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2.3 A ÉTICA PURITANA E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO SEGUNDO WEBER

2.3.1 O CONCEITO DE VOCAÇÃO

Max Weber inicia sua argumentação a partir do conceito de vocação em Lutero. Já de início, assevera que a palavra alemã beruf, traz em seu bojo certa conotação religiosa: a missão dada por Deus. Esta conotação, ignorada pelos povos predominantemente católicos e pela Antigüidade clássica, está amplamente presente “em todos os povos predominantemente protestantes”. Além disso, constata Weber que o vocábulo beruf, tomado no “sentido de uma posição na vida ou de um ramo de trabalho definido” (2004, p. 71), constitui-se uma inovação proveniente das traduções da Bíblia e não do seu sentido lexical.

Para Weber, tanto o novo significado lexical de beruf quanto a valorização do trabalho no mundo são criações da Reforma. Ainda que não se neguem traços da valorização do trabalho cotidiano – ligados ao conceito de beruf – na Idade Média e na Antigüidade, com a Reforma, surge algo absolutamente novo, isto é, “a valorização do cumprimento do dever no seio das profissões mundanas como o mais excelso conteúdo que a auto-realização moral é capaz de assumir” (2004, p. 72). Em conseqüência disso, o trabalho mundano assume significação religiosa.

Uma vez ampliado em seu sentido, o conceito de beruf passa a designar que o

único meio de viver que agrada a Deus não está em suplantar a moralidade intramundana pela ascese monástica, mas sim, exclusivamente, em cumprir com os deveres intramundanos, tal como decorrem da posição do indivíduo na vida, a qual por isso mesmo se torna a sua ‘vocação profissional’ ( WEBER, 2004, p. 72).

Não obstante isso, acerca dos reformadores, Weber faz questão de ressaltar que é

impossível acreditar que a ambição por bens terrenos, pensada como um fim em si, possa ter tido para algum deles um valor ético. [...] programas de reforma ética não foram jamais o ponto de vista central para nenhum dos reformadores [...] A salvação da alma, e somente ela, foi o eixo de sua vida e ação. Seus objetivos éticos e os

efeitos práticos de sua doutrina estavam ancorados aqui e eram, tão-só, conseqüências de motivos puramente religiosos. Por isso temos que admitir que os

efeitos culturais da Reforma foram em boa parte - talvez até principalmente, para nossos específicos pontos de vista - conseqüências imprevistas e mesmo

indesejadas do trabalho dos reformadores, o mais das vezes bem longe, ou mesmo

ao contrário, de tudo o que eles próprios tinham em mente (grifos originais, 2004, p. 81).

Para Max Weber, vale a pena insistir: “o feito propriamente dito da Reforma consistiu simplesmente em ter já no primeiro momento inflado fortemente, em contraste com a concepção católica, a ênfase moral e o prêmio religioso para o trabalho intramundano no quadro das profissões” (2004, p. 75). As dimensões que a idéia de ‘vocação’ assumiu posteriormente dependeu das formas de “piedade que se desdobraram dali em diante em cada

uma das igrejas saídas da Reforma” (2004, p. 75). Uma coisa, entretanto, é certa, não são derivadas diretamente de Lutero, visto que “a autoridade da Bíblia, da qual julgava ter tirado a idéia de beruf, no conjunto pendia totalmente para uma orientação tradicionalista”59.

Tanto os profetas do Antigo Testamento quanto Jesus insistem que devemos nos contentar com o “pão nosso de cada dia”; só os ímpios buscam o lucro. Os apóstolos também vêem com indiferença ou de forma tradicionalista a vocação profissional. Visto que “tudo aguarda a vinda do Senhor, que cada qual permaneça na posição social e no ganha-pão terreno no qual o ‘chamado’ do Senhor o encontrou” (WEBER, 2004, p. 76). É com esta visão que Lutero enxergava a vocação profissional nos primeiros anos de sua atividade reformadora. Entre 1518 e 1530, suas idéias evoluem, mas são cada vez mais tradicionalistas.

Na medida em que Lutero se vê envolvido com os “negócios desse mundo” cresce o seu apreço para com o trabalho profissional, mas “a profissão concreta do indivíduo lhe aparece cada vez mais como uma ordem de Deus para ocupar na vida esta posição concreta que lhe reservou o desígnio divino”. Os embates com os camponeses e com os anabatistas levaram Lutero a conceber que a posição do indivíduo sociedade é obra da providência de Deus, portanto cada um deve permanecer onde está. “O indivíduo deve permanecer fundamentalmente na profissão e no estamento em que Deus o colocou e manter sua ambição terrena dentro dos limites dessa posição na vida que lhe foi dada”. Pode-se afirmar que Lutero não se distanciou decisivamente da mentalidade medieval, portanto “não chegou a estabelecer uma vinculação do trabalho profissional com os princípios religiosos fundada em bases radicalmente novas ou baseada em princípios” (WEBER, 2004, p. 77).

Resumindo suas observações sobre o conceito de vocação em Lutero, Max Weber se expressa assim:

A vocação é aquilo que o ser humano tem de aceitar como desígnio divino, ao qual tem de ‘se dobrar’ – essa nuance eclipsa a outra idéia também presente de que o trabalho profissional seria uma missão, ou melhor, a missão dada por Deus. E o desenvolvimento do luteranismo ortodoxo sublinhou esse traço ainda mais (grifos originais, 2004, p. 77).

59

Max Weber entende por tradicionalismo a tendência anti-capitalista de objetivar o lucro ou a acumulação de capital. “Eis um exemplo justamente daquela atitude que deve ser chamada de ‘tradicionalismo’: o ser humano não quer ‘por natureza’ ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, mas simplesmente viver, viver do modo como está habituado a viver e ganhar o necessário para tanto” (WEBER, 2004, p. 53).

Visto que em Lutero não é fácil identificar a conexão entre “práxis de vida e o ponto de partida religioso”, Weber se volta para o calvinismo puritano e as seitas protestantes onde aquela conexão é mais facilmente identificável.