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TÍTULO I – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

2. DIGNIDADE SOCIAL DA PESSOA HUMANA

2.1 Dignidade social em Hegel

A filosofia social de Hegel, nos moldes articulados em sua obra “Princípios da Filosofia do Direito” (1821), apresenta uma visão da ordem social racional que, apesar de certos arcaísmos óbvios, é ainda de relevância para os interessados em conciliar os melhores aspectos do pensamento social e liberal, conciliando a preocupação com a dignidade e

111 CICERO, Marcus Tullius. De Officiis. Boston: Little, Brown, and Co., 1887. Disponível em: http://oll.libertyfund.org/title/542/83344. .

112 “O próprio conhecimento da Verdade e da Luz que ilumina a mente é expresso por Agostinho em termos de amor: ‘quem conhece a Verdade conhece tal Luz, e quem conhece essa Luz conhece a eternidade. 0 amor é

aquilo que conhece’”. Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dário, op. cit., p. 100 (grifo no original).

113 No mesmo sentido são as ponderações do Papa Leão I, o Grande, também considerando como um dos grandes responsáveis pela construção da idéia cristã de dignidade. Cf. LEWIS, Milton. A Brief History of Human Dignity: Idea and Application. In MALPAS, J. e LICKISS, N. Perspectives on Human Dignity: A Conversation, Springer, 2007, p.93–105.

direitos dos indivíduos com a necessidade humana de ligações comunitárias profundas e duradouras.

A tese fundamental de Hegel é que uma única idéia, a idéia de liberdade, provê os recursos filosóficos necessários para fundamentar uma ampla concepção de uma boa sociedade: o que faz instituições sociais boas, na visão hegeliana, é que elas têm um papel indispensável na “realização” dessa liberdade114e, por conseqüência, da dignidade da pessoa

humana.

A noção hegeliana de liberdade, porém, deve ser devidamente compreendida. Nesse sentido, é indispensável observar que Hegel apresenta três concepções de liberdade, dentro de cada uma das divisões de sua obra “Princípios da Filosofia do Direito”: uma “liberdade pessoal”, uma “liberdade moral” e, finalmente, uma “liberdade substancial” ou social. 115

Embora a última concepção seja sem dúvidas a mais relevante para os objetivos desta obra, na ordem social racional de Hegel esses três tipos de liberdade são concretizados em conjunto, que acaba por tornar a liberdade hegeliana uma noção complexa, mas única. A liberdade social, por exemplo, pressupõe a realização de condições que possibilitem a liberdade pessoal e moral.116 Assim sendo, cumpre tecer algumas considerações acerca de

todas elas para chegar adequadamente ao ponto de interesse central.

A liberdade pessoal consiste na escolha livre e indeterminada de objetivos. A pessoa humana é concebida como detentora de uma gama de desejos e instintos que a motiva a agir, mas que não necessariamente a determina a agir em conformidade com eles. A pessoa tem a capacidade de rejeitar esses instintos e desejos ou decidir agir com base neles, 117 razão pela

qual é considerada livre simplesmente pela virtude dessa escolha, independentemente de sua motivação. A liberdade pessoal realiza-se, destarte, quando é assegurada ao sujeito uma esfera de ação privada na qual não há embaraços para que possa perseguir quaisquer objetivos por ele escolhidos.

A liberdade moral, por sua vez, está presente sempre que o sujeito, além de escolher quais desejos quer perseguir concretamente, assim o faz em consonância como princípios

114 HEGEL, Georg W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, § 4.

115 A “liberdade pessoal” fundamente a primeira parte da obra, “Direito abstrato” (§§ 34-104); A “liberdade moral” é tratada na segunda parte, “A moralidade subjetiva” (§§ 105-141); e a “liberdade substancial” – aqui denominada social - é o tópico da terceira parte, “A moralidade objetiva” (§§ 142-360). HEGEL, Georg W. F. Princípios da Filosofia do Direito.

116 NEUHOUSER, Frederick. Hegel´s social philosophy. In. BEISER, Frederick, C. The Cambridge Companion to Hegel and nineteenth century philosophy. New York: Cambrigde University Press, 2008, p. 210.

auto-determinados. Mais precisamente, sujeitos morais estabelecem objetivos para si de acordo com sua própria compreensão do que é moralmente bom. Nesse ponto, Hegel claramente espelha-se na noção de autonomia da vontade de Kant, na qual a conduta é pautada pelo imperativo categórico determinado pela razão humana. Tanto é que aponta como própria origem histórica da liberdade moral a formulação kantiana de sujeito moral autônomo, limitado apenas pelos princípios que derivam de sua própria vontade racional.

A autonomia associada à subjetividade moral é mais complexa que a pessoal, não somente porque exige a concordância com princípios normativos, mas também porque tais princípios são auto-determinados, no sentido de que o sujeito moral tem a capacidade de refletir racionalmente os princípios que segue e, com base nisso, afirmá-los, rejeitá-los ou revisá-los. A liberdade moral, pois, é realizada quando o sujeito adota uma visão de bem racionalmente construída, determina seus objetivos em face disso e age concretamente nesse propósito.118

Em contraste com a liberdade moral e pessoal, nas quais a ênfase é dada no indivíduo isolado, a liberdade social consiste nas formas de participação e integração nas instituições sociais: família, sociedade e Estado.119 A liberdade social é construída por Hegel

no intuito de demonstrar a possibilidade de integração da liberdade pessoal e moral no campo social, completando a aventada noção complexa de liberdade.

Para Hegel, o ser humano socialmente livre tem uma relação subjetiva com a ordem social, mantendo-se, todavia, sua individualidade, ou seja, como um sujeito titular de interesses e direitos diversos daqueles da comunidade que integra. Permanece também como sujeito moral, hábil a avaliar a validade moral das práticas sociais.

Todavia, aponta que a realização de um ser humano livre depende de algo além da vontade individual do sujeito, uma vez que pressupõe vários processos sociais de formação

118 Complementa Hegel quanto a autonomia do sujeito: “É por isso que as suas ações, como fins que ela introduz na objetividade exterior, não lhe devem ser imputadas como justas e injustas, boas e más, legais e ilegais, senão segundo o conhecimento que ela tem do valor destas ações nesta objetividade.” HEGEL, Georg W. F., Princípios da Filosofia do Direito., § 132.

119 Para Hegel, “o conceito desta Idéia só será o espírito como algo de real e consciente de si se for objetivação de si mesmo, movimento que percorre a forma dos seus diferentes momentos. É ele: a) O espírito moral objetivo imediato ou natural: a família. Esta substancialidade desvanece-se na perda da sua unidade, na divisão e no ponto de vista do relativo; torna-se então: b) Sociedade civil, associação de membros, que são indivíduos independentes, numa universalidade formal, por meio de carências, por meio da constituição jurídica como instrumento de segurança da pessoa e da propriedade e por meio de uma regulamentação exterior para satisfazer as exigências particulares e coletivas. Este Estado exterior converge e reúne-se na: c) Constituição do Estado, que é o fim e a realidade em ato da substância universal e da vida pública nela consagrada”. Ibidem, § 157.

por meio da educação (Bildung).120 Considerando que “o destino dos indivíduos está em

participarem numa vida coletiva” 121, os sujeitos morais devem socializar-se por meio de um

processo dialético de mediação de vontades livres, pelo qual percebem a limitação de suas ações por princípios normativos abstratos e os obedecem voluntariamente pelo fato de os reconhecerem como bons.

A liberdade pessoal e moral do ser humano, pois, somente são realizáveis quando as ações de um sujeito são passíveis de restrições principiológicas abstratas, determinadas pelo respeito ao outro. De acordo com Hegel, o imperativo do direito é “sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas”, de modo que “nesta identidade da vontade universal e da particular, coincidem o dever e o direito e, no plano moral objetivo, tem o homem deveres na medida em que tem direitos; e direitos na medida em que tem deveres.”122

A completa autodeterminação humana seria impossível, no sentido de que, isoladamente e fora de seus papéis sociais, não se pode atribuir concretamente o que é bom. Sem uma noção concreta de projetos e formas de vida que promovam de forma efetiva a liberdade e o bem-estar de todos, não é possível determinar quais ações concretas devem tomadas para atingir o objetivo de fazer o bem.

Nesse ponto, surge em Hegel a principal e até hoje mais recorrente crítica à teoria kantiana da moralidade subjetiva e da dignidade da pessoa: a de que tais conceitos seriam “abstratos”, “vazios” e “formais” 123, e que, por isso, seriam insuficientes, por si só, para

determinar concretamente uma vontade verdadeiramente livre.

Embora concorde com Kant quanto à necessidade de estabelecimento de máximas universais, Hegel critica a ausência de conteúdo dos conceitos sob o fundamento de que indeterminação possibilita a arbitrariedade subjetiva e inviabiliza a real experiência humana de liberdade. A título de precisão, vale transcrever as palavras de Hegel:

120 Sobre o conceito de Bildung em Hegel, tema que foge do âmbito desta obra, cf. WOOD, Allen W. Hegel on education. In. RORTY, Amélie O. (ed.) Philosophy as education. London: Routledge, 1998.

121 HEGEL, Georg W. F., Princípios da Filosofia do Direito, § 258. 122 Ibidem, § 36, § 155.

123 Ibidem, §§ 134-137, 141. Tais críticas foram repetidas por Arthur Schopenhauer, que condenou o uso da expressão “dignidade humana” por Kant sob o argumento de ser desprovida “de uma base ética real, ou mesmo de qualquer base que lhe dê um significado inteligível” SCHOPENHAUER, Arthur. The basis of morality. Apud MCCRUDEN, Christopher. Human dignity and judicial interpretation of human rights. European Journal of International Law. Vol. 19, n. 4, 2008, p. 655-724. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1162024 . Trata-se, como se disse, de crítica recorrente, já enunciada, inclusive, nas considerações introdutórias deste capítulo.

A afirmação do ponto de vista simplesmente moral que não se transforma em conceito de moralidade objetiva reduz aquele progresso a um vão formalismo e a ciência moral a uma retórica sobre o dever pelo dever. Poder-se-á decerto recorrer a uma matéria exterior e assim chegar a deveres particulares, mas desta definição do dever como ausência de contradição ou como acordo formal consigo - que não é mais do que a afirmação da indeterminação abstrata - não se pode passar à definição dos deveres particulares, e quando um conteúdo particular de comportamento chega a ser considerado, aquele princípio não oferece o critério para saber se trata ou não de um dever. Pelo contrário, permite ele justificar todo o comportamento injusto ou imoral. A mais rigorosa fórmula kantiana, a da capacidade de uma ação ser representada como máxima universal, introduz decerto a representação mais concreta de uma situação de fato, mas não tem para si nenhum princípio novo, outro que não seja aquela ausência de contradição e a identidade formal. 124

Considerando o fato de que as idéias de liberdade e de dignidade de nada servem para o ser humano se ele não pode experimentá-las no mundo real, somente a determinação - o reconhecimento das possibilidades do real – possibilitaria a efetivação de comportamentos. Essa determinação, pois, evita que “a liberdade permaneça na abstração” e “tornar-se joguete do livre arbítrio (...) [e] justificar um ato ilícito ou práticas desabonáveis”.125 Tem em vista a já

referida concepção hegeliana de que o ser humano constrói-se pelas relações sociais, evidencia-se que a liberdade determina-se também no campo da eticidade. 126

Para Hegel, então, as instituições sociais são encarregadas de socializar seus membros para que adquiram a capacidade subjetiva de realizar sua liberdade pessoal e moral, bem como de prover uma conjuntura social que possibilite a definição de projetos pessoais e que determine concretamente sua concepção de bem. Logo, a realização sistemática da liberdade pessoal e moral exige concretização nas instituições sociais - no que Hegel denomina de “segunda natureza”127 – sendo objetivo fundamental dessas instituições

124 HEGEL, Georg W. F., Princípios da Filosofia do Direito, § 135. O próprio imperativo categórico de Kant, em face de sua abstração, seria intrinsecamente arbitrário e corruptível, de modo que o Bem, na esfera da moralidade, permanece não somente irrealizado, mas também indistinto do Mal. Nesse sentido, Cf. SEDGWICK, Sally, S. Hegel's critique of the subjective idealism of Kant's Ethics. Journal of the History of Philosophy n. 26:1. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, Jan/1988, P. 89-105

125 NOVELLI, Pedro A. A crítica de Hegel ao conceito de lei em Kant. Revista eletrônica estudos hegelianos. N. 99, dez/2008, p. 101-116. Disponível em: www.hegelbrasil.org

126 Segundo Thadeu Weber, “a eticidade é o campo da moralidade social A eticidade representa a realização do conceito da liberdade, síntese final do processo de desdobramento da idéia da liberdade. A eticidade tem a função de tornar compatíveis as formas do Direito abstrato, por um lado, e a moralidade subjetiva, por outro. A eticidade não se situa no nível da contingência das opiniões subjetivas e caprichos pessoais, mas no nível das instituições e leis existentes em si e para si.” WEBER, Thadeu. Hegel: liberdade, Estado e história. Veritas, v. 38, nº 149, mar. 1993, p 10.

127 WEBER, Thadeu. Ética e Filosofia Política: Hegel e o Formalismo Kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, p. 128 e 130. Vale anotar que a “segunda natureza mencionada por Hegel (..) é tudo aquilo que o espírito objetivo, enquanto homem, põe por meio de sua própria criação. Portanto, a cultura, as Instituições, o direito e

promover a conciliação dos interesses particulares e dos interesses coletivos e viabilizar a realização efetiva da liberdade individual.

Isso não significa, todavia, que a liberdade social possa ser compreendida como mero instrumento de realização da liberdade pessoal e moral, de cunho predominantemente individual. Conforme já se observou, a concepção hegeliana de liberdade é complexa, e a liberdade social por si só deve ser compreendida como a garantia de autodeterminação das próprias instituições sociais composta por esses indivíduos.128

Por outro lado, convém frisar que a liberdade social de Hegel também não subordina a liberdade individual a uma “liberdade geral” de natureza totalitária.129 Na

verdade, embora seja inerente à ordem social em si mesma considerada, a liberdade social é realizada também pelos indivíduos que a compõem. Isso se dá na medida em que sua participação nas instituições sociais assegura as condições de sua liberdade pessoal e moral e realiza suas identidades particulares. Pela afirmação das leis e normas sociais que o governa, o homem identifica sua participação social com tendo fonte em sua própria vontade autônoma.130

A idéia de liberdade social, segundo o próprio Hegel, constrói-se a partir da unidade da liberdade objetiva e da liberdade subjetiva.131 A liberdade objetiva consistiria nas leis e

instituições que, por sua simples existência ao longo do tempo, garantiriam a liberdade ao criar condições sociais para a liberdade pessoal e moral do indivíduo, independentemente da relação desse indivíduo com essas leis e instituições.

a história não são da ordem da natureza física, estática, mas do Espírito ativo que busca seu aperfeiçoamento no tempo” SOUZA, Roberta B. de. Aproximações entre os conceitos de segunda natureza em Hegel e Pascal. Polymatheia: Revista de Filosofia. Vol. IV, n. 5. Fortaleza: Ed. Universidade Estadual do Ceará , 2008, p. 118. 128 As palavras de Hegel acerca do tema retomam a noção kantiana de lei universal: “A liberdade concreta consiste em que a individualidade pessoal e seus interesses particulares tenham seu total desenvolvimento e o reconhecimento de seu direito (no sistema da família e da sociedade civil), ao mesmo tempo que se convertem, por si mesmos, em interesse geral, que reconhecem com seu saber e sua vontade como seu próprio espírito substancial e tomam como fim último de sua atividade. Desse modo o universal não se cumpre, nem tem validade sem o interesse, o saber e o querer particular, nem o indivíduo vive meramente para estes últimos como uma pessoa privada, sem querer ao mesmo tempo o universal e ter uma atividade consciente dessa finalidade.” HEGEL, Georg W. F. apud WEBER, Thadeu, Ética e Filosofia Política, p. 133-134.

129 Com base nessa interpretação equivocada de Hegel é que se construiu, por exemplo, a doutrina filosófica do fascismo italiano, consubstanciada especialmente na obra de Giovanni Gentile. GENTILE, Giovanni, Origini e dottrina del fascismo. Roma, Libreria del Littorio, 1929.

130 NEUHOUSER, Frederick. Hegel's social Philosophy. In: BEISER, Frederick, C. The Cambridge Companion to Hegel and nineteenth century philosophy. New York: Cambrigde University Press, 2008, p. 212. 131 Em suas palavras: “Considerada abstratamente, a racionalidade consiste essencialmente na íntima unidade do universal e do indivíduo e, quanto ao conteúdo no caso concreto de que aqui se trata, na unidade entre a liberdade objetiva, isto é, entre a vontade substancial e a liberdade objetiva como consciência individual, e a vontade que procura realizar os seus fins particulares; quanto à forma, constitui ela, por conseguinte, um comportamento que se determina segundo as leis e os princípios pensados, isto é, universais. Esta idéia é o ser universal e necessário em si e para si do espírito.” HEGEL, Georg. Princípios da Filosofia do Direito, § 258.

Entretanto, para que o indivíduo seja socialmente livre de forma integral, é preciso também que tenha uma relação consciente com essas leis e instituições que o tornam livre objetivamente. Para Hegel, pois, a liberdade subjetiva deve ser essencialmente prática – realizada por meio da ação – e se distingue uma liberdade meramente especulativa, derivada da compreensão filosófica do mundo.

Na obra de Hegel, um indivíduo socialmente livre identifica-se a partir do papel que desempenha nas instituições sociais (como pai, professor, cidadão, etc.) Contudo, tal afirmação não implica uma retomada da já referida noção romana de dignitas hominis, reconhecida ao sujeito unicamente em função de uma particular posição social ou funcional por ela ocupada.

O indivíduo não se resume ao papel social por ele desempenhado, mas é a partir da liberdade social que o sujeito adquire identidade como ser particular e “é enquanto tal que cada um se mantém e só por intermédio do universal se subsiste na vida e se é reconhecido tanto na própria representação como na dos outros”.132 Por meio da participação social, o ser

humano adquire a “satisfação de sua essência substancial” 133 e sua “dignidade” 134.

Portanto, nota-se em Hegel o reconhecimento da dignidade da pessoa humana no plano da eticidade e dentro de um contexto social, no que se diferencia do paradigma kantiano de dignidade ontológica.135 Em sua obra “Filosofia da Religião”, Hegel trata da

questão nos seguintes termos:

O homem não possui dignidade por meio daquilo que ele é como vontade imediata, mas apenas na medida em que conhece um ser ser-em-si um ser- para-si, algo substancial, e submete a esse ser a sua vontade natural e a adapta a ele. Apenas pelo suprassumir da indomabilidade natural e pelo reconhecimento de que um universal, um ser-em-si e um ser-para-si, seria verdade, ele possui uma dignidade, e só então a vida vale algo.136

A moralidade subjetiva de Hegel é, assim, estruturada no argumento de que a racionalidade do mundo social moderno deriva do fato de possibilitar aos seus membros desenvolver e expressar suas próprias identidades, diferentes e complementares. Cada uma

132 Ibidem, § 207.

133 Ibidem, § 261. 134 Ibidem, § 152

135 Observa Ingo W. Sarlet que a dignidade da pessoa humana em Hegel não se funda em “qualidades (ou faculdades) inerentes a todos os seres humanos” ou na “racionalidade”. SARLET, Ingo W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 38.

136 HEGEL, Georg W. F. Apud SEELMAN, Kurt. Pessoa e Dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 51-52.

dessas identidades deve ser valorada socialmente e delas decorrem a plena realização do ser humano.137

Retomando a noção de liberdade objetiva em Hegel, tem-se que as referidas instituições sociais nas quais o ser humano desenvolve sua dignidade – família, sociedade e Estado – também devem promover as condições sociais sem as quais essa dignidade não pode ser realizada.

A formação do sujeito pela educação (Bildung) – já referenciada como pressuposto da liberdade social – é dever da ordem social racional, de modo a ensejar que seus membros tornem-se agentes dotados de capacidades subjetivas essenciais a sua liberdade social e, consequentemente, a sua dignidade. Sem essa formação, o sujeito sequer pode ambicionar a liberdade e a dignidade, razão pela ela integra a liberdade objetiva: a educação (Bildung) é dever social independentemente da vontade ou consentimento do sujeito, pois somente através dela é que o sujeito adquire as condições para ao menos almejar sua liberdade.

Cabe então à família, à sociedade civil e ao Estado a realização dessa formação e somente a participação nessas instituições enseja ao indivíduo a consciência de si próprio e dos outros como sujeitos que, embora existencialmente diferentes, são essencialmente iguais.

Mais precisamente, é a liberdade social, construída concretamente, que permite a percepção do seres humanos como iguais em essência, portadores dos mesmos direitos não em razão de suas qualidades pessoais, mas simplesmente pelo fato de serem humanos. Assim,