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A temática da secularização “tem sido objeto de controvérsia e ambigüidade desde o seu surgimento como categoria de análise e discussão disciplinar e, mais tarde, na sua mensuração empírica”. Se por um lado a controvérsia refere-se ao fato de que, com ela, pre- tendeu-se “considerar e identificar fatos e situações não sempre homogêneos, dando valor ora a um, ora a outro aspecto que se escolhia como explicação causal última (a necessidade da religiosidade e/ou a prática; o rito e/ou o sagrado etc.)”; por outro, a temática é ambígua porque o termo secularização está “semanticamente condenado a manter o pé sobre dois estribos: do significado originário, extraído do direito canônico e sucessivamente inserido na teologia, ao significado adquirido na tradição das ciências sociais” (GUIZZARDI; STELLA, 1990, p. 203). Tal elasticidade semântica comporta em seu bojo fenômenos e acontecimentos os mais diversos, tais como: laicização, dessacralização, privatização, descristianização etc., o que impossibilitaria uma análise pormenorizada da trilha histórica da temática proposta. Sendo assim, impomo-nos analisar o sentido da secularização em relação com o desencantamento do mundo em Max Weber.

Antes de prosseguirmos, vejamos a evolução histórica do sentido da palavra secularização. Em sua primeira acepção, em vernáculo latim, no fim do século XVI, o termo secularização no remete ao âmbito institucionalmente religioso – ainda que jurídico-religioso – para designar um transitus de regularis a canonicus, ou seja,

a passagem de um ‘virtuoso’ religioso do estado de padre regular (isto é, membro de uma Ordem Religiosa regida por um regulamento chamado ‘Regra’; daí o nome ‘padre regular’) ao estado secular (de sacerdote católico ligado diretamente a um bispo, a uma diocese) (PIERUCCI, 1998, p. 64).

Ainda neste momento inaugural do termo e no âmbito do direito canônico, mas para indicar um processo diferente, há um ligeiro deslocamento no sentido do termo que

além da passagem de um tipo de clero a outro, também a redução de um clérigo ao estado laical, a ‘laicização’ (termo ainda inexistente) de um clérigo; enfim, a perda do estado clerical [...] e agora sim perda, não apenas passagem, a ‘redução à vida laica ele quem recebeu ordens religiosas ou vive segundo a regra conventual’ (PIERUCCI, 1998, p. 64).

Posteriormente, na vigência do século XVI e XVII, momento de ascensão do protestantismo na Europa, secularização passou a designar o “processo de subtração de um território, ou de uma instituição, da jurisdição e do controle eclesiástico: é com esta acepção que o conceito vai aparecer pela primeira vez durante os extenuantes acordos para a Paz de Westfália, de 1648” (MARTELLI, 1995, 274s). Aconteceu que o príncipe eleitor de Branden- burgo, que fora obrigado a ceder terras aos suecos, recebeu do imperador, como recompensa, alguns territórios eclesiásticos, que, assim, foram oportunamente ‘secularizados’. Desse modo, o termo saecularisatio torna-se sécularizer. E não se trata de mera questão lingüística, visto que, na grafia francesa cunhada pelo legado da França, LonguevilIe, é a primeira vez que ele aparece em língua não eclesiástica. Sua acepção é ampliada em relação ao direito canônico (PIERUCCI, 1998, p. 64). Contudo vale ressaltar, secularização ainda não significa ‘perda’, uma vez que tais territórios, do ponto de vista formal, “continuaram a ser principados do sacro império romano” (MARTELLI, 1995, p. 275).

O evento conhecido como Grosse Säkularisation, ocorrido 1803 é de crucial importância para o entendimento do caminhar histórico do termo. Trata-se da “a espoliação das igrejas, de seus direitos e propriedades, decretada na Alemanha durante a época napoleônica.” A partir daí, o termo secularização, até então neutro, técnico e unívoco incorpora às suas possibilidades semânticas uma acepção valorativa de cunho jurídico- ideológica. Doravante indica a “subtração de direitos e bens religiosos e de emancipação da tutela e controle da Igreja: ação jurídica julgada ilegítima ou, ao contrário, apresentada como progressista, conforme a posição ideológica assumida em relação à instituição eclesial” (MARTELLI, 1995, p. 275).

No momento atual, o termo ‘secularização

designa os processos de laicização, isto é, de autonomia em relação à esfera religiosa, que surgiram no Ocidente a partir da dissolução do feudalismo. Por isso, secularização tomou-se sinônimo de subtração de províncias, do saber, do poder e do agir social, do controle ou da influência de instituições eclesiásticas ou de universos simbólico-religiosos (MARTELLI, 1995, p. 275s).

Pierucci, porquanto ancorado em Weber, vai além quanto à extensão semântica do termo. Para ele, o termo secularização no âmbito do pensamento moderno – ele mesmo já agudamente secularizado –, “passa por acentuada extensão semântica e torna-se uma categoria histórico-filosófica portadora da pretensão de interpretar todo o curso da história universal como gênese da nossa ocidental modernidade sociopolítica e tecno-científica” (1998, p. 66).

3.3.1 WEBER E OS CLÁSSICOS: A RUPTURA

Com o avanço da modernidade, desenvolveram-se novas exigências organizativas inerentes aos processos de diferenciação interna do próprio “sistema social, que se articulava em domínios institucionalmente autônomos e relativamente independentes em relação a uma legitimação de tipo religioso”.

Neste novo contexto de racionalidade científica, substituta das antigas ideologias de cunho sacral, “impunha-se uma revisão profunda do método com o qual se considerava o mundo, e exigia-se, onde e quando necessário, o surgimento de disciplinas capazes de explicar, segundo regras positivas, os fenômenos sociais” (GUIZZARDI; STELLA, 1990, p. 205).

Se pensarmos a temática da secularização em seus primórdios, no âmbito já da sociologia, havemos de concebê-la em termos de evolução. E, neste caso, o ponto de partida seria o filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), “inventor do termo ‘sociologia’ e expoente máximo do positivismo aplicado à análise social, que põe toda a sua confiança na capacidade da ciência de resolver os problemas da humanidade”. Como se sabe, para ele a ciência caracteriza um ponto final, precisamente o terceiro e último estágio da evolução humana; “depois do ‘teológico’, com explicações que remetem aos deuses, e do ‘metafísico’, baseado sobre abstrações puras, chega, com efeito, o estágio ‘positivo’, que observa e correlaciona os fatos concretos” (CIPRIANI, 2007, p. 41).

Pois bem, para Comte – e na sua esteira andam também Herbert Spencer (1820-1903) e ninguém menos que Sir James George Frazer – a secularização concebida de forma irreversível e linear, apresenta-se “como um fenômeno com o qual o campo da ciência se autonomiza em relação às pesadas hipotecas que, durante séculos, lhe foram impostas pela ortodoxia teológica” (GUIZZARDI; STELLA, 1990, p. 207).

Ressaltamos, entretanto, que a passagem de interpretação teocêntrica para uma racional da realidade “não se caracteriza em termos anti-religiosos”, uma vez que, “tanto para

Comte como para Spencer, a religião conserva uma função própria ineliminável no interior da sociedade e corresponde a uma necessidade inata do homem, que o próprio positivismo não pode nem ousa tirar”. Se Spencer refere-se a “uma ‘desantropomorfização’ da religião”, Comte, por sua vez, “proporá a sua religião da humanidade entendida como uma resposta racional e laica seja à necessidade inata que não consegue negar ou reprimir, seja à função social integrativa que são reconhecidas como traços essenciais da religião”. É lugar comum insistir que “tanto a confiança no processo evolutivo mecânico como a consideração funcional da necessidade da religião parecem apoiar-se sobre preconceitos oitocentescos e sobre ideologias que não encontram respaldo em dados de fato concretos” (GUIZZARDI; STELLA, 1990, p. 207).

Max Weber rompe com esta perspectiva de Comte e Spencer. Para ele há articulações muito mais complexas – do que fez ver o positivismo –, envolvendo as transformações enfrentadas pela religião e a racionalidade técnica desencadeada pela ciência e pelos novos métodos de produção – dois pólos que confluem no sintagma desencantamento do mundo. Em Weber, “o distanciamento e a emancipação do âmbito político-econômico de justificações de tipo religioso se une também ao reconhecimento da influência que o sistema de valores de origem religiosa pode comportar em confronto com a esfera econômica” (GUIZZARDI; STELLA, 1990, p. 207).

Desse modo, a idéia de secularização descola-se da concepção evolucionista e dissolve-se “num quadro de variáveis bem mais abertas ao jogo de influências recíprocas que a mudança traz consigo”, redundando progressivamente “na perda de poder político concreto por parte das organizações institucionais que administram o campo religioso (igrejas, associações, seitas etc.”) (GUIZZARDI; STELLA, 1990, p. 207), dadas as novas exigências de racionalidade por parte da própria religião ou da ciência moderna.

3.3.2 WEBER, A SECULARIZÃO E O DESENCANTAMENTO: A IRREVERSIBILIDADE

Estaríamos nós em tempos de pós-secularização? Descumprida a profecia, seria mais honesto falarmos hoje em dessecularização?

O termo ‘pós-secular’71, que mimetiza e comenta os outros ‘pós’ com os quais se alinha – o pós-moderno, o pós-industrial, o pós-materialista, o pós-comunista, o

post-histoire etc. – identifica na pós-modernidade, entendida como crise globalizada

da modernidade, o momento ideal para a reformulação das teorias sociológicas da

71 Termo cunhado por Filippo Barbano, no prefácio que escreveu ao livro de Luigi Berzano, Differenziazione e

religião, uma vez que elas seriam majoritariamente tributárias do doutrinarismo da teoria weberiana da secularização (PIERUCCI, 1998, p. 44).

Uma vez na pós-secularização, urge passarmos – advogam alguns – “a fazer uma sociologia que reconheça a capacidade demonstrada pela religião de resistir ao ataque cerrado da Modernidade”. Tal sociologia necessariamente há de ser “menos injusta com seu pulsante objeto. Menos preconceituosa com o sagrado, posto que a crítica radical da religião seria constitutiva da modernidade, não da pós” (PIERUCCI, 1998, p. 45).

Segundo Stefano Martelli

a condição ‘pós-moderna’ representa uma fase ulterior à do processo de secularização, a fase na qual a própria experiência da secularização já está esgotada. 28 O ‘pós-moderno’ caracteriza-se pela ausência daquelas contraposições fortes, das quais a tese da secularização tomava vigor. [...] Em outras palavras, a sociedade ‘pós-moderna’ seria uma sociedade, ‘pós-secular’ na qual a ênfase no trend secularizante, finalmente deixada de lado, permite perceber numerosos fenômenos de dessecularização (1995, p. 18).

Parece ser consenso que Sabino Samele Acquaviva (1929-), sociólogo da Universidade de Pádua, já em 1961, “foi um dos primeiros a falar de crise do sagrado, documentando seu andamento por meio dos dados – em queda – relativos à prática religiosa, em nível internacional”. Sua obra mais conhecida, O eclipse do sagrado na civilização

industrial (1961) tinha como fio condutor a discussão acerca das “escassas possibilidades

futuras de sobrevivência da religião”; a secularização era um fato evidente e incontestável. Com o passar dos anos, entretanto, esse mesmo autor, seguido por muitos outros, “foi progressivamente atenuando os tons de suas afirmações até decretar, ele próprio, o Fim de

uma ideologia: a secularização (1989)” (CIPRIANI, 2007, p. 225); a partir desse momento,

se alguma coisa estava em crise era o “paradigma da secularização” e não a religião, advogava.

Tal mudança de perspectiva estava relacionada ao crescimento de novos movimentos religiosos, não só no primeiro mundo, como também nos países em desenvolvimento. Segundo Pierucci, para os defensores da chamada teoria da dessecularização, “as religiões têm se revitalizado, expandido e multiplicado consideravelmente. Visivelmente [...] É fenômeno quase palpável em escala global o novo e heterogêneo ‘despertar religioso’ que estaria a fermentar não só o Terceiro, mas também e principalmente o Primeiro Mundo” (PIERUCCI, 1998, p. 47). Portanto, Weber estava errado, a profecia da secularização não se cumpriu. A religião não morreu.

Todavia o mesmo autor adverte que, se estamos pensando a secularização tal como Max Weber a concebeu, os que advogam a possibilidade de ‘pós-secularização ou de dessecularização’, na verdade fazem da obra de Weber

uma leitura extremamente rala e tola, teleológica, que, digamos assim, ‘não combina com Weber’ [...] Atribuem a Weber, à sua revelia, um prognóstico fechado de definhamento da religião na sociedade moderna na razão direta do avanço linear da racionalidade formal-instrumental, profecia que, entretanto, não se cumpriu. Como se Weber não costumasse escarnecer das profecias acadêmicas (PIERUCCI, 1998, p. 47).

Para Weber, a secularização e o desencantamento do mundo são processos irreversíveis. E ademais, não significam a mesma coisa. Embora a diferença pareça mera sutileza é bem mais do que isso. Secularização e desencantamento “não dizem a mesma coisa, não recobrem a mesma coisa, não tratam da mesma coisa”. Como vimos anteriormente, “o desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades profundamente religiosas, é um

processo essencialmente religioso, porquanto são as religiões éticas que operam a eliminação

da magia como meio de salvação”, ao passo que a secularização “implica abandono, redução, subtração do status religioso; [...] é defecção, uma perda para a religião e emancipação em relação a ela”. Para Weber, a secularização “é resultado, conseqüência, de certa maneira um ponto de chegada, uma conclusão lógica do processo histórico-religioso de desencantamento do mundo” (PIERUCCI, 1998, p. 51).

Ainda citando Pierrucci, podemos afirmar que

o processo de racionalização é mais amplo e mais abrangente que o desencantamento do mundo e, neste sentido, o abarca; o desencantamento do mundo, por sua vez, tem a duração histórica mais longa, mais extensa que a secularização e, neste sentido, a compreende. O importante a reter é que Weber realmente distingue os diferentes processos. Enquanto o desencantamento do mundo fala da ancestral luta da religião contra a magia, [...] a secularização, por sua vez, nos remete à luta da modernidade cultural contra a religião, tendo como manifestação empírica no mundo moderno o declínio da religião como potência in

temporalibus, seu disestahlishment [...], a depressão do seu valor cultural e sua

demissão/liberação da função de integração social (1998, p. 51).

Em suma, posto que o desencantamento do mundo é irreparável, e no seu sentido mais abrangente, infinito; e que o processo de secularização, por sua vez, será cada vez mais, irremediavelmente não passível de reversão por parte da religião; não há como sustentarmos a idéia de que estaríamos vivendo tempos de pós-secularização ou de dessecularização, ainda que isto não signifique morte ou supressão da religião.