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TÍTULO I – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

1.1 Dignidade inerente em Kant

Do exposto até o momento, pode-se apreciar como a construção da noção de dignidade da pessoa humana na cultura ocidental se deu a partir da “fusão do monoteísmo judaico-cristão com as concepções clássicas e humanistas do ser humano”.64

Contudo, o maior desenvolvimento filosófico do tema ora discutido surge realmente a partir de Immanuel Kant, especialmente no exposto em sua obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” (1785). Evidentemente sem que se tenha a pretensão de explorar a densa filosofia moral construída por Kant, cumpre destacar aqui pontualmente a contribuição kantiana acerca da dignidade da pessoa humana, uma vez que seu pensamento serve de fundamento habitual para a teorização do tema no campo das ciências jurídicas. 65

Para Kant, a construção da idéia de dignidade surge a partir do objetivo de conceber um “princípio supremo da moralidade”. 66 Afastando-se de Deus como fonte da moral67,

da imortalidade da alma para consagrar a dignidade da pessoa humana. Segundo esse autor, o homem faz o seu próprio projeto existencial, pois não foi criado por alguém para um propósito, e logo não é responsável perante um Criador. Assim, cada um seria livre não apenas para se comportar ou não conforme a moral vigente, mas também para construir seus próprios padrões éticos”. Cf. MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 133. 63 Vale destacar ainda o empirismo de David Hume, no qual os fatos empíricos demonstram que os seres humanos são naturalmente inclinados a comportamentos dignos; assim, quando o homem tem uma auto- imagem de dignidade, tende a ser comportar conforme, de modo que, embora não nasça como ser digno, todos os seres humanos tendem a se tornarem dignos. LEWIS, Milton. A brief history of human dignity: idea and application. In MALPAS, Jeff; LICKISS, Norelle (eds.). Perspectives on human dignity, p. 94.

64 ARIELI, Yehoshua. On the necessary and sufficient conditions for the emergence of the dignity of man and his rights. In KRETZMER, D.; KLEIN, E. The concept of human dignity in human rights discourse. The Hague: Kluwer Law International, 2002, p. 9 .

65 Nesse sentido, Ingo W. Sarlet observa que a concepção kantiana de dignidade da pessoa humana serve de base para os estudos de diversos autores no cenário luso-brasileiro, como Fábio K. Comparato, José Afonso da Silva, Jorge Miranda e Paulo Mota Pinto, dentre outros, bem como da maioria expressiva dos autores alemães. SARLET, Ingo W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 34.

66 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes: introdução de Pedro Galvão. Lisboa: Edições 70, 2009, p.19.

Kant centra o foco da moralidade na qualidade distintiva do ser humano: o fato de ser dotado de razão, por meio da qual fixamos livremente nosso agir. 68

Partindo da premissa de que o princípio supremo da moralidade deve ser universal e, portanto, aplicável a todos em todas as circunstâncias possíveis, Kant defende que tal princípio deve estabelecer um juízo a priori, que independe de toda e qualquer experiência empírica. Surge daí a concepção de “imperativo categórico” como conceito ético-filosófico.

O “imperativo hipotético”, usual e intuitivo, funda-se na razão instrumental, estabelecendo determinada conduta em vista de um fim específico e sempre condicional: se desejas A, então faças B. Em contraste, o imperativo categórico - que se baseia e ao mesmo tempo limita racionalmente a liberdade humana - determina uma ação de uma forma direta e incondicional, sem que haja necessidade de se verificar uma finalidade externa a que se pretende alcançar. Ao tratar do tema em sua “Metafísica dos Costumes” (1797), Kant explica o conceito:

Um imperativo categórico (incondicional) é aquele que representa uma ação como objetivamente necessária e a torna necessária não indiretamente através da representação de algum fim que pode ser atingido pela ação, mas da mera representação dessa própria ação (sua forma) e, por conseguinte, diretamente. 69

Logo, para Kant, um “imperativo categórico” comanda, sem referências ou dependências de ulteriores propósitos e, por isso, somente ele pode ser qualificado como um imperativo moral e servir de guia para um ser humano dotado de autonomia. Serve, pois, como uma lei prática que comanda e une os seres racionais, independentemente de seus particulares propósitos.70

Diversas formulações do imperativo categórico são identificadas na filosofia kantiana. No âmbito desta obra, contudo, vale destacar apenas aquelas essenciais à

67 Razão pela qual afirma Sarlet que é “com Kant que, de certo modo, se completa o processo de secularização da dignidade, que, de vez por todas, abandonou suas vestes sacrais”. SARLET, Ingo W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 32-33.

68 Para Kant, somente os seres racionais têm “a capacidade de agir segundo a representação das leis”. KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 49.

69 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. 2. ed. Bauru: Edipro, 2008, p. 65/67. Ao tratar do tema, observa Alexandre Travessoni Gomes: “Surge a necessidade da razão impor regras à conduta humana, o que fará através dos imperativos. Para Kant, os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os imperativos hipotéticos representam a necessidade de uma ação possível como um meio de se alcançar um fim. Os imperativos categóricos mandam um ação objetivamente, necessária por si mesma, sem relação com qualquer finalidade: uma ação que é boa em si mesma.” GOMES, Alexandre T. O fundamento de validade do Direito: Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 63-64.

compreensão da noção de dignidade da pessoa humana. A primeira delas é a chamada “Fórmula da Lei Universal”.

Segundo Kant, a “boa vontade” é o único conceito passível de ser considerado um bem sem restrições; sem ela, qualidades e virtudes pessoais não têm qualquer valor. 71 A “boa

vontade”, porém, somente pode ser considerada essencialmente um bem quando dirigida pela razão, relacionando-se com o conceito de “dever”.Agir com boa vontade significa agir por dever, no sentido de se sentir obrigado a tanto. O valor moral da conduta, pois, não se funda em seu propósito, mas na “necessidade de uma ação por respeito à lei”, ou seja, no “dever” de proceder conforme a “máxima que determina” a conduta. 72

Ao questionar qual seria essa lei que orientaria a conduta humana, Kant a traduz como “uma lei universal das ações em geral que possa servir de único princípio à vontade”, anunciando nestes termos a Fórmula da Lei Universal: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal”. 73 Destarte, a

conduta é moral quando passível de adoção por todos, indistintamente, isto é, quando passível de universalização. 74

Estabelecida a primeira formulação do imperativo categórico, Kant prossegue sua exposição no sentido de investigar a real existência de tal lei universal, “que ordene absolutamente por si e independentemente do todo o móbil”, e a qual “a obediência (...) é o dever.” 75.

71 A boa vontade, para Kant, seria o “bem supremo e a condição de tudo o mais”, pois “discernimento, argúcia de espírito, capacidade de julgar e como quer que possam chamar-se os demais talentos do espírito, ou ainda coragem, decisão, constância de propósito, como qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos coisas boas e desejáveis; mas também podem tornar-se extremamente más e prejudiciais se a vontade, que haja de fazer uso destes dons naturais e cuja constituição particular por isso se chama caráter, não for boa”. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p.22/25.

72 KANT, Imannuel, Fundamentação da metafísica dos costumes., p. 30-31. Kant define “máxima” como “o princípio subjetivo da ação”, pelo qual o sujeito orienta sua conduta em determinadas ocasião, circunstância e finalidade. Ibidem, p.61

73 KANT, Imannuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 34.

74 Explicitando tal afirmação, observa Pedro Galvão: “Suponhamos que queremos saber se é permissível agir Segundo uma certa máxima, m.Começamos por perguntar se poderia haver um mundo em que m fosse uma lei da natureza; No caso de a resposta ser negativa, conclui-se que m é inaceitável (..) No caso de a resposta ser afirmativa, temos de colocar outra questão, nomeadamente a de saber se poderíamos querer um mundo em que

m fosse uma lei da natureza. De uma resposta negativa seguir-se-á também que m é inaceitável(..) Só de uma

resposta afirmativa a ambas as questões, portanto, poderemos concluir que é permissível agir segundo m”. Apud KANT, Imannuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. XLV (nota introdutória). Isso, todavia, não traduz preocupação com as possíveis consequências práticas da universalização de determinada conduta, mas sim em avaliar se a conduta vai de encontro do imperativo categórico, no sentido de privilegiar os desejos e necessidades de alguém em detrimento dos demais.Cf. SANDEL, Michael J. Justice, p. 146.

Retomando a afirmação da razão como base da moralidade, observa que o homem é concebido como sujeito do conhecimento e, por isso, é capaz de ter consciência de seus deveres. 76 Contudo, estabelece que a lei universal somente pode ser baseada em consideração

dos fins objetivos da conduta humana. Esses fins objetivos, por sua vez, são aqueles reconhecidos como bons por todo e qualquer agente racional, sejam quais forem os interesses específicos (fins subjetivos) daqueles que praticam a conduta. 77

Diante disso, o fim que serve de base do imperativo categórico – e de sua primeira formulação – somente pode ser “alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo, possa ser a base de leis determinadas” 78. Esse

elemento básico, para Kant, é o ser humano:

O homem e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele que sempre de ser considerado simultaneamente como fim. 79

Buscando relacionar a idéia de lei moral universal e do ser humano como fim em si mesmo, Kant estabelece a chamada “Fórmula do Fim em Si Mesmo” 80 ou “Fórmula da

Humanidade” 81 como segunda formulação do imperativo categórico: “age de tal maneira que

uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. 82

76 Para Kant, “a vontade é concebida com a faculdade de se determinar a sim mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis. E uma tal faculdade só se pode encontrar em seres racionais”. KANT, Imannuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 71

77 Idem, loc. cit. Terence Irwin considera que “se todo valor fosse resultante de um desejo antecedente e, por consequência, de fins subjetivos, não haveria (de acordo com Kant) um princípio prático supremo para a razão. (..) Um fim objetivo é um objeto de respeito, não um objetivo a ser alcançado.” IRWIN, Terence. The development of ethics: a historical and critical study. Vol. III. New York: Oxford University Press, 2009, p. 40. 78 Ibidem, grifos no original.

79 KANT, Imannuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 72.

80 PATTON, Herbert J. The Categorial imperative; a study in Kant’s moral philosophy. Philadelphia: University of Pennsylvania, 1948, p. 129. . Disponível em: http://books.google.com.br

81 GALVÃO, Pedro. In KANT, Imannuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. XLV (nota introdutória).

82 Ibidem, p. 73. No extremo oposto de Kant, é interessante lembrar Friedrich Nietzsche, que afirmava que a dignidade humana somente estaria presente quando o ser humano for “consciente ou inconscientemente instrumento do gênio (..) o ‘homem em si’, o homem em geral, não tem nem dignidade, nem direitos, nem deveres. Ele não pode justificar sua existência senão como um ser determinado de maneira absoluta para servir aos objetivos dos quais ele não é mais consciente”. NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre a política. Vol. II. São Paulo: Ed. Loyola, 2007, p. 128.

Esta segunda formulação do imperativo categórico denota claramente percepção kantiana de que a racionalidade da pessoa humana a torna dotada de um valor inato, único, absoluto e incondicional. Kant expressamente atribui a tal valor a denominação “dignidade”, que contrasta com o “preço” atribuído às coisas. Explica o filósofo prussiano:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal;(...) aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade. Ora a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas que têm dignidade.83

Logo, a dignidade é descrita por Kant invariavelmente como “intrínseca ou inerente”, em contraste com o preço, que é “instrumental, contingente, extrínseco ou circunstancial.” 84. Considerando ainda a observação de Kant de que “o valor de todos os

objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional” 85, pode-se afirmar

que enquanto “o preço significa o valor da coisa em relação aos desejos de uma pessoa” 86, a

dignidade “é insubstituível, e não se relaciona com os desejos de ninguém.” 87.

À luz desses argumentos, é possível afirmar que, em sintonia com a filosofia tomista, mas de forma não equivalente, Kant aceita como postulado inicial o reconhecimento da dignidade da pessoa como uma instância ontológica e, conseqüentemente, objetiva e indisponível.

83 KANT, Imannuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 82 (negrito no original).

84 BEDAU, Hugo Adam. The eighth amendment, human dignity, and the death penalty. In: MEYER, Michael J.; PARENT, William A. (ed). The constitution of rights, human dignity and American values. New York: Cornell University Press, 1992, p. 154.

85 KANT, Imannuel, Fundamentação da metafísica dos costumes., p. 72.

86 Acerca do tema, vale destacar também as observações de Carmen Lúcia Antunes Rocha: “o preço é conferido àquilo que se pode aquilatar, avaliar, até mesmo para a sua substituição ou troca por outro de igual valor e cuidado; daí porque há uma relatividade deste elemento ou bem, uma vez que ele é um meio de que se há de valer para a obtenção de uma finalidade definida. Sendo meio, pode ser vendido por outro de igual valor e forma, suprindo-se de idêntico modo a precisão a realizar o fim almejado”. ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Revista Interesse Público, n. 04. Belo Horizonte: Fórum, 1999, p. 24.

87 GEWIRTH, Alan. Dignity as the basis of rights. In. MEYER, Michael J.; PARENT, William A. (ed), The constitution of rights, human dignity and American values, p. 10/13.

Assim, o dever de respeito pela dignidade do ser humano não se funda em simpatia por determinada causa ou indivíduo, empatia com determinada situação ou sentimentos de amor, amizade ou solidariedade, situações que sempre guardam relação como alguma qualidade específica da pessoa. A dignidade da pessoa humana deriva apenas da racionalidade do ser humano, que é inerente a todos, independentemente de sexo, raça, nacionalidade e qualquer outro qualificador. 88

A natureza racional do ser humano é considerada fim objetivo da conduta moral - e, portanto, fundamento do imperativo categórico - na medida em que impõe limites aos fins subjetivos, que somente terão valor moral caso reconheçam o valor inerente da humanidade. É a pessoa e sua dignidade absoluta que ordena e fundamenta toda a ordem moral.