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1.4 A LINGUAGEM

1.4.3 LINGUAGEM E MEDIAÇÃO

1.4.3.4 A religião e a magia

Ao delinearmos os contornos dos temas magia e religião, duas são as questões das quais nos ocuparemos: primeiro, demonstrar que magia e religião, enquanto linguagem simbólica, são duas formas diferentes de experienciar o sagrado, e também que, no ocidente, a magia perdeu espaço para a religião cristã, principalmente a partir da Reforma Protestante.33

Primeiramente apontaremos a transmutação do significado do termo religião, bem como o processo de identificação deste com o cristianismo; a seguir, definiremos o que chamamos magia; depois, de forma elementar, situaremos a convivência de magia e religião no ocidente, sob a perspectiva da diferença e da oposição.

a) A religião

Tratamos anteriormente dos desenvolvimentos recentes do conceito de religião, mas é bom lembrar que este termo religião, definido de tantas maneiras, algumas vezes até antagônicas34, ainda hoje, está ausente em muitas línguas e dialetos, justamente porque em

ritual que se ligava ao mito anterior. No segundo caso, mito vem para especificar o sentido de ritual dentre de uma dada cosmovisão (Cf. CROATTO, 2004, p. 341 e ELIADE, 2000, p. 42),

33 Quando tratarmos do tema da “redução protestante”, isto é, a redução da linguagem simbólica no

protestantismo, ficará evidente as razões pelas quais a magia foi praticamente expurgada desse segmento da religião cristã.

34

Lembremos, por exemplo, a definição de Feuerbach: “Um desejo do homem que se manifesta na oração, no sacrifício e na fé”; ou a de Tylor: “Uma crença em seres espirituais”, definição que mais tarde foi corrigida por

tais culturas não há nada que possa ser classificado como profano, como afirma Meslin (1992, 23). Isso confronta com o pensamento de Durkheim (1989, p. 68) e Eliade (2002, p. 7), segundo os quais toda crença religiosa, seja ela simples ou complexa, assim como toda definição do fenômeno religioso, têm um núcleo comum, a oposição e/ou separação entre sagrado e profano. Perspectiva que adotamos neste trabalho.

Feita esta observação inicial, voltemo-nos para a etimologia e história do termo religião, bem como à mutação de sentido que sofreu sobre o impacto do cristianismo. Embora os gregos tenham iniciado certa crítica à religião, não fazem uso do termo “religião”. É entre os romanos que o encontraremos (HOUTART, 2003, p. 17), porém com um significado muito diferente do atual. Religião do latim religio, entre os romanos, “designava a realização escrupulosa das observâncias cultuais, no respeito e na piedade devidos aos poderes superiores. Uma tal observância se fundamentava numa tradição” (MESLIN, 1992, 24). Cícero35 insiste, no De natura deorum, que “religio é o culto devido aos deuses segundo o costume dos ancestrais e que a melhor religião é a mais antiga, porque está mais próxima dos deuses” (Idem, p. 24). A religio, assim entendida, tem a ver com um conjunto de crenças e práticas com as quais uma coletividade e/ou sociedade honra os seus deuses. É essa concepção de religião que possibilitou aos judeus a liberdade para praticar o seu culto monoteísta a Yaweh nos limites do Império Romano. Do ponto de vista romano, era uma

religio licita, ainda que abarcasse uma concepção de culto e divindade muito diferente, a

ponto de Tácito afirmar “tudo que é sagrado para nós é profano para eles; em contrapartida, eles permitem entre si tudo o que temos na conta de abominação” (In: MESLIN, 1992, p. 25). Pergunta-se, como isso possível? É possível quando o termo religião não é usado para especificar uma única crença e ou forma de culto, mas sim “um sistema de crenças e práticas enraizadas na cultura particular de um povo” (MESLIN, 1992, p. 25). É justamente este conceito que Émile Durkheim recuperará muitos séculos depois, ao afirmar que a religião “é um sistema solidário de crenças seguintes e de práticas relativas a coisas sagradas” [...] (1989, p. 79).

Frazer: “Uma propiciação e uma conciliação dos poderes superiores ao homem que este julga capazes de agir diretamente sobre a natureza e o curso da vida humana”. Nem sempre, entretanto, a definição de religião foi positiva, basta lembrarmos que Marx a definiu como “o suspiro da criatura alienada”; e Freud como “a ilusão neurótica” (MESLIN, 1992, 24).

35 Cícero foi um pensador romano de grande destaque não só pela influência que exerceu entre os Romanos e a

cultura romana, mas também pelas obras que escreveu. De Natura Deorum (Da Natureza dos Deuses): livro escrito em 45 a.C., após a morte do filho de Cícero. É neste livro que o poeta pensador expõe as doutrinas filosóficas da época.

Se nos seus primórdios o cristianismo é apenas uma seita do judaísmo, portanto uma

religio entre outras – ainda que os primeiros cristãos não se concebessem assim, não havia

condições históricas e sociais de se definirem de outra forma. Quando se expande pelo Império Romano e entra em contato com diversas culturas e classes sociais, o cristianismo, sob a chancela do estado constantiniano, sentiu a necessidade e/ou vislumbrou a possibilidade de definir-se não mais como uma religio entre outras, “mas como a única religião verdadeira” (MESLIN, 1992, 25).

A essa mudança histórica coube uma mudança semântico-etimológica da qual se encarregaram os apologistas36 Lactâncio e Tertuliano para quem o termo religião não vem de

relegere (dar uma atenção escrúpulos...) como afirmara Cícero, mas de religare (religar a, no

caso o homem a Deus, uma vez que o pecado rompeu tal ligação). “Assim, a religião não é mais o exercício escrupuloso de práticas tradicionais, mas o laço pessoal qeu liga o homem ao seu criador” (MESLIN, 1992, p. 26).

Essa viragem etimológica pode ter sua origem ligada ao próprio contexto em que surgiu a concepção anterior de religio, já que, segundo Marcel Mauss, em Roma “o termo se referia aos nós de palha que fixavam as vigas de uma ponte: o mestre da religião em Roma se chamava pontifex, o construtor de pontes” (In: HOUTART, 2003, p. 20).

Todavia o que deve estar claro é que, nos escritos dos Pais da Igreja, principalmente de Agostinho, “cujo pensamento sempre animará a teologia medieval e uma boa parte da Renascença, a palavra ‘religião’ tende a designar, no Ocidente, unicamente o cristianismo, única religião verdadeira, pois é o único laço entre o homem e Deus” (MESLIN, 1992, p. 26).

A quebra na unidade cristã, no século XVI, decorrente da Reforma Protestante, permitiu a emancipação do indivíduo com relação à religião. Iniciava-se a era da razão. E animado por ela o protestantismo se encarregaria de não só definir o lugar e valor do cristianismo em relação a outras religiões e a si mesmo, como também o “purgaria” de praticamente todo simbolismo cultivado durante toda Idade Média. Esse corte redutor do protestantismo será o assunto do próximo capítulo.

b) A magia

Sem perder de vista o viés da linguagem simbólica, concebemos a magia e a religião como duas formas de experienciar o sagrado. Mas vai aqui uma advertência: ainda que

36 Teólogos e filósofos antigos e medievais responsáveis por formular sistemas que defendiam a fé cristã dos

encontremos na magia, elementos popularmente identificados como pertencentes ao campo religioso, tais como ritos, crenças, dogmas, cerimônias, e até mesmo, identifiquemos que “os seres que o mago invoca, as forças que ele atualiza não apenas têm a mesma natureza das forças e dos seres aos quais se dirige a religião, como muitas vezes são em tudo idênticos” (DURKHEIM, 1989, p. 74), há que se clarificar que “magia não é religião. Não se acredita em magia do mesmo modo que se crê numa religião, não se pratica magia do mesmo modo que se segue uma religião” (PIERUCCI, 2001, p. 82).

Se a religião posterga, a magia concretiza. A magia é imediatista e, como tal, pode constituir-se uma via de popularização ou até de profanação37 da religião. Entretanto, mesmo quando não referida a religião, a magia será sempre mais popular que a religião – daí a maior hostilidade desta para com aquela, porque a

religião adia as recompensas para um futuro messiânico, quando não para o outro mundo. A magia, de sua parte, mais consciente dos limites de sua utilidade, sabe-se e pretende-se muito mais circunscrita nas soluções que pode oferecer aos transtornos e contratempos da vida humana [...] a magia deve servir para melhorar a vida ‘aqui e agora’, não no ‘outro mundo’; no futuro, só se for o imediato, jamais na vida eterna” (PIERUCCI, 2001, p. 83 e 102).

Essas considerações nos levam ao antropólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942) cujas idéias têm sido recuperadas com renovado interesse por cientistas sociais e/ou da religião preocupados em traçar o perfil atual e futuro da religiosidade no Brasil. Pierucci afirma que “a magia é essencialmente prática”; por causa disso, não se pode buscar uma “racionalidade teórica das crenças mágicas [porque] o conjunto extravagante e incoerente de crenças do magismo é domínio onde reina, absoluto, o irracional” (2001, p. 52 e 53).

Pierucci está alinhado com Malinowski que, em sua principal obra,38 afirma a tese de

que “a magia é uma prática que tem uma finalidade eminentemente prática” (In: PIERUCCI, 2001, p. 54). Segundo Malinowski, que elaborou seus estudos sobre a magia, a partir da vivência com os selvagens das Ilhas Trobriand, no Sul do Pacífico, nenhum primitivo recorre à magia quando conhece e/ou dispõe de meios racionais e técnicas adequadas para alcançar os objetivos inerentes às suas atividades cotidianas. Jamais a magia é praticada para fins ordinários; a magia é feita para viabilizar e objetivar o extraordinário. A título de exemplo, Malinowski nos informa também que entre os selvagens analisados, um agricultor não lança

37 “A magia põe uma espécie de prazer profissional em profanar as coisas santas; nos seus ritos, ela assume

posição oposta a das cerimônias religiosas” (DURKHEIM, 1989, p. 75)

38 MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Portugal: Edições 70, 1988, 280 páginas. Obra

mão da magia, enquanto recurso extraordinário – objetivado em um encantamento, reza ou rito – para realizar o que ele sabe ou o que é possível saber e realizar.

Comentando o pensamento de Malinowski, Pierucci expressa-se assim:

qualquer encantamento usado para um fim tecnicamente já assegurado acabaria por revelar-se uma prática supérflua, redundante, excessiva para os resultados práticos que racionalmente se esperam do bom manejo técnico dos instrumentos e da obediência às regras racionais da experiência, ou do saber tradicional [...] O selvagem, relata Malinowski, pratica magia porque acredita nela como alternativa eficaz a determinada incapacidade sua, experimentada em situações não-cotidianas de muita incerteza, imprevisibilidade e, portanto, tensão e ansiedade (2001, p. 55).

A atividade náutica pode ser tomada como um paradigma da forma como os nativos pensam e praticam a magia. De acordo com Malinowski, para nativos das Ilhas Trobriand,

navegar é o mais arriscado de todos os empreendimentos conhecidos do homem primitivo. Na fabricação de suas embarcações e no traçado de seus planos, o selvagem se vale da ciência. O esmero no trabalho e as tarefas inteligentemente organizadas, tanto na construção dos barcos quanto no próprio navegar, atestam a confiança que o selvagem deposita na ciência, sua submissão a ela. Entretanto, o vento adverso ou a falta total de vento, o mau tempo, as correntes marítimas e arrecifes podem muito bem frustrar seus melhores planos e suas mais cuidadosas precauções. Então ele tem que admitir que nem seu conhecimento nem seus mais esmerados esforços constituem garantia de sucesso. Algo de imprevisível de repente sobrevém e balda suas antecipações. [...] O indivíduo sente então que pode fazer algo para peitar aquele misterioso elemento de força a fim de ajudar e favorecer sua própria sorte (In: PIERUCCI, 2001, p. 56).

Mesmo reconhecendo que o pensamento de Malinowski acerca da magia foi e é passível de crítica,39 Pierucci afirma que “a explicação que Malinowski encontrou para o magismo representou importante descoberta empírica [a qual] não é relativa apenas aos povos tribais” (2001, p. 57). As descobertas contêm elementos com vocação atemporal e universal, disso é testemunha a não superação dos mesmos.

Será sempre assim; onde houver uma

defasagem entre invencível entre o que se deveria tecnicamente fazer numa situação determinada e o que de fato se sabe ou se consegue fazer. Quando se está [...] perante sério descompasso entre o controle real que se tem das forças da natureza e o controle que se acredita precisar naquele momento [ser humano de qualquer época, tempo ou lugar, sempre recorrerá] a uma ação simbólica substitutiva na tentativa de controlar acontecimentos que se mostram incontroláveis pelos meios técnicos à mão (PIERUCCI, 2001, p. 57 e 58).

39 Criticada, entre outros por: Ruth Benedict. Magic. In: Encyclopedia of the Social Sciences, vol. 10. New

É importante destacar ainda que embora a magia não possa ser concebida com uma racionalidade sistematizada e sim com um conjunto de práticas, podemos encontrar sob a roupagem de tais práticas um princípio geral, o princípio da simpatia. Segundo este princípio, há “relações de correspondência entre os reinos da natureza, conferindo regularidade e previsibilidade a essas relações” (PIERUCCI, 2001, p. 62). Na verdade, acredita-se que, embora os reinos da natureza sejam diferentes, os elementos semelhantes que os constituem “se correspondem reciprocamente um por um, se representam um ao outro, cada qual podendo servir de símbolo um do outro, revelar as propriedades um do outro ou mesmo agir um sobre o outro” (PIERUCCI, 2001, p. 62).

O primeiro antropólogo a elaborar este princípio desta forma foi o inglês James George Frazer (1854-1941). “Para Frazer, são mágicas as práticas destinadas a produzir efeitos especiais pela aplicação das duas leis ditas simpáticas:40 a lei da similaridade e a lei da contigüidade” (In: MAUSS, 2001, p. 8), e há ainda dentro princípio geral da simpatia, que engloba estas leis regidas pela idéia da correspondência, a lei da contrariedade (In: MAUSS, 2001, p. 85). Todas elas se encaixam na seguinte fórmula: “O semelhante produz o semelhante; as coisas que estiveram em contato, mas que deixaram de o estar, continuam a agir umas sobre as outras, como se o contato se mantivesse” (In: MAUSS, 2001, p. 8). Para Frazer não há exceções, “a simpatia é a característica necessária e suficiente da magia, todos os ritos mágicos são simpáticos e todos os ritos simpáticos são mágicos” (In: MAUSS, 2000, p. 8). Marcel Mauss, que define magia a partir de idéia de rito, admite a validade do princípio da simpatia, mas não concorda que possa ser ele um princípio geral da magia, porque segundo ele, “as fórmulas simpáticas [...] não bastam para representar a totalidade de um rito mágico simpático” (In: MAUSS, 2001, p. 8).

Vimos que a religião e magia constituem-se formas diferentes de ligar o ser humano ao sagrado. Agora estamos em condição de estabelecer que a religião propicia um acesso ao sagrado desde que o ser humano, na relação com ele, se contente com a atitude de “dependência” e obediência aos dogmas religiosos; a magia, por sua vez, propicia, com base em suas próprias leis, sempre uma relação em que o ser humano ousa controlar o sagrado, isto é, o que está além de si, mas não fora da eficácia mágica. “A magia é uma manipulação do sagrado, como se este fosse um objeto disponível” (CROATTO, 2001, p. 67).

40 Para uma maior compreensão das leis da magia confira: FRAZER, James George. O ramo de ouro. Rio de

Janeiro-RJ: Editora Guanabara, 1978; MAUSS, Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. Coleção Perspectivas do Homem. Lisboa: 2000, Edições 70, p. 76-90; PIERUCCI, Antônio Flávio. A magia. Coleção Folha Explica. São Paulo-SP: Publifolha, 2001, p. 62-74.

De acordo com Flávio Pierucci, o traço decisivo que diferencia41 magia e religião é que nesta o ritual funciona como serviço divino, e naquela, como coação divina. Um mago ou feiticeiro não tenta aplacar a ira dos deuses ou atrair suas benesses; seu objetivo é sempre coagi-los.

Eis a característica diferenciadora decisiva: o modo de relacionamento com o sagrado [...] que a atitude da magia em relação aos poderes divinos é manipulativa e instrumentalizadora, ao passo que a relação religiosa com o divino é de respeito, obediência e veneração. A essência da magia é a dominação dos poderes suprasensíveis, [...] ao passo que a essência da religião é o abandono, a entrega de si, o obséquio, a submissão à sua soberana vontade (PIERUCCI, 2001, p. 85). c) Religião e magia como oposição

Não nos importa discutir aqui se a magia é a primeira forma de pensamento humano ou não, ou mesmo se ela foi degenerada pela religião. O nosso objetivo é perceber como a relação de oposição entre religião e magia repercute na redução da linguagem simbólica ocorrida após a Reforma Protestante, afinal, é dito que o “protestantismo despojou-se de três aspectos concomitantes mais antigos do sagrado: o mistério, o milagre e a magia” (BERGER, 1985, p. 124).

A rivalidade entre religião e magia remonta aos primórdios – talvez porque desde o início, dadas a características e utilidade de uma e outra, a magia tenha sido sempre mais sedutora que a religião. Em seus estudos das formas elementares de religião, Durkheim nos afirma que

a magia põe uma espécie de prazer profissional em profanar as coisas santas; nos seus ritos, ela assume posição oposta à das cerimônias religiosas – na missa negra a hóstia é profanada. A religião, por sua vez, embora não tenha condenado e proibido sempre os ritos mágicos, olha-os em geral de modo desfavorável. Há nos procedimentos do mago, algo de profundamente anti-religioso. Ainda que possa haver alguns pontos de contato entre essas duas espécies de instituições, é, entretanto difícil que elas não se oponham em algum ponto [...] (DURKHEIM, 1989, p. 75).

41 Embora na perspectiva de Antonio Flávio Pierucci, este seja o traço diferenciador decisivo entre magia e

religião, ele cita outros cinco, dos onze elencados pelo sociólogo norte-americano, William Goode, são elas: “1) a magia visa fins imediatos e limitados, ao passo que a religião, fins meta-presente e ilimitados; 2) Não há prática religiosa que seja um fim em si mesma, enquanto que na religião sim; 3) A relação do mago com as pessoas que o procuram é uma relação circunstancial, do tipo profissional-cliente; já no campo da religião, a relação do sacerdote com os fiéis tende a perenidade e é caracterizada pela abnegação; 4) A magia, portanto, é associal e, ao menos potencialmente, anti-social, coisa que nem de longe uma religião pretende ser; 5) Religião e magia diferem ainda quanto à garantia do efeito desejado, ou seja, na religião, o pedido feito em oração depende de a divindade aceitar ou não a solicitação ou a homenagem. Já no magismo, o efeito só depende de o agente seguir à risca o ritual e pronunciar corretamente a fórmula” (PIERUCCI, 2001, p. 83-86).

Pierucci concorda com Durkheim, desde que se acrescente que “a hostilidade mútua entre religião e magia é característica acentuada da civilização ocidental” (PIERUCCI, 2001, p. 90). Seja como for, o fato é que, segundo Pierucci, embasado em Max Weber (1864-1920), a oposição entre magia e religião no ocidente tem sua origem na religião judaica. Fato que leva o autor a fazer um breve histórico do processo de acirramento da oposição entre magia e religião. (Idem, p. 91-94).

A definição do termo religião como o ato de religar-se a Deus e a sua identificação com a religião cristã, gerou grande desvantagem para a magia, enquanto possibilidade de acesso a Deus, ou seja, magia tende a equivaler a paganismo. Não obstante esse fato, no período medieval, dominado pela concepção católica da religião cristã, “magia e religião viviam em simbiose, não podendo separar-se facilmente” (PIERUCCI, 2001, p. 94). Essa assertiva é contestada por Mircea Eliade, pois segundo ele, o “paganismo [entre outras coisas a magia] só pôde sobreviver cristianizado, embora essa cristianização fosse apenas superficial” (2006, p. 149), ou seja, ainda que a religião cristã se apresentasse como superior à magia, havia um clima de tolerância, viabilizado pela assimilação daquilo que não se pode mudar. Cristianização é diferente de simbiose.

Com o tempo, a atitude de superioridade tolerante por parte do cristianismo, em relação às crenças e práticas mágicas, aos poucos deu lugar a uma atitude de repúdio e exclusão. O ápice desse processo de “desencantamento do mundo: eliminação da magia como meio de salvação” (WEBER, 2004, p. 106) se dá com o surgimento do protestantismo, sobretudo em sua versão puritana e com o catolicismo intelectual42. De acordo com Pierucci, essas duas vertentes do cristianismo, tendem a repudiar

a magia muito mais do que costumam fazer as outras formas religiosas, mais propensas a inclusão e a hibridação, mais complacentes com os sincretismos e tolerantes com a mistura mágico-religiosa, como o catolicismo popular, o candomblé, a umbanda, o kardecismo, o hinduísmo, o taoísmo, o budismo tibetano, o xintoísmo (2001, p. 100).

É sob este pano de fundo que, após a Reforma Protestante,

reformadores e inquisidores, tanto protestantes como católicos43, saíram a campo decididos a converter à ‘verdadeira’ fé cristã seus contemporâneos, tachados de ‘pagãos’ em muitos de seus comportamentos ‘equivocadamente religiosos’,

42 Esta questão será amplamente desenvolvida a seguir.

43 Cabe aqui a ressalva de Max Weber: “desencantamento do mundo, não foi realizado na piedade com as

mesmas conseqüências que na religiosidade puritana”. Há resíduos de magia no catolicismo, por exemplo. Afirmação que é ilustrada pela doutrina da transubstanciação (2004, p. 106).

‘falsamente religiosos’, na verdade apenas mágicos e, por isso, heréticos, pecaminosos (PIERUCCI, 2001, p. 94).

Desse modo, na e a partir da Europa, na origem da modernidade, de “religião com magia, como sempre tinha sido e assim seguiria sendo no resto do mundo, a ortodoxia passava a ser agora religião contra magia” (PIERUCCI, 2001, p. 95), ou quem sabe sem magia.

CAPÍTULO II

A REDUÇÃO PROTESTANTE E O DESENCANTAMENTO DO MUNDO

“Comparado com a ‘plenitude’ do universo católico, o protestantismo parece ser