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3.4 AS POSSIBILIDADADES DA RELIGIÃO ANTE O DESENCANTAMENTO

3.4.3 M ODERNIDADE E PROTESTANTISMO : A ADEQUAÇÃO

3.4.3.2 O princípio protestante e a situação-limite

A sublimidade do protestantismo não visível. Sua riqueza está no subsolo. O princípio protestante qual rocha que sustenta enorme edifício, constitui-se o núcleo duro, o elemento invisível e inalienável do protestantismo. O que garante o caráter universal, atemporal e incondicional do protestantismo, evitando que ele se torne mera adesão religiosa e se mantenha como mensagem profética é o seu princípio, identificado sempre com a liberdade e a incondicionalidade. De acordo com Tillich, “o que torna o protestantismo protestante é o fato dele poder transcender o próprio caráter religioso e confessional e a impossibilidade de se identificar completamente com qualquer de suas formas históricas e particulares” (1992, p. 182s). O fracasso do cristianismo e da igreja não é essencialmente um fracasso do protestantismo. O seu princípio está sempre além. Realiza-se na história, porém é irredutível a ela. Ele é

a força crítica e dinâmica presente em todos os feitos protestantes, sem se identificar com nenhum deles. Não se encerra numa definição. Não se esgota em nenhuma

relação histórica; não se identifica com a estrutura da Reforma, nem do cristianismo primitivo, nem mesmo com formas religiosas. Transcende-as como transcende qualquer forma cultural. Por outro lado, pode aparecer em qualquer uma delas. Trata-se de um poder vivo, dinâmico e atuante (TILLICH, 1992, p. 183).

Além disso, ele contém, acrescenta Tillich,

o protesto divino e humano contra qualquer reivindicação absoluta feita por realidades relativas, incluindo mesmo qualquer Igreja protestante. O princípio protestante é o juiz de qualquer realidade religiosa e cultural incluindo a religião e a cultura que se chamem protestantes (1992, p. 183).

“O princípio protestante envolve o julgamento da situação humana” como um todo. Tal como se nos apresenta a situação humana está implicada no conceito difícil de ‘pecado original’, que denota “a autocontradição da existência humana” (TILLICH, 1992, p. 185) que baseada em seu orgulho e pretensa auto-suficiência intenta superar o seu fundamento infinito a partir do condicionado e finito. Tal inversão presente na história humana com um todo no plano individual revela-se também no plano social84. “Esta afirmação não será entendida pelos que concebem a relação de Deus exclusivamente com a alma” (TILLICH, 1992, p. 185). A autrocontradição da condição humana ou, se quisermos, a inversão da realidade – e, neste caso, como vimos, a linguagem e a ideologia operam de maneira legitimante – pode expressar-se, muito concretamente, distorções tanto individuais quanto sociais. Pode-se falar tanto em culpa coletiva quanto em culpa individual (TILLICH, 1992, p. 186).

Sendo assim, o princípio protestante necessariamente recusa qualquer visão dualista do ser humano em termos de alma e espírito. “O corpo não é ‘cárcere’, mas ‘templo’, e não é o corpo que luta contra o espírito, mas a ‘carne’ – termo que significa tanto o orgulho do espírito como as cobiças do corpo”. Corpo e espírito – o ser humano como um todo –, o indivíduo e a sociedade são alvos do julgamento protestante.

O princípio protestante que não deixa de lado nenhum aspecto da existência humana no julgamento que faz, [...], considera o ser humano inteiro, na sua unidade de corpo e alma e na sua relação com o transcendente. Esta idéia bíblica foi redescoberta pela Reforma em oposição aos elementos dualistas do sistema católico. Mas no protestantismo esta idéia só se tornou efetiva na ética individual e jamais na ética social (TILLICH, 1992, p. 186).

Como se vê, o protestantismo não é capaz de realizar todas as possibilidades do seu espírito. Segundo Tillich, “a Reforma combateu duas ideologias ou, em outras palavras, duas maneiras de encarar a situação humana: a ideologia católica e a humanista. O catolicismo

pretende oferecer uma forma segura” de superação da autocontradição humana – superação da finitude – “por meio de graças sacramentais e de exercícios ascéticos, cuja eficácia é garantida pela hierarquia e pelos poderes sacramentais”. A ideologia humanista por seu turno, “nega o caráter pervertido da situação humana e tenta realizar a humanidade essencial na base da auto-determinação humana”. No confronto com ambas – uma, ideologia religiosa, a outra, secular – o princípio protestante insiste no reconhecimento realista da condição humana. Contudo o protestantismo histórico “ideologizou” o seu princípio. A ortodoxia e idealismo protestantes representam as formas sacramentais e humanistas das velhas ideologias. Nessas duas formas o verdadeiro Deus tem sido substituído por um ‘deus feito por mãos humanas’, encerrado num conjunto de doutrinas ou pretensamente acessível por meio da moral e da educação” (1992, p. 188). Sem perder de vista o caráter público de sua mensagem, o protestantismo precisa se digladiar em sua própria arena, “precisa lutar não apenas contra outras ideologias, mas também contra a sua própria ideologia” (1992, p. 188).

A força dinâmica do princípio protestante é a doutrina da justificação pela fé. Essa idéia que outrora sacudiu a Europa e dividiu a cristandade, não sensibiliza mais, embora a situação a que respondera outrora persista. Por isso Tillich propõe o termo situação-limite (1992, p. 213), que não é o medo ou a iminência da morte. A situação-limite tem a ver com o desespero provocado pela condenação à liberdade. Provém da angústia de perguntar e decidir em relação ao bem e à verdade e fracassar sempre. Por um lado, se a liberdade impele à existência, por outro, a inevitabilidade dela ameaça sempre, diante da possibilidade do não- ser. Há que se decidir sempre; mesmo a inatividade constitui-se uma decisão. Por isso, nada pode livrar, sejam “atividades intelectuais ou espirituais, seja o uso de sacramentos, de práticas místicas ou ascéticas, [... o exercício da] reta doutrina [... ou da] piedade rigorosa, [... ou] qualquer outra coisa pertencente à substância mundana da religião” (1992, p. 214s).

A redução protestante vista em sua relação com a economia, encontra aqui o seu vértice existencial. “A pequena importância atribuída pelo protestantismo à Igreja, à liturgia, e à esfera religiosa em geral, procede desta consciência de viver nos limites não apenas das possibilidades seculares, mas também religiosas”. Como já afirmamos anteriormente, “religião e igreja não são garantias para os protestantes” (TILLICH, 1992, p. 215).

Por esta via, a diferença entre o protestantismo e o catolicismo desloca-se do plano “das divergências entre subjetivismo e fidelidade à instituição eclesiástica” para se localizar

na escolha entre “a aceitação radical da situação-limite e tentativa de ver na Igreja e nos sacramentos proteções seguras contra a ameaça incondicional” (TILLICH, 1992, p. 215).

O protestantismo seguindo sua índole recusa – mesmo sob a crítica mais radical, como vimos em Weber e Berger – tudo que possa amenizar a peso da situação-limite, a ameaça do não ser.

Os sacramentos quando tomados em sentido mágico para ofuscar a ameaça suprema; o misticismo ao prometer união imediata com o incondicional para escapar dessa ameaça; os atos sacerdotais devotados a transmitir garantias espirituais capazes de superar a insegurança existencial humana; a autoridade eclesiástica considerada infalível e acima de qualquer erro; e, finalmente, o culto com suas feições de plenitude êxtase, querendo ocultar o caráter humano imperfeito em face das exigências divinas (TILLICH, 1992, p. 215s).

Quais são as possibilidades de sucesso de uma mensagem que é incapaz de oferecer segurança existencial, impotente diante das mazelas sociais, privada da possibilidade de considerar como “sagrados os seres humanos, as coisas e as atividades em geral”? A que tende uma Igreja que proclame uma mensagem assim? Tende a tornar-se um “mero grupo amorfo de pessoas, secularizadas, sem qualquer qualidade sacramental, por meio das quais transmitiria às futuras gerações a consciência da situação-limite”. O que fazer? Imitar as Igrejas de tipo sacramental? Certamente que não. Isso a faria definhar mais ainda, visto ser sua auto-negação.

Na verdade, não está aí o poder da Igreja Protestante. Está noutro lugar, está na cruz. “Na cruz, a humanidade experimentou a situação-limite de maneira única. Nesse poder – na verdade, nessa impotência e pobreza – a Igreja Protestante haverá de se manter na medida em que tiver consciência do significado de sua existência” (TILLICH, 1992, p. 216).

A tragédia do protestantismo é não reconhecer que o seu poder emerge da fraqueza. É a não aceitação de sua precariedade. É a suposição de possuir a “reta doutrina”, negando assim que situar-se no limite inclui “não só participar da injustiça como do erro”. Se o protestantismo afirma sem ambigüidades a posse da verdade, nega não só a situação-limite com seu “sentido e poder”. Sua única saída é abandonar a posição de defesa, sua ânsia de poder e “confrontar com a situação-limite todas as coisas que querem se passar por finais e supremas, tanto culturas como religiões” (TILLICH, 1992, p. 217).

Há uma mensagem protestante para o mundo atual? Segundo Tillich, sim. Diante do exposto, a mensagem protestante tem que se dirigir inicialmente contra o próprio protestantismo histórico. Ademais, a “mensagem protestante não pode ser a proclamação direta de verdades religiosas retiradas da Bíblia e da tradição, [...] mesmo sejam doutrinas

centrais como: “Deus, Igreja e revelação”. Não só há um problema de linguagem implicado, como também um problema de credibilidade. Tillich aposta numa mensagem tríplice” (1992, p. 218).

Em primeiro lugar é necessário “insistir na experiência radical da situação-limite”. Deve-se “destruir as reservas secretas” que impedem a aceitação dos limites da existência humana”. Tais reservas seriam “resíduos das visões de mundo fragmentárias, idealistas e materialistas”. Essas: falsas seguranças, representadas pela palavra ideologia. Apresentadas, portanto, de forma invertida por via científica, política, psicológica e até religiosa (TILLICH, 1992, p. 221).

Além disso, a mensagem protestante será relevante na medida em que “pronunciar o sim procedente da situação-limite, assumindo-a em sua suprema seriedade”. Isso significa afirmar a insegurança como segurança; a impossibilidade de posse da verdade como um caminhar na verdade; o sentido para a vida, onde não se percebe mais nenhum sentido. Eis o DNA do protestantismo (TILLICH, 1992, p. 220).

Em terceiro lugar, a mensagem protestante necessita testemunhar o “novo ser”. Segundo Tillich este novo ser que na perspectiva cristã se manifesta plenamente em Jesus Cristo pode concretizar-se também na esfera individual e comunitária. A partir da realidade desse novo ser, todas as diferenças e distâncias são superadas. Cultura e religião, por exemplo, não precisam mais se opor. “A cultura não se submete à religião, nem a religião se dissolve na cultura” (1192, p. 220). Em um outro texto e ratificando esta idéia, Tillich afirma que “a religião, concebida como preocupação última, dá substância à cultura. E cultura é totalidade das formas nas quais o interesse básico de uma religião se expressa. Em resumo: a

religião é a substância da cultura; cultura é a forma da religião” (2006, p. 53). Nessa

perspectiva existencialista da religião, “princípio protestante nega que a igreja possua o domínio do sagrado, como posse natural, mas também nega que a cultura seja dona do domínio secular capaz de escapar ao julgamento da situação-limite” (1992, p. 220).

Onde estaria esse tipo de protestantismo? Quem seriam os seus arautos? Tillich responde que esse “protestantismo existe onde quer que se proclame o poder do novo ser, e onde prega a situação-limite, o seu ‘sim’ e o seu ‘não’”. Sendo assim é até possível que um tal “protestantismo sobreviva nas igrejas organizadas. Mas não depende delas” (1992, p. 221). Não nos iludamos, contudo. Talvez este seja o lado otimista de Tillich falando. O protestantismo não é imune a uma universal característica do ser humano: a tentação dos absolutos. “Todos queremos possuir a verdade. E para possuir a verdade é preciso que se a engaiole. E para engaiolar a verdade é necessário engaiolar a liberdade e o pensamento

(ALVES, 2005, p. 13s). Na verdade, sabe-se muito bem que, outrora e agora – talvez muito mais – o protestantismo está mais “fora” do que “dentro” das Igrejas.

O princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio religioso como ao secular, mas sem qualquer filiação eclesiástica ou institucional, bem como por grupos e indivíduos que, por meio de símbolos cristãos ou protestantes, ou sem eles, expressam a verdadeira situação humana em face do absoluto e do incondicional.[...] é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna

vivo no mundo atual. (grifos nossos, 1992, p. 221).

Dessa maneira, ainda que se torne invisível, o protestantismo não morrerá enquanto sobreviver o princípio protestante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso trabalho de pesquisa constituiu-se de uma tentativa de articular três ângulos de reflexão: a linguagem simbólica, a redução protestante das mediações de tipo sacramental entre o ser humano e o seu Deus, e as possibilidades da religião na Modernidade. Se de fato a linguagem simbólica é a mediadora, por excelência, da relação com o sagrado e, como tal, capaz de “exprimir situações paradoxais ou certas manifestações do sagrado, impossíveis de se exprimir de outra maneira”, temos que questionar de que forma o protestantismo, ao se despir quase que absolutamente da linguagem simbólica, pode ser apresentado como a religião da Modernidade – tempo que se caracteriza, entre outras coisas, por situações paradoxais. Na tentativa da resposta, vamos resgatar os conceitos de cosmovisão e ideologia.

Vimos que a linguagem possibilita que o ser humano construa um mundo que lhe seja significativo, e que conteúdos, mais do que isso, significados e interpretações sejam transferidos às novas gerações, com a chancela de verdades absolutas. Isso é possível porque toda comunidade habita uma cosmovisão que, por sua vez, é sustentada por uma ideologia que, além de conferir identidade, funciona como instrumento de alienação, na medida em que oculta o fato de que toda cosmovisão é construída mediante a interpretação atualizante – mítica – do ato fundador que originou a comunidade.

Diferentemente de todo e qualquer ser vivo, o ser humano relaciona-se com o mundo que o circunda, a partir de uma atitude valorativa. Ele é capaz de perguntar pelo sentido de sua existência. Portanto uma cosmovisão só se sustenta enquanto faz sentido, responde aos anseios dos que nela estão inseridos; ou quando está referenciada a um universo sagrado. Neste último caso, instaura-se o caráter inercial da ideologia. Esse é o caso do protestantismo, quando consideramos a sua relação com os textos. Não há espaço para o novo, só para a dedução.

O ato fundador do protestantismo é o questionamento da cosmovisão medieval, segundo a qual o magistério da Igreja garante a interpretação correta. Em Lutero, temos o livre exame e, com ele, a rejeição de todo nihil obstat, imprimatur ou index85 e a concessão de

liberdade para a investigação bíblico-teológica (BAUBÉROT; WILLAIME, 1990, p. 117). Instaura-se assim uma “relação hermenêutica” com o texto. A consciência é livre. A

85 nihil obstat, “Literalmente, nada obsta; fórmula latina utilizada pela censura eclesiástica católica para

experiência vital do leitor se encontra com a do autor bíblico. Nesse momento, a Bíblia é entendida como um livro que registra as experiências que homens e mulheres tiveram com Deus em algum momento do passado. As palavras registradas apontam para uma experiência vital e promordial.

Embora a Reforma prescinda de linguagem simbólica no relacionamento com Deus, não nega que a Bíblia seja um livro de símbolos – não de signos – onde o que é valioso “não é a facticidade bruta a que ele se refere: eventos, pessoas, lugares e datas. Os fatos, em si, são destituídos de significação. O que importa é o como subjetivo que se exprime nas palavras que brotam da região da experiência viva em que o texto nasceu, mas que o próprio texto não pode conter”. Assim, a mensagem da Bíblia está para além do texto; “quem fica no texto não pode ir para onde o texto aponta”. Não se pode determinar o seu conteúdo, nem tão pouco afirmá-lo por meio de proposições dogmáticas; o que se busca é “ressentir, simpaticamente, na imaginação, os sentimentos que estão por detrás das palavras, mas que são muito profundos para ser por elas expressos”. Se tomarmos a experiência de Lutero como exemplo, nos primórdios da Reforma o texto não é a autoridade, mas a experiência de fé que brota da relação com ele. “A autoridade que estabelece o texto é a experiência vital donde ele brota. Isto foi verdade no momento do nascimento do texto”. (ALVES, 2005, p. 115s). Mas aí vêm as perguntas:

quem fala no texto? Os homens. Sobre o quê? Sobre a sua experiência com Deus. Mas se o texto não é a autoridade, mas sim a experiência, por que me voltar ao texto? Não basta a minha experiência? Voltamos ao texto porque as experiências ali confessadas e as minhas próprias experiências são irmãs: horizontes que se entrelaçam. E as confissões dos homens no passado tomam-se, assim, minha própria voz. E elas me ajudam a entender minha própria vida. A biografia é iluminada pela história” (ALVES, 2005, p. 114).

O problema começa, para o protestantismo, quando ele tem que definir a sua identidade e transferir sua mensagem às gerações seguintes. Todo e qualquer movimento, ao se afastar de sua origem, tende a perder e/ou subverter as características iniciais. Ser cristão, aos poucos, passa a ser uma experiência cerebral, não mais vital. Segundo Rubem Alves, as polêmicas com a Igreja Católica obrigaram o protestantismo a sustentar que a verdadeira Igreja não era aquela que se alicerçava numa continuidade histórica, mas a que confessava sua fé de acordo com Bíblia (2004, p. 71). A saída encontrada foi a redefinição da Bíblia e a formulação de Confissões. Eis o nascimento da ideologia protestante!

católica para imprimir uma obra teológica; index, livros proibidos à leitura pela autoridade autoridade pontifícia” (GAGNEBIN, 1997, p. 107s).

A ideologização do princípio protestante da qual trata Tillich está implicada na relação que os protestantes mantêm com o texto da Bíblia e das Confissões de Fé. Consideremos a Bíblia em primeiro plano. Os protestantes identificaram a Bíblia com a Palavra de Deus.

A Bíblia é um milagre, uma exceção única, o único documento que não é solidário com a vida, mas que desce da eternidade. Seu autor não habita nem o espaço nem o

tempo, por isto o seu dizer nada tem a ver com condicionantes emocionais e sociais.

O texto é a verdade absoluta. A teoria protestante da inspiração toma a hermenêutica supérflua e impossível (grifos nossos, ALVES, 2005, p. 121).

A ideologia aqui atua, em primeiro lugar, no ocultamento da realidade – a Bíblia é

negada como resultado da experiência de fé de alguns homens e mulheres situados histórica e

socialmente – e, em segundo lugar, na identificação de uma realidade precariamente construída com um universo sagrado.

Se a Bíblia é de fato um livro inspirado86, “sendo ela a vontade eterna e una de Deus reduzida à linguagem, o texto é compreendido como uma estrutura única e una” (ALVES, 2005, p. 129). As várias Confissões de Fé protestantes partem dessa premissa, ou seja,

simplificam e esquematizam a harmonia existente no texto bíblico. Nesse caso, seguindo Paul

Ricoeur, a ideologia implícita transforma o pensamento em sistema de crença, por meio do qual a comunidade ou grupo idealiza uma imagem de si mesma que serve para representar a sua própria existência. Essa imagem, por contra-reação, reforça o código interpretativo. Em outras palavras, dependendo do caso, falar contra uma determinada Confissão de Fé pode equivaler a falar contra a Bíblia e, em última instância, falar contra o próprio Deus. O texto da Confissão de Fé, uma vez ocultado o seu estado de “coisa construída social e historicamente”, torna-se, assim, um instrumento ideológico de justificação e dominação.

É comum ouvirmos que o livre exame da Bíblia é responsável pela fragmentação do protestantismo e que o magistério da Igreja é responsável pela unidade católica. Mas segundo Rubem Alves, isso não é verdade. A relação hermenêutica com o texto não mais existe. O livre exame foi reduzido à proximidade geográfica do texto. E esta “proximidade física indivíduo-texto de maneira nenhuma garante a proximidade entre a consciência que lê e a significação do texto” (ALVES, 2005, p. 135); nessa relação se interpõe a interpretação correta da Confissão de Fé. A liberdade nunca divide. Concilia. É justamente a ausência de liberdade e, conseqüentemente, a impossibilidade da discordância que divide os protestantes.

86 Refere-se à doutrina da inspiração segundo a qual Deus é o autor da Bíblia. Nos círculos mais

fundamentalistas é agregada a esta doutrina a idéia de inerrância, isto é, Deus ditou todas as palavras da Bíblia, portanto não há erro nela.

Sendo assim, parece um erro afirmar que o protestantismo seja a religião adequada para um contexto caracterizado, por exemplo, pela subjetivação, pelo movimento e pela desregulação de identidades herdadas. Talvez fosse mais próprio dizer que o princípio protestante se adapta à Modernidade; não o protestantismo. O princípio protestante sobreviverá no futuro; o protestantismo, talvez87.

Entendemos que – ironicamente, há que se dizer – só a linguagem simbólica poderá “salvar” o protestantismo. Explicamos.

Quando o protestantismo faz a verdade espiritual depender da verdade histórica do texto, ele coloca o signo e o símbolo no mesmo nível ou, mais precisamente, reduz todos os símbolos a signos. A linguagem das coisas espirituais é a mesma linguagem das coisas materiais. O modo de significar um fato histórico é o mesmo modo de significar o sagrado. A cada signo corresponde, de forma direta e unívoca, um fato. [...]. A verdade, [...] é entendida como a adequação da coisa ao intelecto (ALVES, 2005, p. 126s).

A conseqüência óbvia é que a linguagem simbólica é identificada com a mentira. A bem da verdade, entretanto, o protestantismo, inicialmente, ao eliminar os canais de acesso a Deus, não nega ou abole os símbolos completamente. Prova disso são: o batismo, a santa