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TÍTULO II – RELAÇÃO JURÍDICA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1 A estrutura da relação jurídica

A devida compreensão estrutural das relações jurídicas tem como ponto de partida a obra clássica de Wesley Newcomb Hohfeld446. Embora concebidas e usualmente aplicadas no

campo do direito privado, as idéias de Hohfeld trazem importantes contribuições para a compreensão das relações jusfundamentais e exercem grande influência na doutrina constitucional, notadamente na sempre lembrada interpretação analítica do conteúdo e estrutura dos direitos fundamentais de Robert Alexy, construída sobre substratos hohfeldianos.447

Hohfeld considera diversas posições e situações jurídicas para fixar um conjunto estruturado e sistematizado de obrigações e abstenções que delineiam os parâmetros de capacidade das partes em uma relação jurídica. Nesse sentido, independentemente de preocupações jusnaturalistas ou positivistas, Hohfeld buscou superar a redução das relações jurídicas a uma percepção reduzida às categorias de “direitos” e “deveres” contrapostos,

442 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 94. Segue Orlando Gomes para dizer que “a relação jurídica tem como pressuposto um fato que adquire significação jurídica se a lei o tem como idôneo à produção de determinados efeitos, estatuídos ou tutelados. Assim todo evento, já um acontecimento natural, já uma ação humana, converte-se em fato jurídico, se em condições de exercer essa função”. Idem, p. 98.

443 Conforme Bobbio, a relação jurídica caracteriza-se “não pela matéria que constitui seu objeto, mas pelo modo que os sujeitos se comportam um em face do outro”. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Bauru: Edipro, 2001, p. 126

444 LUMIA, Giuseppe. Elementos de teoria e ideologia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 101.

445 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito., p. 219.

446 HOHFELD, Wesley Newcomb. Fundamental legal conceptions as applied in judicial reasoning. New Haven: Yale University Press, 2000. Essa obra deriva da combinação de dois artigos do autor publicados no Yale Law Journal em 1913 e 1917.

insuficientes para a análise das relações jurídicas mais complexas. Hohfeld estabelece então a noção de conceitos jurídicos fundamentais448, que compõem todo e qualquer tipo de interesse

e relação jurídica449 em situação de correlação e/ou oposição entre si:

Conceitos fundamentais opostos Conceitos fundamentais correlatos

Poder (power) X Incompetência

(disability)

Poder (power) Sujeição(liability)

Imunidade (immunity) X Sujeição

(liability)

Imunidade(immunity) Incompetência(disability)

Privilégio (privilege) X Dever (duty) Privilégio(privilege) Não-direito(no-right) Direito (right) X Não-direito (no-right) Direito (right) Dever(duty)

Esses oito pares conceituais refletiriam as posições ocupadas por cada um dos sujeitos da relação jurídica que tenha como objeto um comportamento omissivo ou comissivo por parte de um deles dentro de um contexto concreto.450

A posição de poder estabelece a situação em que a expressão de vontade um dos sujeitos tem como conseqüência a alteração da relação jurídica, independentemente da vontade do outro sujeito da relação.451 Trata-se, pois, de uma competência ou habilidade de

modificar relações jurídicas próprias ou alheias. Correlaciona-se diretamente, pois, com a posição de sujeição, na medida em que o outro acaba por ser sujeito a essas alterações de maneira imperativa, gerando responsabilidades (liability) sem possibilidades de discussão. 452

A imunidade traduz-se como a “liberdade de alguém do poder jurídico [legal power] ou ‘controle’ de outrem no que diz respeito à determinada relação jurídica”.453 Vislumbra-se

então que a imunidade é oposta à sujeição – pois o indivíduo que é imune não sofre sujeição alguma na relação jurídica - e se correlaciona com a incompetência (disability) ou ausência de poder de alguém de alterar unilateralmente a relação jurídica existente.

448 Nota-se que o termo “fundamental” no context hohlediano em nada se relaciona com a noção de fundamentalidade derivada de ligação com a noção de dignidade de pessoa humana, uma vez que, repita- se, a doutrina do autor foi originalmente pensada no contexto do direito privado.

449 HOHFELD, W.N. Fundamental legal conceptions as applied in judicial reasoning, p. 26 450 Ibidem, p. 36.

451 Ibidem, p. 51.

452 HOHFELD, W.N. Fundamental legal conceptions as applied in judicial reasoning, p. 60. 453 Ibidem, p. 60

A posição de privilégio, por sua vez, não deve ser compreendida na noção vulgar favorecimento indevido454, mas sim partir de sua oposição ao dever. O privilégio consiste na

“negação do dever legal”, pois ao dizer que alguém goza de um privilégio é dizer que ele não é “sujeito ao dever de fazer de outro modo”.455 Sua correlação com a categoria de não-direito

(no-right) aparece pela impossibilidade do outro exigir-lhe conduta diversa. Nota-se que o privilégio, em Hohfeld, traduz a noção da liberdade que o indivíduo goza na relação jurídica456, na medida em pode perseguir seus objetivos lícitos livremente quando não tem o

dever de agir de forma diversa. Correlatamente, terceiros não dispõem de meios jurídicos para impedir esses objetivos.

Finalmente, o direito stricto sensu (right) como posição na relação jurídica aparece em Hohfeld intimamente relacionado com a noção correlata de dever (duty), explicado como “aquilo que se está obrigado a fazer ou a não fazer”. Assim, “quando um direito é invadido, um dever é violado”.457 É marcante a aproximação da idéia de direito em sentido estrito e a

de pretensão (claim) na afirmação de que “um direito (right) tem sido bem definido como sendo uma pretensão bem fundamentada, e uma pretensão bem fundamentada significada nada mais nada menos do que uma pretensão reconhecida ou assegurada pelo Direito (law)”.458

Nota-se, assim, que o direito em Hohfeld é uma pretensão que tem embasamento jurídico, a qual corresponde obrigatoriamente um correlato dever descumprido por outrem, dever esse também juridicamente previsto. A violação de um dever, pois, leva necessariamente à violação de um direito. O direito à inviolabilidade de domicílio459, por exemplo, permanece inerte, surgindo como pretensão no momento em que haja o descumprimento do dever de não invasão por terceiros. Simultaneamente, terceiros não têm qualquer amparo jurídico para ingressar no domicílio - salvo em hipóteses específicas previstas no ordenamento – o que demonstra a relação de oposição entre direito e não-direito (no-right).

454 Ibidem, p. 44.

455 Ibidem, p. 39/45.

456 Hohfeld diz que “o sinônimo mais próximo de ‘privilégio’ legal parece ser ‘liberdade’ legal”. Ibidem, p.42-43 .

457 Ibidem, p.38 . 458 Ibidem, loc. cit.

A partir dessas considerações, Hohfeld busca diferenciar adequadamente o uso do termo “direito”, que, segundo ele, é usualmente utilizado de forma indiscriminada para descrever situações de poder ou de privilégios460.

Embora próximos, os conceito de direito e poder diferenciam-se a partir da percepção de que o poder pode ser exercido autonomamente, tendo a outra parte obrigatoriamente que se sujeitar. O direito como pretensão, por sua vez, surge somente a partir da violação de um dever, momento no qual se gera a pretensão amparada pelo direito. O privilégio, por sua vez, contrasta-se com o direito, pois a existência de um privilégio não se condiciona à existência do dever de não interferência de terceiros. Alguém pode então ser titular de um privilégio sem que exista qualquer dever alheio correlativo.461 O direito como

pretensão, caso violado, gera possibilidade de ação judicial por ser garantido pelo ordenamento jurídico; o privilégio é uma liberdade garantida pelo ordenamento jurídico, que continuará a ser garantida se não violar o direito de terceiros.

Em síntese, da dinâmica de correlação e/ou oposição entre conceitos jurídicos fundamentais de Hohfeld advêm as diversas situações possíveis em uma relação jurídica: ter um poder (power) em face de alguém significa a capacidade jurídica (competence) de modificar a situação jurídica do outro, que deve sujeitar-se a isso; ter uma imunidade (immunity) perante alguém implica que esse sujeito não tem o poder normativo de alterar-lhe a situação jurídica, pois é incompetente normativamente para isso.; ter um privilégio (privilege) ou liberdade frente a alguém significa não estar sujeito à qualquer pretensão dele e não ter qualquer dever perante ele; ter direitos em sentido estrito, por fim, (rights) em face de alguém traduz a respectiva pretensão jurídica (claim) de exigir algo desse alguém, que descumpriu um dever juridicamente estabelecido.

460 HOHFELD,W.N. Fundamental legal conceptions as applied in judicial reasoning, p. 36.

461 Hohfeld traz o seguinte exemplo: A, B, C e D são os donos de uma salada e que estes acordam com X que este pode comer tal salada, mas afirmam que poderão interferir em tal ato a qualquer tempo. X possui assim o privilégio de comer a salada, porém, se lograr êxito em comê-la antes que A, B, C e D interfiram, não estará violando nenhum direito destas partes. Contudo, fica igualmente claro no exemplo que se A conseguir retirar o prato de salada de X antes dele conseguir comê-la, nenhum direito de X estará sendo violado também. Portanto, X possui o privilégio de comer a salada, mas não possui o direito de não- interferência com relação a A, B, C e D, pois estes acordaram com X previamente que não teriam tal dever Ibidem, p. 41-42.