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É lugar comum afirmar que, em Weber, o desencantamento do mundo é decorrente de um longo processo que culmina com o surgimento do protestantismo puritano. Contudo, quando se trata de determinar o significado da sentença weberiana, o consenso esfumaça-se. Há quem pense o desencantamento do mundo como sinônimo de desencanto, desilusão, perda, mal-estar subjetivo diante do paradoxal progresso científico ou das parcas possibilidades da religião no século XXI [?]. Por outro lado, há os que advogam que o desencantamento do mundo é uma previsão de Weber que há de se cumprir – ou está se cumprindo – mediante o avanço da ciência.

Quem defende a primeira possibilidade de interpretação, despreza a consistência e precisão do sintagma em Weber; enquanto que os arautos do desencantamento do mundo, via ciência, desprezam sua intrínseca perspectiva religiosa.

De acordo com Gabriel Cohn, para o entendimento adequado do assunto, duas premissas devem estar patentes. A primeira refere-se ao fato de que o sintagma desencantamento mundo, “aplicado a toda uma condição do mundo em que se movem os homens, vai muito mais fundo do que uma vaga noção alusiva a alguma perda, carência ou mal-estar subjetivo: desencantamento não é desencanto”. Na verdade, trata-se de uma formulação sociológica, de um conceito, “construído para ajudar a explicar o mundo, não para lamentá-lo”. E é claro que um conceito não pode ser entendido sozinho; ele “só ganha sentido quando encontra seu lugar na estrutura analítica que, no conjunto, forma uma teoria”. Portanto quando se trata de entender o desencantamento do mundo, “é, pois, toda a armação da teoria sociológica de Max Weber que está em jogo”.

A segunda premissa está ligada à necessidade de reconstruir itinerário do conceito. Isso, entretanto, não significa que “um simples acompanhamento linear da cronologia dos textos de Weber resolva o problema.” E esta não é tarefa fácil. Há que se buscar “as ar- ticulações entre o encadeamento do tema no tempo e a malha de problemas e de áreas do conhecimento social que lhe oferece as referências em cada etapa do seu percurso” (In: PIERUCCI, 2003, apresentação).

Embora o conceito de desencantamento do mundo esteja intimamente ligado à religião, associado ao de racionalização, ultrapassa-a e expande-se num movimento preciso em direção à ciência.

3.2.1 O SENTIDO DO CONCEITO

Qual é então, afinal, o significado exato do conceito de desencantamento do mundo na sociologia de Weber? Tal questão é viável na medida em que, de acordo com Cohn, “um conceito não pode ser tão proteiforme; algum núcleo duro de significado ele sempre terá” (In: PIERUCCI, 2003, p. 32). Em nossa busca do sentido preciso da expressão em Weber, seguiremos o itinerário traçado por Flávio Pierucci69.

A expressão alemã Entzauberung der Welt, tornada famosa por Weber, para muitos

fora tomada por empréstimo do filósofo e poeta Friedrich von Schiller (1750-1805). Pierucci, todavia adverte que em Schiller a expressão é Entgötterung der Natur, “desendeusamento da natureza” e que, portanto, embora Weber não tenha cunhado a expressão, ele não a tomou

ipsis litteris. O que fez foi adaptá-la a partir de um sintagma similar (PIERUCCI, 2003, p. 30).

Mais decisiva, contudo, que a origem da expressão é a apreensão do seu sentido. Pierucci admite que “o uso do termo em Weber, de fato, não é unívoco, lá isso é verdade. Ele muda: dependendo da questão em tela, ele se expande e se retrai, fica mais forte ou mais fraco, mas nem por isso chega a se pôr como desbragadamente” (PIERUCCI, 2003, p. 35).

O sintagma possui apenas dois conteúdos semânticos que, sob olhar atento, apresentam-se nítida e inequivocamente demarcados. Os dois significados são concomitantes na biografia de Weber e, embora distintos, não se separam. O desencantamento do mundo pela religião constitui o sentido mais forte, porém restrito; já o desencantamento do mundo pela ciência tem um sentido mais frágil, porém de alcance ilimitado. De acordo com Pierucci, Weber teria trabalhado com os dois sentidos “ao mesmo tempo e o tempo todo”. Logo, o segundo sentido não constituiria, portanto uma evolução do pensamento de Max Weber como advogam alguns dos seus intérpretes, visto que das nove vezes que o sintagma aparece no texto weberiano refererindo-se à religião, portanto ao sentido estrito, cinco vezes aparece nos dois últimos anos de vida do autor, 1919 e 1920. (PIERUCCI, 2003, p. 42s e 58).

Ao todo a expressão aparece dezenove vezes em Weber, sendo nove para significar “desmagificação”, quatro para “perda de sentido” e quatro significando as duas coisas.

3.2.2 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A RELIGIÃO

Quando Weber fala do desencantamento do mundo via religião, refere-se especificamente ao processo de substituição da “irracionalidade mágica” pela “racionalidade religiosa”, o que não significa que a magia seja absolutamente desprovida de racionalidade.

Em Weber, “a magia não porta racionalidade teórica, nem sistêmica, mas prática sim. Não prático-ética, mas prático-técnica. Uma racionalidade subjetivamente significativa apenas se encarada e avaliada de modo avulso, desconexo, desconjuntado”. Diríamos: uma racio- nalidade rudimentar e não sistemática. “Os atos mágicos não se perfilam numa seqüência significativa, não se ordenam num plexo homogêneo de sentido, não são capazes de travejar coerentemente uma conduta de vida” (PIERUCCI, 2003, p. 80). Os atos mágicos, mesmo voltados para “este mundo”, não conferem sentido à vida aqui e agora.

Pela via da religião, então, o desencantamento do mundo deve ser entendido como desvalorização e/ou supressão dos meios mágicos de salvação, da linguagem simbólica, “na medida em que, em sua extracotidianeidade constitutiva, essas práticas ‘desvalorizam’ religiosamente o trabalho profissional cotidiano no mundo como locus das boas relações com o invisível”.

Neste mundo que não tem sentido por si mesmo – porquanto absolutamente corrupto – a vida do asceta intramundano só tem sentido enquanto suas ações racionais se prestam a cumprir a vontade de um Deus absolutamente supramundano e inacessível (Cf. WEBER, 2004, Vol 1, p. 368) – como vimos anteriormente. Ele tem que equilibrar-se

por assim dizer num fio de navalha quando deposita toda a sua expectativa de estar salvo pelo Deus único no estreitíssimo intervalo que medeia entre sua concepção negativa do mundo, visto como pecaminoso e sem valor, sempre perigoso para os bons, e sua concepção positiva da ação racional no mundo, vista como sinal ou prova de salvação (PIERUCCI, 2003, p. 95)70.

No seu isolamento esta é a sua única alternativa: a acese intramundana. Pois “quando a religião se moraliza ‘para valer’, ela desencanta o mundo; e vice-versa, quando uma religião se desmagifica ‘até o fim’, não resta outro caminho àqueles que a seguem a não ser o ativismo ético-ascético no trabalho profissional cotidiano” (PIERUCCI, 2003, p. 126).

69 PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos ao passos do conceito em Max Weber. São

Paulo: Curso de Pós-Graduação em Sociologia-USP e Editora 34, 2003.

70 Sobre este aparente paradoxo de ação no e renúncia do mundo, ao contrastar o ascetismo ativo com o

misticismo, o próprio Weber se expressa assim: “Em nossos comentários introdutórios [ele se refere à: A

psicologia social das religiões mundiais] contrastamos, como renúncias do mundo, o ascetismo ativo que é uma ação, desejada por Deus, do devoto que é instrumento de Deus e, por outro lado, a possessão contemplativa do

sagrado, como existe no misticismo, que visa a um estado de ‘possessão’, não ação, no qual o indivíduo não é um instrumento, mas um ‘recipiente’ do divino. A ação no mundo é vista, assim, como um perigo para o estado irracional e outros estados religiosos voltados para o outro mundo. O ascetismo ativo opera dentro do mundo; o ascetismo racionalmente ativo, ao dominar o mundo, busca domesticar o que é da criatura e maligno através do trabalho numa vocação ‘mundana’ (ascetismo do mundo). Tal ascetismo contrasta radicalmente com o misticismo, se este se inclina para a fuga do mundo (fuga contemplativa do mundo)” (WEBER, 2002, p. 228).

Em suma, o desencantamento do mundo se dá mediante e a partir de uma luta entre ética e símbolo ou entre uma religiosidade ético-ascética e uma religiosidade mágico- sacramental, numa relação de causa e efeito.

No processo de desmagificação do mundo está mais do que imbricado como fator causal sine qua non o processo de eticização da religião, ou seja, o processo de desencantamento do mundo está sobredeterminado pela empreitada de moralização religiosa em seu formato judaico-cristão: em parte causa, em parte conseqüência (PIERUCCI, 2003, p. 126).

3.2.3 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A CIÊNCIA

A Ciência como vocação (1917) é o texto weberiano em que a expressão

desencantamento do mundo mais aparece; ao todo são seis vezes. A partir desse momento o sentido estrito da expressão é extrapolado, paralelamente ao sentido religioso, mas agora via ciência passa a funcionar como uma categoria explicativa do nosso tempo. Ressaltamos entretanto que seja pela via religiosa, seja pela via científica, Weber

emprega para ambos os processos o mesmo verbo “desalojar” [...] primeiro a religião (monoteísta ocidental) desalojou a magia e nos entregou o mundo natural “desdivinizado”, ou seja, devidamente fechado em sua “naturalidade”, dando-lhe, no lugar do encanto mágico que foi exorcizado, um sentido metafísico unificado, to- tal, maiúsculo; mas depois, nos tempos modernos, chega a ciência empírico- matemática e por sua vez desaloja essa metafísica religiosa, entregando-nos um mundo ainda mais “naturalizado”, um universo reduzido a “mecanismo causal”, totalmente analisável e explicável, incapaz de qualquer sentido objetivo, menos ainda se for uno e total, e capaz apenas de se oferecer aos nossos microscópios e aos nossos cálculos matemáticos em nexos causais inteiramente objetivos mas desconexos entre si, avessos à totalização, um mundo desdivinizado que apenas eventualmente é capaz de suportar nossa inestancável necessidade de nele encontrar nexos de sentido, nem que sejam apenas subjetivos e provisórios, de alcance breve e curto prazo (grifos originais. PIERUCCI, 2003, p. 145).

Em resumo, para Weber só o conhecimento científico é objetivo, o sentido é subjetivo. O judaísmo profético, bem como hereditariamente o cristianismo e o puritanismo, quando “desencantam o mundo” conferem-lhe um sentido homogêneo, a atitude da ciência empírica moderna, no entanto,

retira o sentido do mundo, agora transformado em “mecanismo causal”, em “cosmos da causalidade natural”, ou seja, em algo sem mistérios insondáveis, perfeitamente explicável em cada elo causal mas não no todo, fragmentário, esburacado, “quebradiço e esvaziado de valor” [...] Ela retira o sentido do mundo e não é capaz de substituí-l o por outro (PIERUCCI, 2003, p. 159).

E este é, segundo Weber, um dos grandes – senão o maior – desafios do cientista, a saber, aceitar que a ciência é incapaz de nos salvar, “de nos lavar a alma, de nos dizer o

sentido da vida num mundo que ela desvela e confirma como não tendo em si, objetivamente, sentido algum” (PIERUCCI, 2003, p. 158).

O desencantamento encetado pela religião tem no judaísmo profético o seu ponto de partida e no puritanismo do século XVI e XVII o seu apogeu, ou melhor, o seu ponto de chegada; extrapolada a fronteira religiosa, entretanto, o desencantamento aponta para o infinito, porquanto fundamentado no progresso da ciência que, por definição, desconhece a subjetividade na mesma proporção que os limites.