, p. 31). Neste sentido a fé está ligada a eventos históricos e a crença a eventos do imaginário. A fé se liga à história. A crença se ancora nas formulações conceituais.

À medida que a história avança e a fé se distancia do seu evento instaurador, as formulações doutrinárias (crenças) se tornaram cada vez mais importantes e precisas por meio do magistério da Igreja, que preserva e interpreta um “texto” (Bíblia). Não é um texto qualquer; é o texto que substituiu o evento da Ressurreição. O problema surge quando levamos em conta que o texto permanece enquanto a Igreja muda (MARASCHIN, s/d, p. 37). A conseqüência desse processo é que no fim da Idade Média só tem fé e salvação quem se submete às interpretações da hierarquia eclesiástica, por mais bizarras que sejam, e/ou quem produz obras meritórias, tais como: mortificação do corpo, vida monástica, pagamento de indulgências, etc..

É nesse contexto que emerge a figura de Martinho Lutero que interessado em discutir a relação de Deus com o ser humano –, a partir de uma experiência pessoal – rompe com

todos os canais de mediação propostos pela Igreja78, ao proclamar a absoluta transcendência de Deus contraposta à miséria da condição humana; abismo transposto por ato radical de fé, fiado apenas no testemunho da Bíblia.

A salvação não é, entretanto, um ato da fé. É um ato da graça, apropriado na subjetivada por meio da fé. O movimento inicial é de Deus.

Gagnebin afirma que

a fé é sempre e à partida a graça proveniente de Deus reconhecida na sua precedência absoluta [...] Com efeito, ela está inteiramente condicionada pela Sua graça. É ela que restabelece entre Deus e o ser humano uma relação autêntica vivida na fé. O pecado, que nos separa de Deus, não é então subvertido pelo bem que faço, mas pela graça dada. O contrário do pecado já não é o bem, mas a graça ou a fé bem entendida (GAGNEBIN, 1997, p. 23).

Neste sentido, a expressão ‘ter fé’ é no mínimo suspeita, se com ela se “supõe que a fé é o nosso bem próprio e exclusivo. Ora, em certo sentido, a fé é uma realidade que jamais se pode verdadeiramente ter ou possuir”. Considerar a possibilidade de possuir a fé já é, de partida, uma atitude de negação da fé, porquanto significa a recusa em inscrevê-la “numa relação cujo primeiro movimento não depende de nós e não nos pertence” (GAGNEBIN, 1997, p. 23); é um ato “selvagem” da graça.

A fé é irredutível; “jamais deve confundir-se com uma opinião, uma emoção e um sentimento humano, nem mesmo com um conjunto de crenças que conteria, por exemplo, uma confissão de fé”. Fé não é crença. Quando se distingue fé de crença – retomando a questão aludida anteriormente – é porque “a fé é fundamentalmente da ordem do relacional e de uma iniciativa, as crenças são em grande parte da ordem do racional e de um conteúdo”. O grande perigo em relação aos credos e confissões de fé é o não reconhecimento de sua precariedade – uma vez que limitados temporalmente – da sua necessária coexistência inevitável com dúvida. Para o protestantismo “a fé não se opõe essencialmente à dúvida que ela supõe e ultrapassa, mas ao saber, que afasta a própria possibilidade da fé e, de fato, a esvazia”. Quando há certezas, “nem a fé nem a dúvida são possíveis”. Em última instância, para o protestantismo, “a fé é incompatível com uma idéia de infalibilidade”. Fé é movimento contínuo. Quem tem fé não acredita sempre. Fé desacredita sempre. “Quando a incredulidade é impossível, a fé é também impossível” (GAGNEBIN, 1997, p. 24).

b) A Bíblia

O rompimento com toda medição católico-medieval; com tudo que pudesse se interpor

na relação de fé estabelecida com Deus, iniciado e com Lutero é radicalizado em Calvino.

Se em Lutero, a Igreja está vilipendiada de suas prerrogativas divinas básicas, conservando apenas um ‘resíduo’ sacramental; em Calvino, até desta dignidade ela está despossuída, muito embora, ainda afirme a realidade sacramental na linha agostiniana [...] (CAVALCANTE, prelo, 2008, p. 11).

Ao sustentar a doutrina da predestinação, Calvino possibilita que o “indivíduo suplante a Igreja”. (CAVALCANTE, 2008, prelo, p. 11). Assim, no uso radical de sua liberdade – como decorrência da relação de fé – o indivíduo vai estabelecer uma “relação hermenêutica com o texto sagrado” (BASTIAN, 1997, p. 193).

E, nesse ponto, inscreve-se um paradoxo. Tendo a Bíblia como o seu princípio formal, como única regra de fé, o protestante afirma, por um lado, que a “autoridade da Escritura é superior à autoridade da Igreja [...] e, por outro, que a função da Igreja é pregar corretamente a Escritura à qual não se submete sem critérios hermenêuticos” (tradução livre, BAUBÉROT & WILLAIME, 1990, p. 31). Talvez por isso mesmo o protestantismo seja incapaz de se identificar até mesmo com a mensagem das Igrejas Protestantes. Em sua obsessão pela verdade, afirma que “onde o erro não é livre a verdade também não o é [...] Por esta perspectiva, o contrário da verdade não é o erro, mas o fato de se impor a verdade. A verdade sem a procura da verdade é apenas metade da verdade” (GAGNEBIN, 1997, p. 86). É a reafirmação nervosa da máxima evangélica: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará (Jo 8.32)79

Se, na Idade Média, a liberdade é concebida como privilégio, como “o justo lugar diante de Deus e diante dos homens, [como] a inserção na sociedade” – Nenhuma liberdade sem comunidade. Ela não podia residir senão na dependência, o superior garantindo ao subordinado o respeito a seus direitos” (LE GOFF, 2005, p. 282) –, na Reforma, ela será uma

cláusula pétrea.

De acordo com Ronaldo Cavalcante, “a subjetividade do princípio-protestante-da-

liberdade, transcende sua psique intimista e assume com coragem e risco suas feições

históricas com objetividade e concretude no nascimento da Modernidade”. A concretização histórica deste princípio tem início com

Lutero na Dieta de Worms80, na Liberdade de consciência - com base na convicção

da presença divina na consciência humana individual cristianizada pela palavra de

79 Bíblia Sagrada: Evangelho de João capítulo 8, versículo 32.

80 Na Dieta (assembléia política) de Worms, convocada em Abril de 1521 pelo imperador Carlos V e à qual

Deus. Em segundo lugar, se formulará o valor objetivo da Liberdade de exame - com base na certeza do auxílio da iluminação do Espírito Santo na razão humana invadida pelo Evangelho e, em terceiro lugar, [vem a lume] o valor da Liberdade de

expressão - com base na obediência do compromisso de Cristo em sua missão de

servir (grifos originais, 2008, prelo, p. 9).

O princípio de liberdade protestante contesta o sistema de autoridade católico orga- nizado de forma “piramidal, monárquica e hierárquica que, do papa aos bispos [...] desce, alargando-se para os padres claramente distintos, pela sua ordenação, de povo dos leigos” (GAGNEBIN, 1997, p. 80), e encontra sua força estatutária na doutrina luterana do sacerdócio universal crentes. O indivíduo protestante – a partir de sua relação direta e paradoxal com Deus – se define como sacerdote; portanto questiona a separação entre clérigos e os leigos, entre sagrado e profano, isto é, o mundo é a um só tempo ‘dessacralizado’ e ‘desporfanizado’. O mundo passa a ser um lugar em que os indivíduos agem para a glória de Deus. Rubem Alves define bem esta questão:

Cada homem é um sacerdote. Onde quer que esteja um homem, ali está o sagrado. O protestantismo aboliu os mosteiros e uma classe sacerdotal privilegiada porque ele transformou o mundo todo num templo e todos os homens em sacerdotes. A vida toda está coberta pelo manto sagrado. Assim, a afirmação de que o que caracteriza a religião é a divisão do mundo em profano e sagrado não vale para o protestantismo (2005, p. 163s).

c) A Igreja

Comentando Ernst Troeltsch, Mendonça afirma que

a cultura da Idade Média foi uma cultura centrada na Igreja, dela emanando todas as coisas, principalmente a fé e a salvação, coisas substanciais naquele momento. Na Igreja tudo estava previsto, regulamentado, seguro. Ninguém precisava preocupar-se com nada. Deus se revelava à Igreja e esta governava o mundo segundo essa revelação. Era, portanto, uma cultura autoritária. A trajetória vertical da salvação eterna era orientada pela Igreja (MENDONÇA, 1997, p. 114)81.

Nesse momento a igreja interpela o indivíduo. A igreja é proteção. A igreja é garantia. O protestantismo rompe com a igreja, no sentido de que “religião e igreja não são garantias para os protestantes. Nunca poderão ter este status” (TILLICH, 1992, p. 215). Isso porque, em lugar da segurança dos sacramentos, da estética litúrgica, da “hierarquia e da encarnação de

convencerem pelas afirmações da Escritura ou pela evidência da razão – porque não confio nem no papa, nem nos concílios, uma vez que é evidente que se enganaram com freqüência e se contradisseram –, estou ligado pelos textos escriturísticos que citei e a minha consciência é escrava das palavras de Deus; porque não está certo nem é honesto agir contra a sua própria consciência. Só posso esperar que Deus venha em meu auxílio’ (GAGNEBIN, 1997, p. 17).

Cristo que nela se prolonga, aparece a força milagrosa da Bíblia, que tudo produz: a prolongação protestante da encarnação de Deus” (TROELTSCH, 1951, p. 38).

Por esta perspectiva, antes de tudo, a igreja constitui-se numa interpelação de Deus dirigida aos seres humanos com o intuito de reuni-los. A Igreja é um evento da graça de Deus inteiramente relacionado com a fé.

Tal como a fé é um movimento de Deus para nós, antes de ser o do homem para Deus, a Igreja é uma convocação de Deus dirigida aos homens, antes de ser uma instituição humana e uma comunidade. A Igreja não existe fora desta relação assim compreendida (GAGNEBIN, 1997, p. 41).

Portanto, assim como a salvação iniciada em Deus se historifica, a partir de um ato de fé que nasce de uma “relação hernêutica” com o texto sagrado, a igreja é, para os protestantes, um evento que tem lugar quando a palavra é proclamada e recebida como fruto daquela relação (GAGNEBIN, 1997, p. 42). Somente a proclamação da Palavra de Deus, do Evangelho é capaz de conferir existência à igreja.

A comunidade cristã, trate-se do seu clero ou do povo de Deus na sua totalidade, é impotente para provocar isso. [...] É verdade que aqueles a quem o Evangelho desperta para a fé vão reunir-se e constituir-se numa comunidade que conhece uma organização e estruturas, como toda a instituição. Todavia, o Evangelho precede, ultrapassa a Igreja e não está ligado por ela (GAGNEBIN, 1997, p. 42).

Tal definição não significa que o protestantismo negue a realidade visível da igreja, mas sim que afirma com sobreposta a esta a ecclesia ivisibilis82 que, como tal e como

prolongamento da encarnação de Cristo83, se insere no tempo. Neste sentido, a igreja protestante assinala movimento, ao contrário da igreja católica, por exemplo, que com sua “visibilidade” se insere na dimensão do espaço, mantendo-se assim ligada ao que é estável, fixo. É praticamente impossível conceber o catolicismo separado de “Roma, da Basílica de São Pedro, do Estado do Vaticano, de todas as grandes catedrais e da prática das peregrinações, das procissões e dos caminhos da cruz” (GAGNEBIN, 1997, p. 93). Aqui tudo é espaço.

Quando se diz que os protestantes rompem com a noção de separação entre sagrado e profano, é bom ressaltar: a referência é ao espaço. O protestantismo “não trabalha com a idéia

81Confira também: TROELTSCH, Ernst. El protestantismo y el mundo moderno. México-DF: Fondo de Cultura

Económica, 1951, p. 15-17.

82 Literalmente: igreja invisível.

83 Sobre a relação tempo e encarnação de Cristo, confira: ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo-SP:

de espaço sagrado” (ABUMANSSUR, 2004, p. 101). A comunidade sacraliza o espaço. Lugar sagra é só a Bíblia, a partir da qual a comunidade ganha existência. O tempo, contudo, é sagrado por causa da encarnação de Cristo. A visibilidade protestante está na sua atuação temporal e mundana, a partir da qual o protestante valida individualmente o seu crer, ou melhor, a sua condição de eleito.

A trinômio Fé-Bíblia-Igreja, tratado aqui como essência do protestantismo, é perpassado, como se viu, pela noção de liberdade na qual está implicada a noção de movimento, visto que não é apenas liberdade ‘de’, senão também liberdade ‘para’. Assumir essa liberdade ‘para’ é assumir o risco de uma relação com um Deus absconditus; portanto, relação instável e imprevisível.

Talvez esteja justamente “aí a principal novidade ou contribuição do protestantismo” – sua adequação à Modernidade desencantada – “submeter-se ao caráter surpreendente do Sagrado e no interior dessa insegurança encarar a angústia existencial detectada [...] naqueles indivíduos e movimentos que, optando pela liberdade, tiveram que assumir o risco da improbabilidade”. A Modernidade desencantada convive bem com o paradoxo, mas não abre mão do sentido da vida. Como disse Soeren Kierkegaard: “Mas o risco é a verdade que confere peso e sentido à existência humana” (CAVALCANTE, 2007, p. 135).