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2.3 A ÉTICA PURITANA E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO SEGUNDO WEBER

2.3.2 O PURITANISMO E O CAPITALISMO

Como exposto acima, apesar de Lutero não ter avançado tanto quanto Calvino no sentido de propor uma ascese intramundana, para ele, “a conduta de vida monástica é encarada não só como evidentemente sem valor para a justificação perante Deus, mas também como produto de uma egoística falta de amor [ao próximo] que se esquiva aos deveres do mundo” (WEBER, 2004, p. 73). Dessa forma, pode-se afirmar que o ponto de partida de Calvino é Lutero. Entretanto, à medida que ganha maturidade, o pensamento de Calvino assume luz própria. Ronaldo Cavalcante afirma que “as principais diferenças se fazem notar na práxis eclesial e propriamente na visão de mundo” (prelo, 2008, p. 10). Ao contrário do luteranismo, o calvinismo “era um credo que buscava não meramente purificar o indivíduo, mas reconstruir a Igreja e o Estado e renovar a sociedade permeando todos os setores da vida tanto públicos como privados, com a influência da religião” (TAWNEY, 1971, p. 109). Segundo Dumont,

com Calvino, o individualismo ganha força: com sua concepção da relação entre o indivíduo e o mundo; sua Igreja é a última forma que a Igreja pode adotar sem desaparecer e assim, produz, como já dito, o indivíduo-no-mundo. O indivíduo agora está no mundo, e o valor individualista reina sem restrições nem limitações (In: CAVALCANTE, prelo, 2008, p. 10).

A esse indivíduo-no-mundo só uma coisa importa, o conhecimento. Precisamente o

conhecimento de Deus, porquanto é ao mesmo tempo, indivíduo-em-relação-a-Deus.

Focando a relação entre a ética puritana60 e espírito do capitalismo61, havemos de considerar em primeiro plano que o puritanismo modificou decisivamente o pensamento e a teologia de Calvino62.

60 Os puritanos formavam um partido político-religioso que lutava pela “purificação” da Igreja da Inglaterra no

séc. XVII. Segundo eles a Igreja da Inglaterra não havia se reformado o suficiente. Os embates entre estes e o poder político que não foram poucos e nem pequenos, culminaram com a expulsão de muitos deles, que cruzaram o atlântico para formar a Nova Inglaterra, a partir de 1620. Sobre o puritanismo confira: TAWNEY, R. H. A religião e o surgimento do capitalismo. São Paulo-SP: Perspectiva, 1971, p. 187-256 e GONZÁLEZ, Justo.

Historia do Pensamento Cristão. Vol. 2. São Paulo-SP: Cultura Cristã, 2004, p. 295-302.

61 Utilizamos a expressão no estrito sentido de Max Weber: “[...] o caráter de uma máxima de conduta de vida

eticamente coroada”, ainda que ele mesmo reconheça que “não se pode ou não se deve necessariamente entender

por “espírito” do capitalismo somente aquilo que nós apontaremos nele como essencial para nossa concepção (grifos originais, WEBER, 2004, p. 45 e 42)

“Devido à sua importância e ao fato que tem sido freqüentemente interpretada como representante da teologia de Calvino” (GONZALEZ, 2004, p. 299), Weber vai buscar na Confissão de Fé de Westminster63, datada de 1647, os fundamentos da teologia Calvinista em sua versão puritana anglo-americana. A bem da verdade, seu foco é a doutrina da predestinação, tratada em primeiro plano pelos puritanos, ao contrário de Calvino. Sobre a ênfase em tal doutrina, Gonzalez, comenta que

A Confissão de Westminster coincide com a maioria dos calvinistas posteriores ao colocar a doutrina da predestinação em tal lugar na estrutura da Teologia que ela parece ser derivada da natureza de Deus, ao invés da experiência da graça dentro da comunidade da fé (2004, p. 300).

Ainda que seja uma citação longa, acreditamos ser importante transcrevermos os pontos destacados por Weber na Confissão supracitada:

Capítulo IX (da livre vontade), nº. 3: O homem, por sua queda no estado de pecado, perdeu por inteiro toda a capacidade de sua vontade para qualquer bem espiritual que o leve à salvação. Tanto que um homem natural, estando totalmente afastado desse bem e morto no pecado, não é capaz, por seu próprio esforço, de converter-se ou de preparar-se para tanto. Capítulo III (do decreto eterno de Deus), nº. 3: Por decreto de Deus, para a manifestação de Sua glória, alguns homens (...) são predestinados (predestinated) à vida eterna, e outros preordenados (foreordained) à morte eterna. nº. 5: Aqueles do gênero humano que estão predestinados à vida, Deus, antes de lançar o funda- mento do mundo, de acordo com Seu desígnio eterno e imutável, Sua secreta deliberação e o bel- prazer de Sua vontade, escolheu -os em Cristo para Sua eterna glória, por livre graça e por amor, sem qualquer previsão de fé ou de boas obras, ou de perseverança numa e noutras, ou qualquer outra coisa na criatura, como condições ou causas que O movessem a tanto, e tudo em louvor da Sua gloriosa graça. nº. 7: Aprouve a Deus, segundo o desígnio insondável de Sua própria vontade, pela qual Ele concede ou nega misericórdia como bem Lhe apraz, deixar de lado o resto dos homens para a glória de Seu poder soberano sobre Suas criaturas, e ordená-las à desonra e à ira por seus pecados, para louvor de Sua gloriosa justiça. Capítulo X (da vocação eficaz), n°. 1: Todos aqueles que Deus predestinou à vida, e somente esses, aprouve-Lhe chamá-las eficazmente (...) por Sua palavra e Seu espírito, na hora apontada e aprazada, retirando-lhes o coração de pedra e dando-lhes um coração de carne; renovando-lhes a vontade e, por Sua onipotência, determinando-os para o que é bom (...). Capítulo v (da Providência), n°. 6: Quanto aos homens maus e sem fé, a quem Deus, justo juiz que é, cega e endurece por seus pecados passados, a esses Ele não apenas sonega Sua graça, pela qual poderiam ter sido iluminados em seus intelectos e expandidos em seus corações, cativados, mas também às vezes lhes retira os dons que possuíam e os expõe a objetos que sua corrupção transforma em ocasião de pecado e, além do mais, abandona-os à própria devassidão, às tentações do mundo e ao poder de Satã: pelo que se dá que eles próprios se endurecem, até por aqueles meios de que se vale Deus para enternecer a outros (2004, p. 91).

e sua influência no mundo ocidental. São Paulo-SP: Cultura Cristã, 1990, p. 245-294 e GONZÁLEZ, Justo.

Historia do Pensamento Cristão. Vol. 2. São Paulo-SP: Cultura Cristã, 2004, p. 295-302.

63 A publicação em português é feita pela edita da Igreja Presbiteriana do Brasil. Confissão de Fé de

Em suma, existe um Deus todo-poderoso, radicalmente transcendente, que, embora tenha criado o mundo e o sustente com a sua providência, não pode, em hipótese alguma, ser compreendido pela finitude do espírito humano, exceto quando Ele mesmo decide revelar-se. Assim, “o sentido de nosso destino individual acha-se envolto em mistérios obscuros e é impossível e arrogante sondar” (grifo original, 2004, p. 94). Tanto aos que são eleitos para vida eterna quanto aos que são condenados à danação eterna, está vedado o questionamento de sua condição.

Se os réprobos quisessem se queixar do que lhes coube como algo imerecido, seria como se os animais se lamentassem de não terem nascido seres humanos. Pois toda criatura está separada de Deus por um abismo intransponível e aos olhos dele não merece senão a morte eterna, a menos que ele, para a glorificação de sua majestade, tenha decidido de outra forma. [...] Supor que mérito humano ou culpa humana contribuam para fixar esse destino significaria encarar as decisões absolutamente livres de Deus, firmadas desde a eternidade, como passíveis de alteração por obra humana: idéia impossível (2004, p. 94).

Como já indicamos anteriormente, o “além protestante” é habitado exclusivamente por um Deus radicalmente outro, e dessa forma, o

Pai que está no céu, mostrado pelo Novo Testamento de forma acessível à compreensão humana, [... torna-se um] Ser transcendente que escapa a toda compreensão humana e que, desde a eternidade, por decretos de todo insondáveis, fixa o destino de cada indivíduo e dispõe cada detalhe no cosmos. Uma vez estabelecido que seus decretos são imutáveis, a graça de Deus é tão imperdível por aqueles a quem foi concedida como inacessível àqueles a quem foi recusada (2004, p. 94).

Weber não consegue esconder sua indignação com tal forma de pensamento. Para ele, “em sua desumanidade patética, essa doutrina não podia ter outro efeito sobre o estado de espírito de uma geração que se rendeu à sua formidável coerência, senão este, antes de mais nada: um sentimento de inaudita solidão interior do indivíduo” (2004, p. 95).

Segundo Weber, nenhuma religião é tão racionalizada quanto o protestantismo puritano, dado o grau com que se despojou da linguagem simbólica e/ou mágico-sacramental e o grau de coerência sistemática incutido na ralação entre Deus e o mundo (2005, p. 151). Sendo assim,

No assunto mais decisivo da vida nos tempos da Reforma - a bem-aventurança eterna - o ser humano se via relegado a traçar sozinho sua estrada ao encontro do destino fixado desde toda a eternidade. Ninguém podia ajudá-lo. Nenhum

pregador: pois somente o eleito é capaz de compreender spiritualiter {em espírito}

a palavra de Deus. Nenhum sacramento: pois os sacramentos, com certeza ordenados por Deus para o aumento de sua glória e sendo por conseguinte

invioláveis, não são contudo um meio de obter a graça de Deus, limitando-se apenas a ser, subjetivamente, externa subsidia {auxílios externos} da fé. Nenhuma Igreja: pois embora a sentença extra ecclesiam nulla salus implique como sentido que quem se afasta da verdadeira Igreja nunca mais pode pertencer aos eleitos de Deus, resta o fato de que também os réprobos fazem parte da Igreja (externa), mais que isso, devem fazer parte dela e sujeitar-se à sua disciplina, não para através disso chegar à bem-aventurança eterna - isso é impossível -, mas porque, para a glória de Deus, eles devem ser além do mais obrigados pela força a observar os mandamentos. E, por fim, nenhum Deus: pois mesmo Cristo só morreu pelos eleitos, aos quais Deus havia decidido desde a eternidade dedicar sua morte sacrificial (2004, p. 95).

Em seu profundo isolamento interior, provocado pela absoluta racionalidade de sua experiência com Deus, o crente calvinista puritano depara de imediato com duas questões tão contundentes quanto angustiantes: faço parte ou não dos eleitos? Como posso ter certeza de meu estado? A opinião de Calvino a esse respeito tornou-se aos poucos insustentável, a saber, basta aceitar o testemunho interior do Espírito Santo (Cf. CALVINO, 1994, p. 401 e WEBER, 2004, p. 101) para se certificar do estado de graça. Surgiram, então, dois critérios de certeza mutuamente relacionados. Por um lado, “torna-se pura e simplesmente um dever considerar-

se eleito e repudiar toda e qualquer dúvida como tentação do diabo, pois a falta de convicção,

afinal, resultaria de uma fé insuficiente e, portanto, de uma atuação insuficiente da graça”; por outro, “distingue-se o trabalho profissional sem descanso como o meio mais saliente para se

conseguir essa autoconfiança. Ele, e somente ele, dissiparia a dúvida religiosa e daria a

certeza do estado de graça” (grifos originais, WEBER, 2004, p. 101), outrora concedida pela linguagem simbólica ou atividade mágico-sacramental.

Assim como o crente luterano, o calvinista quer salvar-se pela fé, todavia, ao passo que aquele tende para a “cultura mística do sentimento”, este, tende para “ação ascética”64. A fé do crente calvinista puritano “precisa se comprovar por efeitos objetivos” (WEBER, 2004, p. 104) capazes de servir para o aumento da glória de Deus. É a partir dessa base que a ação dentro da vida profissional mundana funciona como “meio técnico, não de comprar a bem- aventurança, mas sim: de perder o medo de não tê-la” (WEBER, 2004, p. 104).

64 A esse respeito veja o que afirma Delumeau: O protestantismo encorajou o capitalismo na medida em que

defendeu a inexistência de um relacionamento entre a ação terrena e a recompensa eterna. Deste ponto de vista, a distinção entre as correntes luteranas e calvinistas é ineficaz e sem fundamento. Pois, se é certo que Calvino fez depender a salvação da arbitrária predestinação divina, Lutero a subordinou apenas à fé: deste modo, nem um nem outro a relacionou às obras. Uma tal afirmação destrói toda a moral sobrenatural e por conseguinte a ética econômica do Catolicismo, e abre caminho para mil morais, todas naturais, todas terrenas, todas fundadas em princípios inseridos nas coisas humanas (DELUMEAU, 1989, p. 296)

Considerando o protestantismo ascético como um bloco65, Max Weber passa então a construir aquela relação entre a ética intramundana do puritanismo e o capitalismo. Para ele, há uma espécie de

adequação significativa do espírito ao capitalismo e do espírito do protestantismo [...] ajusta-se ao espírito de um certo protestantismo a adoção de uma certa atitude em relação à atividade econômica, que é ela própria adequada ao espírito do capitalismo. Há uma afinidade espiritual entre uma certa visão do mundo e determinado estilo de atividade econômica (ARON, 2002, p. 782).

Isso ocorre porque a ética puritana, ao contrário da opinião de Calvino, via a riqueza como um grande perigo, se bem que a riqueza em si não fosse condenável, e sim o descanso sobre a posse. Sendo assim, “não para fins da concupiscência da carne e do pecado, mas sim

para Deus, é permitido trabalhar para ficar rico” (2004, p. 148). O que se condena é o ócio –

tido como perda de tempo que não serve para o aumento da glória de Deus – e o prazer – tido como glorificação da criatura em detrimento do Deus que merece toda glória. Assim, o acúmulo de bens torna-se sinal de virtude.

A riqueza é reprovável precisamente e somente como tentação de abandonar-se ao ócio, à preguiça e ao pecaminoso gozo da vida, e a ambição de riqueza somente o é quando o que se pretende é poder viver mais tarde sem preocupação e prazerosamente. Quando, porém ela advém enquanto desempenho do dever vocacional, ela é não só moralmente lícita, mas até mesmo um mandamento. Querer ser pobre, costumava-se argumentar, era o mesmo que querer ser um doente, seria condenável na categoria de santificação pelas obras, nocivo, portanto à glória de Deus (WEBER, 2004, p. 148).

Para sermos justos façamos uma ressalva, o ócio e o prazer gozavam liceidade desde que não custassem tempo e dinheiro, os quais poderiam ser utilizados para o aumento da glória de Deus. Visto que é um administrador dos bens que Deus lhe concedeu por sua graça, o indivíduo não pode despender uma parte deles para um fim que tenha validade não para a glória de Deus, mas para a fruição pessoal. Isso seria temeridade.

Em resumo,

A ascese protestante intramundana [...] agiu dessa forma, com toda a veemência, contra o gozo descontraído das posses; estrangulou o consumo, especialmente o consumo de luxo. Em compensação, teve o efeito [psicológico] de liberar o

enriquecimento dos entraves da ética tradicionalista, rompeu as cadeias que

cerceavam a ambição de lucro, não só ao legalizá-lo, mas também ao encará-lo (no sentido descrito) como diretamente querido por Deus (grifos originais, WEBER, 2004, p. 155).

O estrangulamento do consumo associado ao trabalho sistemático e lucrativo sem descanso, favoreceu o emprego produtivo do capital obtido, isto é, o investimento contínuo. Por conta disso, Weber considera que a ascese puritana é “a alavanca mais poderosa que se pode imaginar da expansão dessa concepção de vida que aqui temos chamado de ‘espírito’ do capitalismo” (2004, p. 157).