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A redução protestante: uma análise introdutória das possibilidades do protestantismo na modernidade a partir da precariedade de sua linguagem simbólica

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

EDSON DUQUE DE CASTRO

A REDUÇÃO PROTESTANTE:

uma análise introdutória das possibilidades do protestantismo na modernidade

a partir da precariedade de sua linguagem simbólica

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Edson Duque de Castro

A REDUÇÃO PROTESTANTE:

uma análise introdutória das possibilidades do protestantismo na modernidade

a partir da precariedade de sua linguagem simbólica

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.

Orientador: Dr. Ronaldo de Paula Cavalcante.

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EDSON DUQUE DE CASTRO

A REDUÇÃO PROTESTANTE:

UMA ANÁLISE INTRODUTÓRIA DAS POSSIBILIDADES DO PROTESTANTISMO NA MODERNIDADE

A PARTIR DA PRECARIEDADE DE SUA LINGUAGEM SIMBÓLICA

Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.

Aprovada em

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________ Dr. Ronaldo de Paula Cavalcante – Orientador

Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________ Dr. Etienne Alfred Higuet

Universidade Metodista de São Paulo

___________________________________________________________________ Dr. Breno Martins Campos

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AGRADECIMENTOS

A Deus, fonte de vida e inspiração;

À Universidade Presbiteriana Mackenzie, a bolsa de estudos; Ao Mackpesquisa, o financiamento da pesquisa;

À Igreja Presbiteriana Luz do Mundo, o apoio e incentivo; À Igreja Presbiteriana Nova Vida, a compreensão;

Ao meu amigo Paulo Huggler, o investimento e diálogos inspirativos; Ao Darly, a amizade;

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RESUMO

Este trabalho aborda a temática de linguagem em sua perspectiva simbólica. A linguagem de um modo geral, tem valor existencial. Forma uma cosmovisão, legitima uma dada interpretação da realidade, media a relação com o outro, inclusive com o “totalmente outro”; neste caso específico, a linguagem simbólica é tida como imprescindível, dado o caráter não fechado e evocativo do símbolo. Analisa também o protestantismo, sobretudo em sua versão puritana, enquanto religião que reduz o simbolismo religioso predominante no universo católico medieval. O protestantismo rejeita todo e qualquer adendo à relação estabelecida entre o ser humano pecador e o Deus intocável. A angústia que daí nasce deve ser superada solitariamente por meio de uma atuação bem sucedida no mundo, capaz de revelar o estado de graça do indivíduo. Isso tem implicações éticas, econômicas e religiosas. O protestantismo representa o clímax do processo de desencantamento do mundo por via religiosa, uma vez que por via científica ele está longe de chegar ao fim. A Modernidade desencantada ao afirmar a autonomia do indivíduo, destrói as instituições, desregula o crer, promove o pluralismo religioso, privatiza a experiência religiosa. O indivíduo é livre, porém esmagado pela falta de sentido existencial. A Modernidade liberta o indivíduo da religião, mas não suprime a religião; embora nem toda religião sobreviva na Modernidade sem optar pela insanidade. O protestantismo, com base em seu princípio de liberdade, é a religião da Modernidade, desde que consiga superar a tentação de posse da verdade. Até porque em sua essência o protestantismo afirma que a verdade sem a busca da verdade é apenas metade da verdade.

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ABSTRACT

This study investigates language in its symbolic aspect. Generally speaking, language has an existential value. Language builds worldview. It legitimates a specific interpretation of reality. It mediates the relationship with others, and also with the “totally other”; in this case a symbolic language is indispensable considering the open and suggestive character of the symbol. It also analyzes Protestantism, mainly its puritanical version as a religion that minimizes mainline religious symbolism in the medieval catholic universe. Protestantism rejects each and every addition to the established relationship between the sinning human being and the untouchable God. The anguish that comes from the relationship between man and God must be overcome alone through a well-succeeded performance in the world that it is capable of revealing the state of grace of the individual. All of that has ethics, economics, and religious implications. Protestantism represents the climax of the process of disenchantment of the world through religion, for through science the world is far from an end. When disenchanted Modernity affirms the autonomy of an individual, it destroys the institutions, it alters the belief, and it promotes religious pluralism and privatizes the religious experience. The individual is free, but crushed for the lack of existential meaning. Modernity frees the individual from religion, but it does not eliminate religion, although not all religion survives in Modernity without choosing insanity. Protestantism based in its freedom principle seems to be the religion of Modernity if it overcomes the temptation of being the holder of the truth. After all, for protestantism, the truth without the search for the truth is only half the truth.

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SUMÁRIO

DEDICATÓRIA AGRADECIMENTOS RESUMO

ABSTRACT SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

CAPÍTULO I A LINGUAGEM SIMBÓLICA 1.1 A FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO... 12

1.2 O SAGRADO É A ESSÊNCIA DA RELIGIÃO?... 14

1.3 O SAGRADO ... 18

1.3.1 RUDOLF OTTO: O SAGRADO COMO MYSTERIUM TREMENDUM... 19

1.3.2 MIRCEA ELIADE: O SAGRADO COMO MODALIDADE DE SER NO “MUNDO”... 22

1.4 A LINGUAGEM ... 25

1.4.1 LINGUAGEM E COSMOVISÃO... 25

1.4.2 LINGUAGEM E LEGITIMAÇÃO ... 28

1.4.3 LINGUAGEM E MEDIAÇÃO ... 38

1.4.3.1 O símbolo e o sentido... 38

a) A definição e função dos símbolos ... 40

b) O símbolo e o duplo sentido... 41

c) O símbolo e a interpretação ... 44

1.4.3.2 O mito e a realidade... 47

a) A definição e função dos mitos ... 47

b) A oposição entre o mythos e o logos ... 49

c) O mito e a realidade ... 53

1.4.3.3 O rito e o ritualismo... 54

a) A definição e função do rito ... 54

b) O rito e o mito ... 55

c) O rito e a práxis ... 56

1.4.3.4 A religião e a magia... 57

a) A religião ... 57

b) A magia... 59

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CAPÍTULO II

A REDUÇÃO PROTESTANTE E O DESENCANTAMENTO DO MUNDO

2.1 A RIQUEZA SIMBÓLICA DO UNIVERSO CRISTÃO MEDIEVAL ... 65

2.1.1 O ALÉM... 66

2.1.1.1 Deus... 66

2.1.1.2 Diabo... 67

2.1.2 A TERRA... 68

2.1.2.1 O espaço e o tempo... 69

2.1.2.2 A instituição e os sacramentos... 71

2.1.3 ENTRE A TERRA E O ALÉM... 73

2.1.3.1 Santos... 73

2.1.3.2 Anjos... 74

2.2 REDUÇÃO PROTESTANTE E O PURITANISMO ANGLO-AMERICANO ... 75

2.2.1. NO ALÉM: O DEUS INTOCÁVEL... 76

2.2.2 NA TERRA: UMA EXISTÊNCIA PARADOXAL... 78

2.2.3 ENTRE O CÉU E A TERRA: A PALAVRA RACIONALIZADA... 80

2.3 A ÉTICA PURITANA E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO SEGUNDO WEBER ... 81

2.3.1 O CONCEITO DE VOCAÇÃO... 82

2.3.2 O PURITANISMO E O CAPITALISMO... 84

CAPÍTULO III DESENCANTAMENTO DO MUNDO E AS POSSIBILIDADES DA RELIGIÃO NA MODERNIDADE 3.1 A ATUALIDADE DE MAX WEBER... 90

3.2 O CONCEITO DE DESENCANTAMENTO DO MUNDO ... 93

3.2.1 O SENTIDO DO CONCEITO ... 94

3.2.2 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A RELIGIÃO ... 94

3.2.3 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A CIÊNCIA... 96

3.3 O CONCEITO DE DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A SECULARIZAÇÃO... 97

3.3.1 WEBER E OS CLÁSSICOS: A RUPTURA ... 99

3.3.2 WEBER, A SECULARIZÃO E O DESENCANTAMENTO: A IRREVERSIBILIDADE...100

3.4 AS POSSIBILIDADADES DA RELIGIÃO ANTE O DESENCANTAMENTO ... 102

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3.4.2 MODERNIDADE E RELIGIÃO: O PARADOXO... 105

3.4.2.1 A configuração do paradoxo... 106

3.4.2.2 A reconfiguração da experiência religiosa... 108

a) A característica maior ... 109

b) A validação do crer ... 112

c) A religião em movimento ... 114

3.4.3 MODERNIDADE E PROTESTANTISMO: A ADEQUAÇÃO... 116

3.4.3.1 A essência do protestantismo... 117

a) A Fé ... 118

b) A Bíblia... 119

c) A Igreja ... 121

3.4.3.2 O princípio protestante e a situação-limite... 123

CONSIDERAÇÕES FINAIS...128

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INTRODUÇÃO

A nossa pesquisa bibliográfica que gravita em torno da temática da linguagem e da religião na modernidade, está dividida em três partes que se complementam.

Inicialmente abordamos a linguagem. A intenção é demonstrar que a linguagem está presente em todo tempo e em toda a parte, impregnando os pensamentos e os sonhos humanos, constituindo-se um produto e um elemento da atividade prática e das relações entre os seres humanos. Na verdade, todas as conquistas humanas no decurso da história estão de alguma forma relacionadas à linguagem, visto que ela, além de transmitir, é guardiã do conhecimento humano. Sem a linguagem não haveria cultura, posto que os conhecimentos de indivíduos e civilizações não seriam transmitidos e/ou guardados e assim, conseqüentemente, desapareceriam. Em última instância, a linguagem é guardião do ser.

Reconhecemos que “a linguagem é um fenômeno extremamente complexo, que pode ser estudado, a partir de múltiplos pontos de vista, pois pertence a diferentes domínios. É, ao mesmo tempo, individual e social, física, fisiológica e psíquica” (FIORIN, 1995, p. 8). Nossa abordagem, entretanto, enfocará a linguagem enquanto mediadora, formadora e legitimadora da experiência religiosa, restringindo nosso propósito à linguagem simbólica, levando em conta que esta é capaz de “exprimir situações paradoxais ou certas estruturas da realidade última, impossíveis de se exprimir de outra maneira” (ELIADE, 1995, p. 8).

A segunda parte da pesquisa objetiva evidenciar que a redução da linguagem simbólica – em comparação com o catolicismo – enquanto mediadora da experiência com o sagrado, no protestantismo, radicalizada, sobretudo, em sua versão puritana1, está na origem do que Max Weber denominou desencantamento do mundo.

[...] O protestantismo parece ser uma mutilação radical, uma redução aos elementos ‘essenciais’, sacrificando-se uma ampla riqueza de conteúdos religiosos [...] o protestantismo despiu-se tanto quanto possível três mais antigos e poderosos elementos concomitantes do sagrado: o mistério, o milagre e a magia. (BERGER, 1985, p. 124).

Este desencantamento do mundo simplificou a mensagem e o culto protestante. Portanto, por essa perspectiva, não é demasiado afirmar que o protestantismo constitui-se um empobrecimento do cristianismo.

1 No puritanismo, a linguagem simbólica foi mutilada, quase suprimida. A experiência religiosa protestante foi

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Ao eliminar toda e qualquer mediação de cunho sacramental da experiência religiosa, o protestantismo nega peremptoriamente a validade da linguagem simbólica tão predominante no universo cristão medieval. Tal redução tem implicações de cunho econômico e religioso, implicações que serão analisadas sob o prisma weberiano.

A última parte do trabalho pretende evidenciar que a religião paradoxalmente declina e avança na modernidade desencantada, e que o protestantismo – desencantado por natureza – seguindo também sua índole paradoxal, longe de ser interditado na Modernidade, ajusta-se muito bem a ela.

De forma mais concisa e objetiva, podemos afirmar que a nossa discussão parte de uma tríplice problematização: 1) A linguagem simbólica – na sua perspectiva religiosa – é de fato capaz de “exprimir situações paradoxais ou certas manifestações do sagrado, impossíveis de se exprimir de outra maneira”? 2) O protestantismo, enquanto um esforço de discurso sobre o sagrado e/ou enquanto linguagem mediadora da experiência religiosa, suprimiu a linguagem simbólica e tal supressão está ligada ao processo de desencantamento e secularização do ocidente? 3) Na Modernidade, caracterizada, entre outras coisas, pelo individualismo, pela perda de identidades herdades, pela presença silenciosa da religião, há uma religião capaz de se adequar a esse momento complexo que, além de tudo, tem como fonte vital a mudança constante?

Partiremos das hipóteses de que há um valor existencial no simbolismo religioso, já que “quem compreende um símbolo, não só se ‘abre’ para o mundo objetivo como também consegue sair de sua situação particular e ter acesso à compreensão do universal” (ELIADE, 1991, p. 227). Isto é, a linguagem simbólica não pode ser alijada de nossa tentativa de compreender a experiência religiosa na modernidade. Além disso, pretendemos apontar que o avanço do processo de desencantamento e da secularização está intimamente ligado ao protestantismo, na medida em que este opta por uma relação “direta” com Deus, desprovida de toda e qualquer atitude ou instrumento que possa amenizar o peso ou angústia de tal experiência. Por fim, verificaremos que a Modernidade desencantada, questionadora de toda e qualquer coesão e sentido atribuídos religiosamente, por um lado, não consegue conferir o sentido que destrói a partir de sua promessa de sentido racional; por outro, não foi capaz suprimir a religião, ainda que tenha privatizado a experiência religiosa e destruído todo e qualquer modelo não subjetivo para tal experiência; e que, nesse contexto, o protestantismo se encaixa perfeitamente.

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CAPÍTULO I

A LINGUAGEM SIMBÓLICA

“Sabia que a religião é uma linguagem? Um jeito de falar sobre o mundo... Religião é tapeçaria que a esperança constrói com palavras. E sobre estas redes as pessoas se deitam. É. Deitam-se sobre palavras amarradas umas nas outras. Como é que as palavras se amarram?É simples. Com o desejo. Só que, às vezes, as redes de amor viram mortalhas de medo. Redes que podem falar de vida e podem falar de morte. E tudo se faz com as palavras e o desejo.Por isto, para se entender a religião, é necessário entender o caminho da linguagem”.

Rubem Alves2

1.1 A FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO

Segundo Antonio Mendonça, o filósofo e político francês Benjamin Constant (1767-1830) e o teólogo, filósofo e pedagogo Friedrich Schleiermacher (1768-1834) devem ser considerados os precursores da fenomenologia da religião, uma vez que “ocupam-se da religião sob o ponto de vista fenomenológico, embora não tratem explicitamente desta disciplina” (1999, p. 4). Com isso não concorda Arnaldo Nesti, para quem, “Pierre Chantepie De la Saussaye (1848-1920), com Cornelis P. Tiele (1830-1902) na última fase da sua reflexão, devem ser considerados os precursores da fenomenologia que se irá articular e desenvolver com a vertente da ‘fundação’” (1990, p. 254).

Seja como for, podemos afirmar que a fenomenologia da religião3, surgida no início do século XX, consiste numa proposta de revisão das estruturas epistemológicas com que o século começou. A fenomenologia da religião se vê desafiada a superar as até então, predominantes perspectivas acerca da origem e da história da religião, quase sempre referenciadas ao evolucionismo positivista. A partir desse momento, a questão da religião coloca-se no “esquema da essência e da forma e pretende partir da filosofia como ciência rigorosa com seu respectivo método e, assim, situa-se num absoluto a priori em relação às demais disciplinas como a história, a antropologia e a sociologia” (MENDONÇA, 1999, p. 6). Em resumo, e, ainda de acordo com Mendonça, “a fenomenologia da religião pode ser vista num duplo sentido: uma ciência independente, com suas pesquisas e publicações, mas

2 In: O suspiro dos oprimidos. São Paulo-SP: Edições Paulinas, 1984, p. 6.

3 Segundo Arnaldo Nesti, o conceito de fenomenologia da religião é muito abrangente. Pode se tratar de: a) um

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também como um método que faz uso de princípios próprios, como a epochê e a ‘redução eidética’” (MENDONÇA, 1999, p. 6).

“Para os fenomenólogos4 da religião, o homem é ‘naturaliter religiosus’”, ou seja, “a religião aparece como uma característica constante dos seres humanos, em todas as épocas” (MARTELLI, 1995, p. 138). Além disso, a capacidade de atribuir sentido à vida a partir do apelo ao sagrado é uma postura inerente à condição humana desde as primeiras manifestações e/ou formas culturais em que se reconheça a hominização.

O ser humano não só é essencialmente religioso, como também capaz de atribuir expressão à sua relação com o sagrado. Nas palavras de Stefano Martelli, “a expressão religiosa é, desde os primórdios da humanidade, parte constitutiva e integrante das atividades simbólicas, que distinguem o ‘homo sapiens’ dos animais” (MARTELLI, 1995, p. 138).

A via fenomenológica em sua referência à religião, em última análise se propõe a evitar os reducionismos que podem advir de análises inspiradas nas abordagens da religião feitas por Marx, Nietzsche e Freud, os mestres da suspeita, segundo Ricoeur5 (MARTELLI, 1995, p. 138).

Finalizando esta parte, podemos assentir que para os fenomenólogos, a experiência religiosa consiste em experimentar a presença do sagrado ainda que toda religião histórica se utilize de uma linguagem culturalmente mediada para descrevê-lo. O não reconhecimento deste fato pode levar justamente ao reducionismo do logos que outrora abrira espaço à perspectiva fenomenológica. A multiplicidade de concepções e de manifestações não exclui a possibilidade de individuação dos elementos constantes do fenômeno religioso, dos quais o sagrado seria o mais importante.

4 Os principais fenomenólogos da religião são: O teólogo luterano alemão Rudolf Otto (1869-1937); o teólogo

holandês Gerhardus van der Leeuw (1909-1950), “autor de Fenomenologia da Religião, publicada em 1933, foi o nome mais expressivo da fenomenologia da religião nos anos que precederam sua morte. Ele situa o poder como objeto da religião e a fenomenologia como busca por captar e descrever o homem no seu comportamento em relação ao poder” (MENDONÇA, 1990, p. 7). “A chave interpretativa da fenomenologia de Leeuw [...] está na noção de poder que, a seu juízo, está na base de toda forma religiosa. É a partir de tal conceito que se deduz o que é e o que não é religioso. [Para] Leeuw, é a idéia de poder que autentica, no sentido religioso, coisas e pessoas. Os objetos e as pessoas investidas de poder têm uma natureza específica, a que nós chamamos sagrada” (NESTI, 1990, p. 260 s); Joachim Wach (1898-1955) que publicou, em 1931, uma Introdução à Sociologia da Religião em alemão e mais tarde, em 1971 uma versão em inglês. Para ele “existem quatro critérios para verificar se um dado é ou não é religioso. Efetivamente, a experiência religiosa se caracteriza como tal, enquanto: a) é uma resposta àquilo que é experimentado como realidade última; b) é uma resposta total do ser, na sua globalidade, àquilo que é apreendido como realidade última; c) é a experiência mais intensa do que seja capaz o homem; d) é experiência que comporta um imperativo que impele à ação. Portanto, para que a experiência religiosa seja “autêntica”, devem estar presentes as quatro condições acima referidas. No seu conjunto, elas estão traçando um divisor de águas entre o que é e o que não é religioso” (Idem, 272) e o historiador romeno Mircea Eliade (1907-1986). Detalharemos adiante as perspectivas de Otto e Eliade.

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1.2 O SAGRADO É A ESSÊNCIA DA RELIGIÃO?

Seja na Europa, seja nos EUA os debates acerca do conceito de religião com base em uma essência, neste caso, o sagrado, seguem acirrados. Há quase de 30 anos circulava, entre os cientistas da religião alemães, a seguinte e sintomática anedota: “Por que os cientistas da religião na Alemanha deveriam urgentemente consultar um médico? [...] Porque eles sofrem de uma numinose” (USARSKI, 2004, p. 74), numa referência clara ao uso extremado e/ou indiferenciado do postulado de Rudolf Otto.

A partir dos debates europeus, situados principalmente na Alemanha, Frank Usarski tenta identificar os sintomas da numinose entre os cientistas da religião aqui no Brasil. Segundo ele, os indícios da numinose entre nós, referem-se ao

o uso inflacionário ou mesmo aleatório da palavra sagrado, que é aplicada à vontade para parafrasear algo que - de uma maneira ou outra - tem (mais ou menos) a ver com religião. [... bem como o contrário disso, o uso] o termo sagrado é intuitivamente associado a um sentido mais específico do que o da palavra religião (USARKI, 2004, p. 75).

Embora reconheça que este é um assunto polêmico e longe de chegar ao fim, sobretudo no Brasil, onde os cursos são relativamente novos, Usarski, por um lado, não poupa críticas6 ao ramo clássico das ciências da religião, o sagrado (2004, p. 78); por outro, não despreza evidentemente a validade da fenomenologia da religião, bem como o uso do termo sagrado, desde que seja um uso “mais consciente e cuidadoso” e que os “integrantes de uma disciplina que há décadas tem buscado um lugar próprio nas universidades levem a sério a crítica à insuficiência da discriminação entre a Ciência da Religião e a Teologia, nas publicações de fenomenólogos da religião” (USARSKI, 2004, p. 94).

Ainda que Steven Engler, por sua vez, situe o debate quanto ao sagrado – como o a priori da fenomenologia da religião – nos EUA, a temática e o tom crítico de Usarki são mantidos. Seu artigo7

6 Discutir cada um dos pontos elencados por Usarki demandaria muito esforço sem com isso contribuir

significativamente para o nosso propósito aqui, por isso apenas os citamos aqui como incentivo à leitura completa do seu artigo: a) A crítica à negligência do contexto sócio-histórico do surgimento do termo e a falta da reflexão sobre suas implicações confessionais; b) A crítica à suposta universalidade do significado do termo do sagrado; c) A crítica às implicações ontológicas e “criptoteológicas” da noção do sagrado; d) Reflexões críticas sobre o objeto privilegiado pela Fenomenologia; e) A crítica à negligência das referências múltiplas à transcendência no mundo religioso empírico; f) A crítica à suposta singularidade da experiência do sagrado; g) A crítica às implicações normativas na abordagem da Fenomenologia da Religião; h) Críticas à metodologia da Fenomenologia da Religião.

7 ENGLER, Steven. Teoria da religião norte-americana: alguns debates recentes. In: REVER – Revista de

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aborda debates recentes sobre a definição do conceito de ‘religião’. Nele, o argumento é de que existem problemas com as definições de ‘religião’ que se baseiam em um elemento santo da consciência humana, em uma realidade "sacra" ou em um acesso privilegiado para uma essência além da História (ENGLER, 2004, p. 27).

Assim como Usarski, Engler deseja apenas contribuir para o avanço do debate, o que não o impede de ser impiedoso nas críticas. Se por um lado reconhece-se que o assunto é complicado e que nenhum argumento pode negar a existência do sagrado, por outro afirma-se que as “críticas negam a utilidade do sagrado como ferramenta das Ciências Humanas” (ENGLER, 2004, p. 30).

O ‘sagrado’ serve como base para duas afirmações importantes: é comum a todas as religiões e, portanto, é o assunto principal das Ciências da Religião. Como prevalecem tantas divergências entre as religiões e entre os entendimentos acadêmicos a respeito, devemos desconfiar da possibilidade de existência de um único objeto escondido, de modo inefável, atrás de tal variedade de fenômenos e teorias. Para utilizar o conceito de ‘sagrado’ com confiança, precisamos ter evidência pública e falsificável do fenômeno. Pelo sagrado, é difícil afirmar que tais evidências existem (ENGLER, 2004, p. 30).

Para Steven Engler, dentre as críticas ao sagrado destacam-se as de cunho a epistemológico, semântico e a ideológico. Do ponto de vista epistemológico, o método fenomenológico dificilmente consegue garantir correspondência e coerência entre os conceitos construídos a partir da suposta existência do sagrado e a sua manifestação, ou seja, não existe evidência da existência do sagrado fora da hierofania captada pela experiência religiosa. E além disso, a fenomenologia religiosa afirma que todos os ‘espaços sagrados’ manifestam o mesmo algo ‘inteiramente outro’ sem poder provar sua tese. Em decorrência, se as ciências da religião afirmam

a existência de um sagrado comum a todas as religiões sem poder prová-la, não passam de integrantes de uma espécie de ‘crypto-teologia’ [...] Sendo assim, elas estariam fundamentadas em uma fé na existência do sagrado análoga à fé que os fiéis têm na existência de Deus (ENGLER, 2004, p. 31).

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a perspectiva fenomenológica não pode equacionar esse problema afirmando que o “acesso ao sagrado” se dá de forma indireta, pelo viés da linguagem simbólica. Isso seria um subterfúgio que Nancy K. Frankenberry denomina ‘a teologia das formas simbólicas’. Em suma, a crítica de cunho semântico nos expõe a este dilema: “ou o sagrado não é ‘inteiramente outro’, sendo que podemos falar a seu respeito em linguagem literal (e contextualizada), ou é impossível afirmar algo concreto em relação a ele” (ENGLER, 2004, p. 32).

Por fim, a crítica à fenomenologia da religião sob o prisma ideológico deve-se ao fato de que se estuda areligião entre parênteses, entenda-se, fora do contexto político e histórico.

A linguagem do sagrado põe os valores das culturas estudadas entre aspas e, pelo mesmo ato, importa valores liberais, pluralistas e individualistas da cultura ocidental observadora [...] religião é um conceito que apareceu somente no Ocidente moderno e que seu conteúdo depende das lealdades ideológicas dos pesquisadores (ENGLER, 2004, p. 32).

Para Engler, tanto o método descritivo que “pressupõe a existência do sagrado e pretende organizar e classificar os hierofanias a partir de sua base” quanto o método comparativo que “propõe sistemas comparativos de descrição segundo as categorias bem conhecidas dos textos introdutórios da disciplina: escritura sacra, história sacra, tempo sacro, espaço sacro, funções e instituições sociais” são passíveis de crítica. Este “proporciona uma comparação superficial, sem interpretação ou explicação. Além disso, oculta dimensões ideológicas”; aquele também possui uma dimensão ideológica, ou seja, ao tratar todas as religiões dentro de um mesmo padrão, termina-se por reforçar os valores implícitos no padrão de descrição: pluralismo, tolerância, individualismo e liberdade, como requisitos para o agente acadêmico que empenhava esses mesmos valores com o seu olhar ‘objetivo’ (ENGLER, 2004, p. 33).

Pensando numa alternativa que se adeque melhor ao objetivo deste trabalho, abandonamos Steven Engler e nos voltamos para José J. Queiroz.8

Considerando-se os avanços nos estudos da linguagem como um dos fenômenos marcantes do século XX, que penetrou nas ciências em geral e no estudo da religião, há de se considerar também que foi de grande importância a concepção de que a filosofia deve realizar-se de alguma maneira através da linguagem(QUEIROZ, 2006, p. 11).

8 Referimo-nos ao seu artigo: QUEIROZ, José J. Deus e crenças religiosas no discurso filosófico pós-moderno:

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Os estudos da linguagem ganharam notoriedade com as “posições do primeiro Wittgenstein, expressas no Tractatus Lógico-Philosophicus (1ª ed. Em 1921) e no segundo Wittgenstein, das Investigações Filosóficas (1ª ed. póstuma em 1952)” (QUEIROZ, 2006, p. 11). Nosso interesse recai sobre o segundo Wittgenstein, principalmente no que respeita à “concepção de linguagem que ficou célebre e ganhou espaços em várias áreas do saber, a teoria dos jogos lingüísticos. A linguagem não é mais monolítica, mas se desmancha em um número infinito de jogos” (QUEIROZ, 2006, p. 13). A linguagem adquire várias funções, como se fosse “ferramentas em sua caixa apropriada: lá estão um martelo, uma tenaz, uma serra, uma chave de fenda [...] Assim como são diferentes as funções desses objetos, assim são diferentes as funções das palavras. (WITTGENSTEIN, 1999, p. 31). Com isso se quer dizer que “o sentido das palavras não é estático; depende do uso que delas se faz. Os jogos correspondem a infinitos usos da linguagem” (QUEIROZ, 2006, p. 13).

Na tentativa de sustentar a validade de perspectiva fenomenológica como forma de estudo da religião, Queiroz recorre à idéia de que a religião pode e deve ser definida nas fronteiras da linguagem, seguindo o pensamento de Paul M. van Buren, que claramente caminha na esteira de Wittgenstein (QUEIROZ, 2006, p. 17). Segundo Buren, embora a linguagem seja restritiva, o pensamento pode encontrar mecanismos para superar os limites impostos pela linguagem convencional e/ou cotidiana.

A linguagem tem limites porque tem regras. Eliminadas as regras, já não há mais linguagem. Mas nem por isso se deve pensar a linguagem “como uma gaiola, que restringe nossa liberdade de movimento” [...] Para eliminar essa concepção restritiva, o autor acredita que o papel da linguagem pode ser melhor entendido introduzindo a imagem de uma plataforma, sobre a qual podemos circular, caminhar, dançar ou dormir, isto é, fazer tudo o que fazemos com as palavras [...] Longe de nos aprisionar, a plataforma lingüística nos torna livres. No centro dela, nos movemos com segurança; já menos seguros estaremos se caminharmos para as margens. Se chegarmos ao seu extremo, corremos o risco de cair fora dela. O centro da plataforma corresponde àquela linguagem cujas regras são claras: é o linguajar do cotidiano e das ciências. Indo para a periferia, a linguagem deixa a clareza do centro e assume o falar metafórico, analógico e até paradoxal, mas ainda continua submetido a regras, mesmo que chegue à extrema fronteira. Se ultrapassá-la, cessam as regras e caímos no falar sem sentido (grifo original, QUEIROZ, 2006, p. 18).

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Na maioria das vezes, ela permanece dentro dos limites. Mas o que caracteriza como religioso o comportamento lingüístico é o fato de viajar pelas fronteiras, expressando-se por meio de paradoxos, do balbuciar palavras, do silêncio. As pessoas religiosas usam metáforas, parábolas e outros modos indiretos de dizer o que entendem [...]. Falam da impossibilidade de conhecer o Deus no qual acreditam, [...] dizem que a razão não conhece as razões do coração, ou que a maior sabedoria do homem pode ser o silêncio. Admitem que a fé se aproxima do não-sentido e que suas palavras podem fracassar; muitas vezes elas são as mais ambíguas porque o crente é levado a estendê-las até o extremo limite da área na qual operam as suas regras e também porque quem tem fé sempre quer dizer sobre ela tudo o que for possível (QUEIROZ, 2006, p. 19)

Não obstante as críticas aqui elencadas, trataremos o sagrado como o elemento inalienável da religião. Reconhecemos que tal afirmação constitui-se um risco à margem da plataforma, ou mesmo um lançar-se dela rumo ao “abismo do Mistério”, amparado apenas por uma rede construída de palavras e símbolos (ALVES, 1984, p. 5). Seria este salto sem sentido? Acreditamos que não.

1.3 O SAGRADO

A época em que vivemos, apesar de todo o progresso realizado pela ciência em seus diversos campos de atuação, é plena de manifestações da religiosidade humana. Diferente do que se pensou a partir do iluminismo e mais com o positivismo, o desenvolvimento científico não extirpou a presença do sagrado das culturas e experiências humanas.

A secularização, assunto que detalharemos mais adiante, não representa a “falência do religioso, mas a crise de gestão institucional do sagrado” (MARTELLI, 1995, p. 369). O sagrado é inexpugnável; consiste no elemento inalienável da religião e isso, graças a sua capacidade de manifestar-se ambígua e paradoxalmente, sob múltiplas formas, mesmo no coração das sociedades altamente científicas e industrializadas. Quanto mais se racionaliza uma sociedade, supondo com isso, suprimir a necessidade do sagrado, tanto mais “aumenta a fome, por assim dizer, do supramundano e do invisível” (MARTELLI, 1995, p. 369) que pode ser averiguável tanto na circunscrição da religião quanto fora dela, por exemplo, na releitura da experiência religiosa feita pelos movimentos neopentecostais e nas múltiplas manifestações do sagrado revestidas pela linguagem econômica, respectivamente.

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Na linguagem de Eliade [o sagrado] desponta nas hierofanias e logo se transforma em discurso produzido pelo sujeito da experiência religiosa. Como não pode deixar de ser, o discurso que narra a hierofania ou irrupção do sagrado é já ato segundo da experiência religiosa, embora ato primeiro na efervescência que provoca. Mas, neste ponto já se antepara um primeiro passo da dominação do sagrado pelo sujeito da experiência, ficando a parte não dominada como a reserva de mistério que dá caráter ao tremendum, ao absolutamente outro (MENDONÇA, 2006, p [?]).

Seguiremos a perspectiva fenomenológica dos dois autores citados por Mendonça para construirmos os contornos do conceito de sagrado que permeará este trabalho.

1.3.1 RUDOLF OTTO: O SAGRADO COMO MYSTERIUM TREMENDUM

O teólogo e historiador alemão Rudolf Otto (1869-1937), em sua célebre obra, O Sagrado (1917), oferece-nos um modelo interessantíssimo de análise fenomenológica da experiência religiosa, até hoje insuperado em alguns aspectos.

Otto afirma que, embora o sagrado possa ser encontrado em outros domínios que não o da religião, ele sempre provém desta. O sagrado é particular à religião e como tal resiste a toda tentativa de conceituação. O sagrado comporta algo de inefável.

Tendo em vista que o termo sagrado – ou santo como querem alguns – é utilizado para designar outras realidades que estão além da esfera religiosa; e que Rudolf Otto quer se referir ao sagrado abstraindo o seu caráter ético, moral e racional, ele cria um outro termo para se referir ao sagrado enquanto realidade irredutível de toda e qualquer religião, a saber, numinoso (do latim numem, que significa divindade).

O numinoso, como algo exterior ao indivíduo, não pode ser explicado, tem que ser experimentado e observado a partir do que provoca no ser humano, isto é, um sentimento de dependência que corresponde ao aniquilamento da criatura ante a grandeza do criador, ao “sentimento da criatura que se abisma no seu próprio nada e desaparece perante o que está acima de toda a criatura” (OTTO, 2005, p. 19).

A manifestação do numinoso é uma realidade absolutamente diferente das realidades que nos são comuns, das realidades naturais. O acesso é sempre indireto, dá-se por analogia. A experiência numinosa é sempre mediada pela linguagem simbólica que, embora incapaz de dar conta da totalidade daquela experiência, é o caminho que mais nos aproxima dela. Consciente disso, Otto exprime o numinoso com uma expressão composta de dois elementos, “mysterium tremendum, o mistério que faz tremer” (OTTO, 2005, p. 22).

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tosca apresenta-se como o terror demoníaco, mas na Bíblia está presente como a cólera de Yaweh9. Essa cólera divina, uma vez racionalizada no discurso dos profetas, está na base dos aspectos morais do que se denominou justiça divina na religião de Israel (OTTO, 2005, p. 141). A cólera divina não é reação punitiva de Deus a uma transgressão humana. Ela é uma espécie de força misteriosa e oculta, arbitrária e incalculável que, como energia elétrica acumulada é descarregada sobre quem dela se aproxima, manifestando assim o caráter terrificante do numinoso. Nas palavras do próprio Otto, “na cólera de Deus, vibra e brilha sempre um elemento não-racional que lhe dá um caráter assustador que o homem natural não pode sentir”. O estado de consciência chamado temor e tremor diante de Deus é “um estado numinoso em que o homem sente a impressão do tremendum” (OTTO, 2005, p. 29).

Majestas, a absoluta superioridade do poder, é apresentada como outro atributo do numinoso que está presente em sua manifestação como tremendum. Ao elemento tremendum que pode ser resumidamente como “inacessibilidade absoluta”, a majestas acrescenta “poder, força e preponderância absoluta”.

Na experiência mística há sempre o desejo de unir-se e dissolver-se na totalidade majestosa do numinoso, o que anularia o tremendum enquanto inacessibilidade, mas não o majestas, porque é

precisamente com este superpoder absoluto, com a majestas do numinoso que se relaciona o sentimento de estado de criatura. É sua sombra e reflexo subjetivo. Em contraste com o poder que pressentimos fora de nós, concretiza-se enquanto sentimento do nosso próprio apagamento, do nosso aniquilamento, consciência de ser apenas pó e cinza, de ser somente nada, (OTTO, 2005, p. 30),

ou seja, existencialmente não faria sentido falar no tremendum se ele não pudesse se manifestar como um poder captado subjetivamente.

Em conjunto o tremendum e a majestas implicam um terceiro elemento, a energia, denominada orgê. A esta energia agrega-se a paixão, o movimento, a excitação e a vitalidade; o que crê sente-se “invadido por uma energia transbordante que pode levá-lo ao êxtase individual ou a êxtases de efervescência coletiva” (MARTELLI, 1995, p. 141). Segundo Rudolf Otto

encontramos estes traços, essencialmente idênticos, desde os graus do demonismo até à idéia do Deus vivo. Formam, no numem, o elemento cuja experiência põe a alma humana em atividade, excita o zelo, provoca a tensão e a energia prodigiosas que o homem experimenta no ascetismo, quer na luta contra o mundo e a carne, quer nos atos de vida heróica em que a excitação tem lugar (OTTO, 2005, p. 34).

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Se o caráter terrificante do tremendum e poderoso da majestas provocam o sentimento de esfacelamento, de aniquilamento diante do numinoso, a orgê, por sua vez, mobiliza, motiva e preenche o que crê, de tal maneira, que chega a consumi-lo. A orgê anima, porém esmaga; arrebata, mas também, queima e devora.

Analisado o aspecto tremendum do numinoso, passemos ao mysterium, também composto. São três os seus elementos: o totalmente outro, o fascinans e o augustus. Para Otto, o mysterium, de onde nos vem mistério, não deve ser entendido no sentido fraco do termo, como algo estranho ou inexplicável, como aquilo que não nos é familiar. O mysterium é o “totalmente outro”, que

não é inacessível e inconcebível apenas porque o meu conhecimento em relação a este objeto tem limites determinados e inultrapassáveis, mas porque me debato [...] com uma realidade que, por sua natureza e essência, é incomensurável e perante a qual recuo, tomado de estupefação (OTTO, 2005, p. 40s).

Esse espanto que é ao mesmo tempo frustração nascida da tentativa de captar o que nos escapa, experimentado na relação com o numinoso, é afirmado por Agostinho em suas Confissões: “que luz é esta que me ilumina de quando em quando e me fere o coração, sem o lesar? Horrorizo-me e inflamo-me: horrorizo-me enquanto sou diferente dela, inflamo-me enquanto sou semelhante a ela” (1988, p. 274).

Se por um lado há no tremendum, representado pela majestas, algo de repulsivo, há por outro, algo que fascina e atrai,o numinoso é mysterium fascinans.

A criatura que, perante ele treme, se humilha e perde a coragem, experimenta ao mesmo tempo o impulso de se voltar para ele e até de dele se apropriar de qualquer maneira. O mistério não é para ela só o espantoso, é também o maravilhoso. Ao lado deste elemento perturbador aparece algo que seduz, arrasta, arrebata estranhamente, que cresce em intensidade até produzir o delírio e o inebriamento; é o elemento dionisíaco da ação do numen. Chamamos-lhe o fascinante (OTTO, 2005, p. 50).

Na experiência religiosa, portanto, a paz e o sossego interior nascem do intenso conflito que se estabelece entre o desejo de fugir e de se aproximar, entre o sentimento de aniquilamento e maravilha diante do numinoso.

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(1996, p. 13). Tal descoberta pode causar desespero, “terror demoníaco” e o desejo insano de possuir o numinoso ou do suicídio.

Diferentemente, do fascinas que tem caráter subjetivo, o augustus é a base objetiva dos valores éticos e morais; por ele, o ser humano que tem uma experiência numinosa se obriga voluntariamente. Prende-se por vontade. Dessa forma, segundo Otto, a religião pode prescindir de toda e qualquer esquematização moral, porque a obediência e o serviço não se baseiam mais na coerção por parte de um poder superior, mas no respeito que nasce do coração de quem está diante do mais santo dos valores (OTTO, 2005, p. 78).

Feitas essas considerações, devemos agora nos perguntar: até que ponto as categorias elaboradas por Rudolf Otto podem nos auxiliar a compreender a forma como os protestantes, por ocasião da Reforma, constroem seu discurso sobre o sagrado?

A questão se reveste de relevância se considerarmos que o teólogo luterano Rudolf Otto busca em Lutero o tom místico e não-racional como critério de análise da experiência religiosa. Isso porque em Martinho Lutero o conceito de Deus não é teórico, doutrinário, não pode ser apreendido racionalmente; é antes, “o elemento existencial de que toda pessoa tem em seu viver concreto algum valor fundamental pelo qual se norteia, algum alvo que persegue, algum desejo de que se alimente” (ALTMANN, 1994, p. 46). Não tardaremos em aprofundar este assunto.

1.3.2 MIRCEA ELIADE: O SAGRADO COMO MODALIDADE DE SER NO “MUNDO” Diferentemente de Rodulf Otto que analisa o sagrado a partir de uma perspectiva teológica, o romeno Mircea Eliade (1907-1986), , propõe-se a uma análise sob o ponto de vista histórico. Ambos definem o sagrado pelo viés negativo. Se em Otto, o sagrado opõe-se ao racional; em Eliade, ele opõe-se ao profano. O próprio Mircea Eliade reconhece esta diferença de perspectiva e pontua que a perspectiva por ele adotada é mais abrangente.

[Em relação a Rudolf Otto] situamo-nos numa outra perspectiva. Propomo-nos apresentar o fenômeno do sagrado em toda a sua complexidade, e não apenas no que ele comporta de irracional. Não é a relação entre os elementos não-racional e racional da religião que nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalidade. Ora, a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano (ELIADE, 2001, 16).

Da vasta obra de Mircea Eliade destacamos o seu Tratado de história das religiões (1949) e o opúsculo O sagrado e o profano (1957)10, por serem consideradas as principais do

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ponto de vista sistemático. Para o nosso propósito, entretanto, o de perceber os contornos do conceito de sagrado, seguiremos suas idéias expostas em O sagrado e o profano.

Um ponto recorrente em sua obra é a insistência na complexidade e totalidade da experiência do sagrado. O homem é o homo religiosus, que ao contrário do homem secularizado, é capaz de perceber a manifestação do sagrado que sempre se revela como algo absolutamente diferente do profano. A essa manifestação Eliade dá o nome de hierofania11 (ELIADE, 2005, p. 17).

Qualquer coisa pode ser canal de manifestação do sagrado: animais, templos, pedras, árvores, etc. e como tais dignas de veneração, entretanto,

não se trata de veneração da pedra como pedra, de culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado ((ELIADE, 2005, p. 18).

Assim como em Rudolf Otto, para quem o numinoso, ao se manifestar, impõe-se como algo absolutamente paradoxal, para Mircea Eliade, a hierofania também é marcada por um caráter paradoxal, isto é, qualquer coisa que sirva à manifestação do sagrado torna-se outra coisa, sem deixar de ser ela mesma. Tal transmutação se dá nos olhos do observador que, sendo alguém tocado pela experiência religiosa, sendo homo religiosus, concebe a natureza com um todo, o Cosmo na sua totalidade, como potencialmente hierofânico (ELIADE, 2005, p. 18).

O homem das sociedades arcaicas estabelece-se e vive, geográfica e temporalmente, a partir do sagrado e/ou de objetos consagrados, porquanto para ele o sagrado equivale ao poder de ser, à realidade por excelência (ELIADE, 2005, p. 18).

Na sociedade moderna, absolutamente desprovida dessa sacralidade promordial, o ser humano não-religioso ao olhar para a natureza, a casa, o trabalho e as coisas em geral, sempre o faz a partir de uma visão utilitária. Um ato fisiológico, como a alimentação, por exemplo, nada tem de sacramental, é um ato puramente fisiológico.

Assim, para Eliade, tipologicamente falando, sagrado e profano são duas modalidades de ser no mundo, são duas formas pelas quais, ao longo da história, o ser humano assume sua

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existência. (ELIADE, 2005, p. 20). Há uma existência sagrada, assumida pelo homem arcaico e uma existência profana, protagonizada pelo homem moderno12.

Para o homo religiosus há uma manifestação primordial do sagrado que confere ontos, torna concreto o mundo. Ao manifestar-se assim, o sagrado provoca uma ruptura no espaço. O espaço deixa de ser uma homogeneidade amorfa e, na imensidão caótica do espaço profano, passa a existir como porções de espaço sagradas, reais; portanto, qualitativamente diferentes de outras (ELIADE, 2005, p. 25). Além de provocar ruptura no espaço, a hierofania marca o centro do mundo, o ponto referencial a partir do qual a vida se organiza, a partir do qual é possível ser, uma vez que o espaço profano, identificado pelo caos, representa o não-ser absoluto (ELIADE, 2005, p. 60).

Já enunciamos que um objeto é sagrado para quem o vê como tal. Agora podemos acrescentar que nas sociedades arcaicas o ser humano pode, por meio do ritual, consagrar uma porção do espaço, um território ou santuário, por exemplo, à medida que a ação ritual reproduza a obra dos deuses (ELIADE, 2005, p. 32).13 O ritual possibilita também que se transite ileso do espaço sagrado ao profano e vice-versa.

A não-homogeneidade atinge também o tempo. Para o ser humano religioso o “tempo não é nem homogêneo e nem contínuo”, existe um tempo sagrado em que têm lugar as festas religiosas e um tempo profano no qual se inscrevem as atividades cotidianas, que não necessariamente deixam de ser sagradas14. Aqui também o rito desempenha o papel de permitir a passagem, em segurança, de um tempo ao outro (ELIADE, 2005, p. 63).

Ao criarem o mundo, os deuses criaram também o tempo sagrado. Um tempo qualitativamente diferente do tempo profano. O tempo sagrado não flui, não se exaure, é sempre o mesmo, é essencialmente reversível. Toda festa religiosa constitui-se uma atualização desse tempo sagrado. O ser humano das sociedades arcaicas eterniza o presente mítico por meio da linguagem ritual. Portanto “participar de uma festa religiosa implica a saída da duração temporal ordinária e a reintegração no tempo mítico reatualizado pela própria festa” (ELIADE, 2005, p. 64).

Como não há nenhuma tipologia pura, Eliade observa que não possível encontrar uma existência profana em estado puro. “Seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma existência profana não consegue abolir

12 Sobre a diferença de concepção do sagrado na existência arcaica e moderna confira: ELIADE, Mircea. Mito e

realidade. São Paulo-SP: Editora Perspectiva, 2006, p.16s e ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo-SP: Martins Fontes, 2001, p. 25ss.

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completamente o comportamento religioso” (ELIADE, 2005, p. 27), da mesma forma que o tempo, o espaço e a noção de sagrado não são absolutamente claros e/ou distintos para o homem religioso moderno15.

Embora esta afirmação demande maior embasamento – a que nos propomos mais adiante – entendemos que sagrado e o profano não podem ser concebidos coerentemente, senão como algo que se interpenetra e se interdegrada.

Levando em conta a idéias de Mircea Eliade e a redução da linguagem simbólica na Reforma Protestante, devemos nos perguntar: Como os protestantes constroem sua forma de ser e estar no mundo? Até que ponto, o tempo e o espaço têm caráter sagrado para os protestantes de ontem e de hoje?

1.4 A LINGUAGEM

A linguagem está presente em todo tempo e em toda a parte impregnando os pensamentos e os sonhos humanos e se constituindo um produto e um elemento da atividade prática e das relações entre os seres humanos e destes com o seu mundo e com o sagrado.

“A linguagem é um fenômeno extremamente complexo, que pode ser estudado a partir de múltiplos pontos de vista, pois pertence a diferentes domínios. É, ao mesmo tempo, individual e social, física, fisiológica e psíquica” (FIORIN, 1995, p. 8). A análise que se segue visa, única e tão somente, ao caráter instrumental da linguagem, isto é, demonstraremos que a linguagem possibilita que o ser humano construa um mundo que lhe seja significativo; que conteúdos, e mais do que isso, significados ou interpretações sejam transferidos às gerações seguintes, com a chancela de verdades absolutas; e, por fim, por meio de sua face simbólica, permite que o ser humano transcenda sua condição e ordem social em que se insere e acesse e/ou experimente o sagrado.

1.4.1 LINGUAGEM E COSMOVISÃO

O biólogo Johannes von Uexkull afirma que o homem ocupa uma posição diferenciada no reino animal. Diferentemente dos animais, o ser humano não possui um ambiente específico para sua espécie, estruturado a partir de sua organização instintiva ou biológica. “Não existe um mundo do homem no sentido de que se pode falar de um mundo do cachorro ou de um mundo do cavalo” (In: BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 69). Ainda que, um e

14 Para o ser humano das sociedades arcaicas suas atividades sempre imitam as atividades dos deuses, portanto

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outro sejam unidos por uma mesma necessidade, a sobrevivência, os mecanismos que desenvolvem para tal fim, os colocam em pólos definitivamente irreconciliáveis, porque cada organismo experimenta o mundo de uma forma específica.

A experiência de sobreviver “é determinada pela forma anatômica de cada espécie” (ALVES, 1984, p. 23). Feuerbach comenta que “se as plantas tivessem olhos e capacidade para sentir gosto e para julgar, cada uma diria que a sua flor é a mais linda de todas”16, ou seja, “o mundo é a natureza organizada do ponto de vista das necessidades de uma espécie, para que ela seja uma continuação natural do corpo”. A título de exemplificação pode-se afirmar que “para o urubu, o cheiro de carniça em decomposição que provoca vômitos no homem é algo que traz água na boca” (ALVES, 1984, p. 24), isto é, a relação do animal com o mundo que o circunda decorre de um ponto fundamental, viver.

Podemos afirmar, então, que o organismo experimenta o mundo que o envolve de forma seletiva. Sua percepção da realidade está subordinada às relações vitais que se devem estabelecer entre o corpo e o mundo para continuar sobrevivendo. Dessa forma, “vida é relação” e a decorrência é que o mundo nunca é por ele objetivado, mas sempre “mundo-em-relação-à-vida”; o contrário também é verdadeiro, o organismo percebe a si mesmo como “vida-em-relação-ao-mundo” onde o que importa são as condições de manutenção da vida (ALVES, 1984, p. 26).

O ser humano não é como o organismo animal em sua imediatez biológica. O animal é o seu corpo, enquanto que o ser humano, além de ser, tem um corpo (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 74). Tal fato possibilita que ele interaja com o seu ambiente a partir de uma “atitude valorativa” (ALVES, 1984, p. 24), isto é, embora sobreviver seja uma necessidade, para o ser humano, em sua relação com o meio, o que vem em primeiro plano é a pergunta acerca do sentido da vida, porquanto esta é a questão fundamental e anterior à sobrevivência. Ele se pergunta primeiramente não pela vida-em-relação-com-o-mundo, mas pelo significado-da-vida-em-relação-com-o-mundo.

“O organismo humano não possui os meios biológicos necessários para dar estabilidade à conduta humana” (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 75), o que implica desajuste, por isso o homem produz cultura – a base de sua adaptação –, conseqüentemente, as formas de tornar-se humano são tão múltiplas quanto as formas de cultura existentes.

15 Sobre esse tópico vale a pena conferir a análise de: ABUMANSSUR, Edin Sued. As moradas de Deus:

arquitetura de Igrejas Protestantes e Pentecostais. São Paulo-SP: Editora Novo Século, 2004.

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Não é demasiado dizer “que o homem se produz a si mesmo” (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 75), mas a estabilidade de que necessita desloca-se do corpo para a ordem social que constrói. Ante a atividade humana, o corpo se cala.

Contudo, como afirma Ernst Cassirer o “homem não pode se defrontar com a realidade sem intermediários, ele não pode vê-la face a face” (In: ALVES, [198-], p. 15), a realidade se nos apresenta vestida pela linguagem, ou seja, é objetivada por ela.

A realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes de minha entrada na cena. A linguagem usada na vida cotidiana fornece-me continuamente as necessárias objetivações e determina a ordem em que estas adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha significado para mim [...] Desta maneira a linguagem marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significação (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 38)

Importa acrescentar que, embora a linguagem seja capaz de trazer a lume a realidade objetiva e seja também capaz de indicar estados individuais subjetivos, a sua pertinência, pelo menos para o nosso estudo, é a sua capacidade potencial de revelar sentido a um indivíduo ou grupo em sua relação com o tempo e o espaço. Dizendo de outra forma, linguagem é cosmovisão. Aliás, como observa Humboldt, “a diferença entre linguagens não é uma diferença de sons ou sinais, mas antes de cosmovisões” (In: ALVES, 1984, p. 21). Quando as pessoas falam e entendem uma linguagem comum, isto indica que partilham valores comuns, participam de uma mesma cosmovisão, isto é, o sentido da vida é construído pela comunidade de que participam. Parafraseando Wittgenstein, “os limites de sua linguagem denotam os limites de seu mundo” (In: ALVES, [198-], p. 13).

Afirmamos anteriormente que a interação do ser humano com o seu mundo se dá a partir de uma atitude valorativa e que isto significa ser tomado, antes de tudo, pela inquietação quanto ao sentido da vida, quanto ao ultimate concern de Tillich. Além disso, podemos afirmar agora que a atitude valorativa significa que o sentido encontrado na sua relação com o mundo e objetivado pela linguagem foi definido pela comunidade, pela cosmovisão de que se é parte. Portanto, é sempre uma interpretação.

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É compreensível. Se a minha interpretação do mundo, interpretação que unifica a minha personalidade e o meu mundo num todo significativo, mostra-se adequada para organizar meu comportamento e para prever o comportamento futuro do mundo, nada há que me force a duvidar. A personalidade se sente segura porque nessa situação se confirma a sua habilidade para prever e predizer acontecimentos no ambiente, para compreender o mundo em que vive e assim para antecipar eventos e evitar a necessidade de ajustamentos bruscos (ALVES, 2005, p. 70).

Pode-se estabelecer, entretanto, uma “crise de plausibilidade”, um colapso nos esquemas interpretativos que sustentam a minha cosmovisão, por conseguinte na minha relação com o mundo. Inexoravelmente, por ser “viva” a linguagem funcional em um momento pode não sê-lo no momento seguinte; conseqüentemente há desintegração do sentido que corresponde à dissolução da unidade homem-mundo (ALVES, 2005, p. 71). Para evitar esse “mal” e manter a cosmovisão e o status quo decorrente, a tendência individual e comunitária é a do enrijecimento da linguagem, supondo a cristalização da verdade.

1.4.2 LINGUAGEM E LEGITIMAÇÃO

Até aqui vimos que a toda comunidade corresponde uma cosmovisão interpretada, objetivada e partilhada por todos os seus membros a partir da linguagem. Além disso, a linguagem possibilita a manutenção e desenvolvimento da comunidade.

A linguagem objetiva as experiências partilhadas e torna-as acessíveis a todos dentro da comunidade lingüística, passando a ser assim a base e o instrumento do acervo coletivo do conhecimento. Ainda mais, a linguagem fornece os meios para a objetivação de novas experiências, permitindo que sejam incorporadas ao estoque já existente do conhecimento, e é o meio mais importante pelo qual as sedimentações objetivadas são transmitidas na tradição da coletividade em questão (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 96)

Todas as conquistas humanas no decurso da história estão de alguma forma relacionadas à linguagem, visto que ela, além de transmitir, é guardiã do conhecimento humano. Sem a linguagem não haveria cultura, uma vez que os conhecimentos de indivíduos e civilizações não seriam transmitidos e/ou guardados e assim, conseqüentemente, desapareceriam. Martin Heidegger assevera que a linguagem é a guardiã do ser; para ele a “[...] linguagem é o que faculta o homem a ser o ser vivo que ele é enquanto homem” (HEIDEGGER, 2003, p. 7).

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outra geração? Diríamos que a resposta a estas questões, ainda que em parte, envolve a discussão de dois processos que se complementam, a construção e veiculação de um discurso oficial, isto é, que represente a cosmovisão da comunidade e a construção de mecanismos legitimadores de ordem simbólica. É do detalhamento destes processos que nos ocuparemos agora.

Língua e linguagem, embora possam significar coisas diferentes são usadas aqui como sinônimos. Linguagem pode ser definida, pelo menos para o nosso propósito, com uma

rede de relações que se estabelece entre um conjunto de elementos lingüísticos. Essas relações dão um determinado valor a cada componente do sistema e permitem selecionar o elemento apropriado para figurar em cada ponto da cadeia da fala e combinar adequadamente esses elementos entre si (FIORIN, 1995, p. 11).

Dessa forma, a linguagem é um sistema, e como tal, social, no sentido de que é comum aos membros de uma dada comunidade. Esse sistema relaciona-se com a fala e com o discurso. Ele tem a sua concretude nos atos da fala, enquanto se presta a emoldurar um discurso, ou seja, nenhum discurso é possível sem que se sigam padrões lingüísticos.

Há que se distinguir fala de discurso. A fala decorre do discurso, não há fala sem discurso. Quem fala sempre se reporta ou é movido por um discurso. Provisoriamente podemos definir o discurso como sendo “combinações de elementos lingüísticos (frases ou conjuntos constituídos de muitas frases) usadas pelos falantes com o propósito de exprimir seus pensamentos, de falar do mundo exterior ou de seu mundo interior, de agir sobre o mundo” (FIORIN, 1995, p. 11), enquanto que a fala consiste na “exteriorização psicofísico-fisiológica do discurso. Ela é rigorosamente individual, pois é sempre um eu quem toma a palavra e realiza o ato de exteriorizar o discurso” (FIORIN, 1995, p. 11). A fala não é social, não está sujeita às contingências da ordem social. A fala é um ato orgânico que se articula em função do discurso que instrumentaliza. O discurso, ao contrário, é social; e assim como “a frase, não é um amontoado de palavras, mas é uma cadeia construída segundo certas regras, o discurso não é um amontoado de frases. O discurso tem uma estrutura”(FIORIN, 1995, p. 17) que sempre depende dos fins pretendidos.

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ponto de vista estrutural17. Assim é porque em cada discurso, há um nível superficial e outro profundo. E de igual modo, em cada comunidade há “um nível de essência e um de aparência [...] ou um profundo e um fenomênico” (FIORIN, 1995, p.26). A dimensão visível, imediata, fenomênica da realidade tem como substrato o nível superficial do discurso.

A realidade se nos apresenta imediatamente no nível fenomênico, com o risco constante de ser ele tomado como a totalidade da realidade (FIORIN, 1995, p. 26). Por exemplo,

na sociedade capitalista, a partir do nível aparente, constroem-se os conceitos de individualidade, de liberdade como algo individual. [A desigualdade entre os homens é algo natural], uma vez que uns são mais inteligentes ou mais espertos que os outros. Daí se deduz que as desigualdades sociais são naturais. Outras idéias pias, presas às formas fenomênicas da realidade, vão construindo-se: a riqueza é fruto do trabalho (só se omite que é fruto do trabalho dos outros); pobres e ricos vão sempre existir; a pobreza é uma bênção, pois a riqueza só traz preocupações (FIORIN, 1995, p. 28).

Sendo assim, pode ser a partir deste e não do nível profundo da realidade que se sustenta a cosmovisão de uma dada comunidade. É preciso avançar um pouco mais nessa reflexão e afirmar que sendo uma forma fenomênica da realidade, as formações ideológicas18 escondem a essência da ordem social. O que objetivam é uma inversão da essência, ou seja, uma inversão das relações sociais mais profundas, portanto apresentam a realidade de forma invertida19, ou seja, equivale dizer que toda apreensão fenomênica da realidade corresponde a

17 Não estamos desconsiderando o fato de que há um ouvinte e um falante no processo de externalização e

internalização do discurso, mas não é nosso propósito estabelecer tais pormenores, e sim apenas demonstrar como um discurso funciona no processo de sustentação da cosmovisão de uma dada comunidade.

18 De acordo com Fiorim, as formações ideológicas podem ser definidas como o “conjunto de idéias, [e]

representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele mantém com os outros homens” (1995, p. 28),

19 Sobre a temática da inversão da realidade podemos citar, como exemplo, a descrição que Marx faz do salário

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uma falsa consciência (FIORIN, 1995, p. 29).

Como não existem idéias fora dos quadros da linguagem, [pode-se afirmar que] a visão de mundo não existe desvinculada da linguagem. Por isso, a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada visão de mundo. Essa formação discursiva é ensinada a cada um dos membros de uma sociedade ao longo do processo de aprendizagem lingüística. É com essa formação discursiva assimilada que o homem constrói seus discursos, que ele reage lingüisticamente aos acontecimentos. Por isso, o discurso é mais o lugar da reprodução que o da criação. Assim como uma formação ideológica impõe o que pensar, uma formação discursiva determina o que dizer (FIORIN, 1995, p. 32).

Paul Ricoeur (1913-2005), como se sabe, importante filósofo francês, porque visa a audácia e à capacidade de “cruzar Marx, sem segui-lo nem tão pouco combatê-lo” (1990, p. 64) afirma que precisamos evitar algumas armadilhas quando o que está em discussão é o conceito de ideologia. A primeira armadilha “consiste em aceitarmos como evidente uma análise em termos de classes sociais”. Para contornarmos essa, diz, temos que atentar para uma segunda armadilha, que “consiste em definir, inicialmente, a ideologia por sua função de justificação, não somente dos interesses de uma classe, mas de uma classe dominante” (grifo original, RICOEUR, p. 64). Ricoeur assevera a necessidade de escaparmos ao

fascínio exercido pelo problema da dominação, para considerarmos um problema mais amplo, o da integração social, de que a dominação é uma dimensão, e não a condição única e essencial. Ora, se tomamos como adquirido o fato de a ideologia ser uma função da dominação, é porque admitimos também, sem crítica, o de a ideologia ser um fenômeno essencialmente negativo, primo do erro e da mentira, irmão da ilusão (RICOEUR, 1990, p. 65).

A ideologia não pode ser vista como absolutamente negativa desde o início, portanto antes de chegar à função de inversão descrita por Marx, faz-se necessário considerar a função de integração e de dominação, sob a perspectiva de Max Weber, e não em termos da análise de classes e classe dominante, afirma Paul Ricoeur (RICOEUR, 1990, p. 65).

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Para argumentar a função de integração da ideologia, Ricoeur parte dos conceitos de ação social e de relação social, propostos por Max Weber. Entendendo ação social como comportamento significante para agentes individuais e, ao mesmo tempo, como comportamento individual orientado pelo comportamento do outro e, a relação social como uma espécie de estabilidade e previsibilidade de um dado sistema de significações, Ricoeur chega ao primeiro traço da ideologia definida como integração, a saber, a identidade do grupo. Neste caso, a ideologia liga-se “à necessidade, para um grupo social, de conferir-se uma imagem de si mesmo de representar-se” (1990, p. 68).

Toda comunidade histórica mantém uma relação primordial com o seu ato fundador, instaurador (Declaração Americana dos Direitos, a Revolução Francesa, a Revolução Russa, por exemplo) e, neste caso, pelo viés do mito, segundo Paul Ricoeur, o que mantém viva e atualiza a memória do evento primordial, conferindo com isso identidade à comunidade é justamente a ideologia. Nas palavras de Ricoeur, sua função “não é somente a de difundir a convicção para além do círculo dos pais fundadores, para convertê-la num credo de todo o grupo, mas também o de perpetuar sua energia inicial para além do período de efervescência” (RICOEUR,1990, p. 68).

O problema se coloca quando consideramos que é somente “numa interpretação que o modela retroativamente, mediante uma representação de si mesmo, que um ato de fundação pode ser retomado e reatualizado” (RICOEUR, 1990, p. 68). E, dessa forma, a ideologia só deixa de ser mobilizadora para ser justificadora, “ou antes, só continua sendo mobilizadora com a condição de ser justificadora” (RICOEUR, 1990, p. 68)

O segundo traço da ideologia, definida como integração, tem a ver com o seu dinamismo, ou seja, ela é para a práxis social tão motivadora quanto o é para a ação individual, isso porque o grupo que professa uma ideologia tende a demonstrar que ele tem razão de ser o que é. Em virtude disso, a ideologia não é só justificação; é projeto também, que “exprime-se no poder fundador de segundo grau que ela exerce com referência a empreendimentos, a instituições que dela recebem a crença no caráter justo e necessário da ação instituída” (RICOEUR, 1990, p. 69).

O terceiro traço diz respeito à forma pela qual a ideologia consegue manter tal dinamismo. Paul Ricoeur afirma que é possível compreender como o dinamismo é mantido, na medida em que se considera que “toda ideologia é simplificadora e esquematizadora” (RICOEUR, 1990, p. 69).

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Esta questão da simplificação e esquematização tratada como fenômeno ideológico será grande de importância para os desenvolvimentos posteriores desta pesquisa. Por ora, vejamos o que diz Ricoeur:

a capacidade de transformação só é preservada com a condição de que as idéias que veicula tornem-se opiniões, de que o pensamento perca rigor para aumentar sua eficácia, como se apenas a ideologia pudesse mediatizar não somente a memória dos atos fundadores, mas os próprios sistemas de pensamento. É dessa forma que tudo pode tornar-se ideológico: ética, religião, filosofia (RICOEUR, 1990, p. 69).

O que se quer dizer é que pensamento pode ser transformado em sistema de crença, por meio do qual uma comunidade ou grupo idealiza uma imagem de si mesma. E é “através de uma imagem idealizada que um grupo representa sua própria existência; e é essa imagem que, por contra-reação, reforça o código interpretativo” (RICOEUR, 1990, p. 69). Como fez nos dois traços anteriores, aqui também Ricoeur se esforça para minimizar o caráter negativo da ideologia ao afirmar que “esse esquematismo, essa idealização, essa retórica são o preço a ser pago pela eficácia social das idéias” (RICOEUR, 1990, p. 70).

O quarto traço “consiste no seguinte: o código interpretativo de uma ideologia é mais algo em que os homens habitam e pensam do que uma concepção que possam expressar” (grifos originais, RICOEUR, 1990, p. 70), ou seja, tudo que pensamos está, de alguma forma, carimbado pelo contexto em que vivemos. Isso faz da ideologia algo mais operatório que temático, isto é, “ela opera atrás de nós, mais do que a possuímos como um tema diante de nossos olhos. É a partir dela que pensamos, mais do que podemos pensar sobre ela”. É justamente esse caráter operatório, porém oculto, da ideologia que possibilita a inversão da posição do indivíduo na sociedade sem que ele se dê conta disso.

Referências

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