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TÍTULO I – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

2. DIGNIDADE SOCIAL DA PESSOA HUMANA

2.3 Dignidade social e reconhecimento

Ao se tratar da heteronomia, viu-se que a dignidade social da pessoa humana perpassa necessariamente pela percepção comunitária do que é ser “digno”, o que leva a restrições de direitos individuais em prol da proteção e promoção de valores sociais comuns162. Disso resulta a conclusão de que a dignidade liga-se à auto-representação humana

na sociedade e à construção da identidade individual no contexto coletivo.163

159 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de C.V. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. Revista da EMERJ, v. 10, n. 50, 2010, p. 51.

160 MARITAIN, Jacques. Os direitos do homem e a lei natural. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

161 ASCENSÃO, José de Oliveira. A dignidade da pessoa e o fundamento dos direitos humanos. Revista da Ordem dos Advogados. Ano 68. Jan-2008, Lisboa, p. 97-124.

162 MCCRUDDEN, Christopher. Human dignity and judicial interpretation of human rights. European journal of international law, 19 (4), 2008, p. 675.

163 LUHMANN., Niklas. Grundrechte als Instituition. 2ª ed. Berlin: Duncker & Humblot, 1974, p. 60 e ss Apud SARLET, Ingo W. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico- constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. 2007, p. 375.

Nesse contexto, observa-se que a realização da dignidade depende da concepção do indivíduo ou do grupo a que pertence como parte essencial da comunidade, na medida em que a comunidade avalia e valida sua participação efetiva na sociedade.

Hasso Hofmann observa que a dignidade necessariamente deve ser compreendida sob perspectiva relacional e comunicativa164, constituindo uma categoria da co-humanidade

de cada indivíduo (Mitmenschlichkeit des Individuums), de modo que a dignidade não pode ser entendida fora de um contexto de comunidade concreta e determinada onde se manifesta e é reconhecida.165 Por isso, tem-se que o reconhecimento é também elemento ínsito da

dignidade social da pessoa humana, reconhecimento esse traduzido pelo respeito recíproco pelo caráter único e igual de todos os outros166, sem o qual o ser humano perde sua

habilidade de se desenvolver funcionalmente e em plena capacidade no âmbito social.167

Ainda no século XVII, o jusnaturalista Samuel Pufendorf já defendia que todo ser humano tem o dever de cultivar e preservar a sociabilidade. Respeitando a igualdade e a dignidade de cada um, deve procurar todas as formas possíveis para não causar danos ao outro. O reconhecimento mútuo da igual dignidade de todos os seres humanos, por sua vez, deveria ser o fundamento da sociedade, cuja harmonia dependeria da prevenção de ações destrutivas e de comportamentos negativos e do fomento da benevolência. 168

Em Kant, observa-se que a ligação entre autonomia e dignidade implica a concepção da primeira como algo além da mera capacidade do ser humano fixar máximas

164 Jónatas E. M. Machado também destaca o papel de conceito de comunicação da dignidade. Nesse sentido, cf. MACHADO, Jónatas. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 360.

165 HOFMANN, H. Die versprochene Menschenwürde, p. 364 Apud SARLET, Ingo W. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível.., p. 371. 166 João Carlos G. Loureiro, fundado em H. Hofmann, enfatiza que a dignidade humana é “o valor intrínseco, originariamente reconhecido a cada ser humano, fundado na sua autonomia ética”, albergando, portanto, “uma obrigação geral de respeito da pessoa, traduzida num feixe de deveres e de direitos correlativos”. LOUREIRO, João Carlos Gonçalves. O direito à identidade genética do ser humano. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 280-281. No mesmo sentido, defende Alan Gewirth que o reconhecimento de uma dignidade universal e inerente ao ser humano cria uma obrigação de “necessário respeito” que “consiste em um reconhecimento afirmativo e racional e consideração pela condição que todos os serem humanos têm em virtude de sua dignidade inerente”. GEWIRTH, Alan. Human dignity as the basis of rights. In: MEYER, Michael J.; PARENT, William A. (ed). The constitution of rights, human dignity and american values. New York: Cornell University Press, 1992, p. 12.

167 TAYLOR, Charles et al. Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 25. HONNETH, Axel. Recognition or redistribution?: changing perspectives on the moral order of society. Theory, Culture & Society, n.18, jun/2001, p.45.

168 Pufendorf defende ser o Estado o ponto final da sociabilidade, cabendo a ele conciliar a liberdade individual com as necessidades da vida social, garantindo a segurança material para viver com dignidade segundo políticas econômicas que proporcionem o bem-estar de todos. PUFENDOR, Samuel. De jure naturae et gentium (Liber

primus – Liber quartus) apud SAHD, Luiz F. N. de A. e Silva. O contrato social em Samuel Pufendorf. Revista

para si. Autonomia traduz a capacidade de auto-legislação, mas também a capacidade individual de determinar seus objetivos, fazer avaliações e respeitar a si próprio e aos outros.169

Dignidade, autonomia e respeito relacionam-se na afirmação kantiana de que todos os seres humanos são dotados de um valor especial que deve ser respeitado. De acordo com Milton Lewis, “o respeito que se requer em razão desse valor não é um sentimento, mas na verdade (como Kant tenta deixar claro na Metafísica da Moral) um dever de se comportar de determinada maneira em relação aos outros”. 170 Destarte, alguém que aja autonomamente é

também obrigado a respeitar a autonomia dos outros como seres dotados de dignidade. A dignidade, pois, é a fonte do dever de respeito ao outro 171.

Embora tais considerações demonstrem que o reconhecimento, de uma forma ou de outra, sempre desempenhou um papel na filosofia moral, apenas Hegel põe o princípio do reconhecimento no núcleo de sua teoria ética.172 Conforme visto anteriormente, é em Hegel

que se encontram elementos importantes para uma compreensão da dignidade como categoria relacional e comunicativa, que acima de tudo faz sentido no âmbito da intersubjetividade das relações humanas, mediante o reconhecimento recíproco do ser pessoa.173

Sintetiza Kurt Seelman que a concepção de dignidade em Hegel, ao tempo em não se mostra incompatível com uma concepção ontológica da dignidade, funda-se na tese de que o “reconhecimento recíproco é o fundamento da dignidade e, ao mesmo tempo, a conseqüência da opção por um estado juridicamente ordenado”.174

169 Daí porque “do reconhecimento da dignidade humana decorre o reconhecimento do poder de a pessoa dispor livremente das possibilidades de auto-conformação da sua vida.” NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 61

170 LEWIS, Milton. A brief history of human dignity: idea and application. In: MALPAS, Jeff; LICKISS, Norelle (eds.). Perspectives on human dignity, p. 50 .

171PATTON, Herbert J., The Categorial imperative; a study in Kant’s moral philosophy. Philadelphia: University of Pennsylvania, 1948, p. 171.

172 HONNETH, Axel. Recognition or redistribution?: changing perspectives on the moral order of society. Theory, Culture & Society, n.18, 2001, pp.43–55.

173 Nesse sentido, Günter Dürig conclui que “à dignidade de cada pessoa deve ser concedido o reconhecimento incondicional que é natural pretender para si mesmo. Quem despreza o outro, despreza a si mesmo, pois não pode negar a comunhão de gênero com o outro: o Ego e o Outro se identificam.” DÜRIG, Günter. Der Grundrechtssatz von der Menschenwürde. AöR, 1956, p. 81-82, apud GARCIA, Maria, Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade, São Paulo: Editora RT, 2004, p. 119-120.

174 SEELMAN, Kurt,. Pessoa e Dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel. In: SARLET, Ingo W. (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 59. Assim, Ingo Sarlet anota com acerto que a dignidade hegeliana é uma “qualidade a ser conquistada (..) resultado de um reconhecimento” SARLET, Ingo W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 38.

A concepção de Jürgen Habermas acerca da dignidade humana também se insere no contexto de reconhecimento. Em crítica à noção kantiana, Habermas diz que a autonomia da vontade não seria uma “propriedade de seres inteligíveis caída do céu”, mas sim uma “conquista precária das existências finitas” as quais somente têm alguma força pelo reconhecimento de sua “dependência social”.175

Segundo Habermas, o ser humano somente é dotado de dignidade a partir de seu acolhimento “no contexto público de interação de um mundo de vida compartilhada intersubjetivamente”176, pelo qual se dá um processo de identificação gradual como pessoa e

membro de uma comunidade moral. A dignidade da pessoa humana, portanto, somente seria revelada no contexto das relações interpessoais de reconhecimento do outro como ser moral de igual valor. Esse reconhecimento ocorre sob três aspectos: iguais proteção e respeito em sua integridade como indivíduos insubstituíveis, como membros de grupos étnicos ou culturais e como membros da comunidade política177.

Tornamo-nos pessoa, pois, a partir do reconhecimento dos outros, ao passo que a violação da dignidade “consiste sem ignorado, ‘invisível’ para o propósito de legitimação das relações sociais”.178 Assim, para além de resultar da inserção social e da realidade

intersubjetiva, a dignidade da pessoa humana também implica um contexto de vida apropriado e marcado pela necessária inclusão dos sujeitos nas relações de comunicação e em uma realidade social de respeito mútuo.179 Esse respeito , por sua vez, não depende das

características peculiares ou realizações de cada um (appraisal respect), mas sim, do simples fato de serem pessoas.180

Nota-se que, ao passo em que a noção de dignidade inerente implica a noção de liberdade individual negativa e a heteronomia justifica limitações em prol de valores

175 HABERMAS, Jürgen. El futuro de la naturaleza humana: hacia una eugenesia liberal?. Barcelona: Paidós Ibérica, 2002, p. 51 e 53 .

176 Ibidem, p. 52.

177 HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Cambridge: The MIT Press, 2001, p. 496.

178 FORST, Rainier. The Grounds of Critique: On the Concept of Human Dignity in Social Orders of Justification. Normative Orders Working Paper. Goethe-Universität Frankfurt am Main, n. 01/2011, p. 4 . 179 MAHLMANN, Matthias. Human dignity and the culture of republicanism. German law journal. Vol. 11. n. 1, 2009, p. 10-32. Na mesma toada é o posicionamento de Maurício Delgado: “o que se concebe inerente à dignidade da pessoa humana é também, ao lado dessa dimensão estritamente privada de valores, a afirmação social do ser humano. A dignidade da pessoa fica, pois, lesada caso ela se encontre em uma situação de completa privação de instrumentos de mínima afirmação social. Enquanto ser necessariamente integrante de uma comunidade, o indivíduo tem assegurado por este princípio não apenas a intangibilidade de valores individuais básicos, como também um mínimo de possibilidade de afirmação no plano social circundante”. DELGADO, Mauricio G. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 2. ed., São Paulo: LTr, 2004, p. 43-44.

comunitários, a dignidade como reconhecimento implica a necessidade de que a sociedade e o Estado demonstrem o devido respeito pelas particularidades de cada pessoa, por seu estilo de vida e por suas escolhas pessoais.181

O reconhecimento, nos moldes ora expressados, inegavelmente liga-se a uma percepção de intersubjetividade, ou seja, do reconhecimento entre indivíduos no convívio social. O aspecto de reconhecimento da dignidade, todavia, vai além das relações de reconhecimento recíproco de identidade social por meio da comunicação intersubjetiva.

Ao sermos degradados ou insultados de alguma maneira, temos negado o reconhecimento e somos impedidos de termos uma concepção positiva de nós mesmos.182

Nesse sentido, a dignidade como reconhecimento traduz sentimentos únicos e subjetivos de auto-estima de cada pessoa ou grupo. A partir desses parâmetros, a avaliação de uma alegação de violação da dignidade restaria inviabilizada, ao menos do ponto de vista jurídico, por falta de critérios minimamente objetivos de aferição.183

Mais importante para o tema desta obra, porém, é a compreensão da dignidade da pessoa humana como reconhecimento no campo institucional, fundamental na habilidade do ser humano de funcionar com liberdade, em plena capacidade e em paridade de participação no contexto social.184 Esse reconhecimento institucional - que busca origem na já discutida

liberdade objetiva de Hegel – relaciona-se diretamente com políticas de redistribuição185 e

inclusão social 186 e, por consequência, à prestação de bens e serviços.

181 Para Isabel Moreira, essa noção refletiria a própria dimensão social da dignidade: “É intensa a idéia de que há uma dimensão social na dignidade da pessoa humana, porque aquela implica a necessidade de que as demais pessoas e o poder político da comunidade em que o individuo se integra respeitem a sua liberdade e os direitos do indivíduo”. MOREIRA, Isabel. A solução dos direitos: liberdade e garantias e dos direitos econômicos, sociais e culturais na Constituição Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2007. p. 126.

182 HONNETH, Axel. Recognition or redistribution?: changing perspectives on the moral order of society. Theory, Culture & Society, n.18, jun/2001, pp.43–55. No mesmo sentido, Joseph Raz afirma que “as relações das pessoas para com a sociedade em que vivem é um componente fundamental para seu bem estar pessoal. É normalmente vital para o desenvolvimento pessoal que o sujeito possa identificar-se com sua sociedade, não seja dela alienado e que sinta um membro completo da mesma”. RAZ, Joseph. Free expression and personal identification. Oxford Journal of Legal Studies. n. 11, 1991, p. 312.

183 RAO, Neomi, Three concepts of dignity in Constitutional Law. Notre Dame Law Review, Vol. 86, No. 1, maio/2011, p. 189/249 .

184 TAYLOR, Charles et al. Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994, passim.

185 ZURN, C. Recognition, redistribution and democracy: dilemmas of Honneth’s critical social theory. European Journal of Philosophy, vol.31, no.1, 2005, p.89–126.

186 LISTER, Ruth. A politics of recognition and respect: Involving people with experience of poverty in decision-making that affects their lives. Social Policy and Society. Vol. 1, jan/2002, p. 37–46.