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TÍTULO I – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

2. DIGNIDADE SOCIAL DA PESSOA HUMANA

2.2 Dignidade social e heteronomia

A já referida noção de autonomia presente na concepção de dignidade inerente traduz uma relação simbiótica entre dignidade e individualismo: enquanto a noção de dignidade é usualmente derivada na premissa do individualismo, a construção da própria idéia de individualismo tem a dignidade como valor central. 139 A dignidade da pessoa humana

seria, assim, “o axioma moral (ou religioso) que reconhece o valor supremo e intrínseco do indivíduo”140

Entretanto, a própria “Fórmula do Fim em Si Mesmo” já traz uma noção de limite à autonomia ao impor uma ação de natureza negativa, no sentido de não se deve tratar as pessoas unicamente como meios para fins subjetivos.141 Consequentemente, qualquer

conduta humana é tida como atentatória à dignidade da pessoa humana sempre que se utilizam outros seres humanos como instrumentos voltados à satisfação de interesses subjetivos.142

Logo, embora venha acompanhada de uma idéia abstrata de indivíduo livre para exercer as próprias faculdades jurídicas143, a dignidade inerente de matriz kantiana já encontra

limitação na liberdade dos outros.144 Assim, o componente de autonomia da dignidade

inerente já traz em si uma limitação social que faz com que não possa ser confundido com “a liberdade no sentido mais usual da palavra – qual seja, o da ausência de constrangimentos. A

139 DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da sociedade moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985, p. 25. Segue o autor explicando que “a emergência do indivíduo como valor” deriva do “individualismo filosófico”, uma vez que “a razão, universal em princípio, é posta em prática por meio da pessoa em particular que a exercita”. Idem, p. 40.

140 LUKES, Steven. Individualism, Colchester: University of Essex/ ECPR, 2006, p. 54 .

141 Observa Pedro Galvão que “o imperativo categórico não nos proíbe de tirar partido dos serviços e dos talentos dos outros, o que acontece, por exemplo, numa simples consulta médica; proíbe-nos, sim de tratar as pessoas como meros instrumentos, o que se verifica emblematicamente no caso da escravatura”. In KANT, Imannuel, op.cit., p. XVI (nota introdutória).

142 Jorge Reis Novais tem como violada a dignidade da pessoa humana “quando a pessoa é degradada ao nível de uma coisa ou de um objeto do atuar estatal, na medida em que a pessoa deixe de ser considerada como sujeito autônomo e fim em si mesmo para ser tratada como instrumento ou meio de realização de fins alheios”. NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, p. 57. 143 Reis Novais nota que, a partir da premissa de não coisificação, caberia ao “indivíduo (..), primacialmente, a configuração e densificação do conteúdo preciso de sua dignidade.” NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Ed., 2004, p. 58.

dignidade humana impõe constrangimentos a todas as ações que não tomem a pessoa como fim”.145

Ao tratar do tema sob o ponto de vista liberal, John Stuart Mill já admitia que o propósito de “impedir dano a outrem” legitimaria o uso de poder para limitar a liberdade individual. Entretanto, defende que o “indivíduo não pode legitimamente ser compelido a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, porque tal seja melhor para ele, porque tal o faça mais feliz, porque na opinião dos outros tal seja sábio ou reto”. 146

Assim, embora seja limitada pela dignidade do outro, a dignidade inerente permanece neutra sobre diferentes concepções de como os indivíduos devem viver, quais preceitos morais ou culturais que devem observar ou mesmo quais os propósitos que devem perseguir. Nesse sentido, o indivíduo seria soberano “sobre si mesmo, sobre o seu próprio corpo e espírito”, nas palavras de Stuart Mill.147

Todavia, do ponto de vista social, a dignidade da pessoa humana é interpretada , no contexto de formação social dialética de Hegel, a partir do “reconhecimento dos valores (assim como princípios e direitos fundamentais) socialmente consagrados pela e para a comunidade de pessoas humanas.”148

Por isso, a dignidade da pessoa humana por vezes é interpretada como elemento de justificação para a vedação de condutas que sejam tidas como incompatíveis com determinados valores comunitários e promover outras tidas como “dignificantes” por estarem em conformidade com padrões tidos como socialmente desejáveis.

A dignidade, nesse sentido, é usada então como “um ideal social para encorajar certos tipos de comportamento julgados como desejáveis por normas da comunidade.”149

Com esse intuito, a preservação da dignidade da pessoa humana deixa de depender apenas da preservação de um espaço de liberdade individual livre de ingerências para ser garantida também a partir da restrição da liberdade de escolhas que, segundo uma visão comunitária, poderiam interferir com o ideal de dignidade do indivíduo. Nessa acepção, a dignidade é tida

145 VILHENA, Oscar V. Direitos Fundamentais – uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006, p.67

146 MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. 2. ed. Clássicos do Pensamento Político; v. 22. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991, p. 53.

147 Idem. Loc. Cit.

148 SARLET, Ingo W. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico- constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. 2007, p. 370. No mesmo sentido, PÉREZ LUÑO, A. E. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución, 8 ed. Madrid: Tecnos, 2003, p. 318.

149 RAO, Neomi, Three concepts of dignity in Constitutional Law. Notre Dame Law Review, Vol. 86, No. 1, maio/2011, p. 224 .

como “heteronomia”150 na medida em que se impõe como limite social à liberdade individual

para a promoção de uma concepção comunitária do que é valioso ou bom.151

Do ponto de vista prático, pode-se observar a aplicação da noção de dignidade social como heteronomia, por exemplo, na vedação do lançamento de anões como forma de entretenimento152, na negativa de licença para realização dos denominados “peep-shows”153,

na proibição do uso de véus e outras vestimentas islâmicas (hijab) por mulheres154, dentre

outros. Em todas essas hipóteses, nota-se que a vontade do indivíduo de ser lançado contra a parede por dinheiro, de se apresentar em espetáculos sensuais ou de utilizar determinada vestimenta foi minorada ou mesmo eliminada em favor da proteção ou promoção de concepções sociais majoritárias do que é dignidade humana.

Observa-se assim que a visão heterônoma de dignidade somente é possível a partir da constatação de que não se pode pretender uma completa neutralidade social ou

150 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de C.V. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. Revista da EMERJ, v. 10, n. 50, 2010, p. 35-55.

151 “Em suma, pode-se dizer que a ‘dignidade como heteronomia’ traduz uma ou algumas concepções de mundo e do ser humano que não dependem, necessariamente, da liberdade individual. No mais das vezes, ela atua exatamente como um freio à liberdade individual em nome de valores e concepções de vida compartilhados. Por isso, a ‘dignidade como heteronomia’ é justificada na busca do bem para o sujeito, para a preservação da sociedade ou comunidade, para o aprimoramento moral do ser humano, dentre outros objetivos”. BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de C.V. A morte como ela é, p. 47.

152 Commune de Morsang-sur-Orge v. Societé Fun Prod. et M. Wackenheim , n. 136727, Conseil d'Etat, 27/10/1995. Disponível em: http://www.lexinter.net/JPTXT2/arret_commune_de_morsang_sur_orge.htm. O conhecido caso diz respeito à proibição, pela cidade francesa de Morsang-sur-Orge, da prática de atividade denominada “lançamento de anões”, sob o argumentando de que aquela atividade violava a ordem pública por ser contrária à dignidade da pessoa humana. O Sr. Wackenheim, o próprio anão que era arremessado, questionou a interdição, argumentando tinha direito ao trabalho e à livre iniciativa . O Conselho de Estado francês, todavia, manteve a interdição sob o fundamento de que o respeito à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da ordem pública. Para uma análise pormenorizada da questão, cf. GOMES, J. B. B. O Poder de Polícia e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na jurisprudência francesa. ADV Advocacia Dinâmica, p. 17 - 20, 01 dez. 1996.

153 BverwGE 64, 274 (1981). Disponível em: http://www.servat.unibe.ch/dfr/vw064274.html. Nesse caso, foi negado pelo Tribunal Administrativo Federal da Alemanha (Bundesverwaltungsgericht) a possibilidade de funcionamento de estabelecimento onde se praticava o chamado “peep-show”, no qual uma mulher, completamente sem roupas, dança, em uma cabine fechada, mediante remuneração, para um espectador individual, mesmo que sob o argumento de que a mulher desempenhava a função por livre vontade, pois “a dignidade da pessoa humana é um objetivo e valor inalienável, cujo respeito não pode ficar ao arbítrio do indivíduo”.

154A Lei n. 2004-228 de 15 de março de 2004 introduziu uma emenda ao Código de Educação da França proibindo a “manifestação ostensiva” de artigos religiosos. Disponível em: http://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000417977&dateTexte=&categorieLi en=id. Foi considerado que o uso dos véus vulneraria a dignidade feminina e ira de encontro aos “valores franceses”, sem se considerar a hipótese da escolha voluntária do uso de véus pelas mulheres mulçumanas como expressão de sua religiosidade. Para maiores considerações, cf. SCOTT, Joan W. The politics of the veil: the public square. Princeton: Princeton University Press, 2007; ALLEN, Anita L. Berkeley Journal of Gender, Law & Justice, Vol. 23, Pg. 208, 2008.

governamental sobre temas de justiça ou moral155 e de que a dignidade, embora seja atributo

pessoal, depende de que a comunidade respeite e promova valores e direitos que reconheça como virtuosos ou passíveis de proteção e promoção156.

Não se pode ignorar, por exemplo, que o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo não se restringe à questão de autonomia individual na escolha do parceiro; o foco central do debate envolve justamente o reconhecimento social de quais os propósitos do casamento, a partir de uma visão aristotélica de que os propósitos de determinada instituição social são avaliados a partir da concepção social de seu valor e virtudes.157

Logo, uma visão individualista da dignidade nos estritos moldes do liberalismo clássico, numa preponderância plena do indivíduo sobre a sociedade, não assegura sua concretização. A dignidade da pessoa humana inegavelmente depende de uma valoração social de propósitos e metas voltadas para a preservação e desenvolvimento da sociedade, dentro de um contexto de vida compartilhada.158

Na verdade, a dignidade heterônoma faz-se presente na necessária limitação individual a partir de compromissos políticos – geralmente previstos nos ordenamentos constitucionais – de democracia, pluralismo, proteção da família, erradicação da pobreza ou

155 Como pretendido, em linhas gerais, por John Rawls. Cf. RAWLS, John. Liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000.

156 MARTÍNEZ, Miguel Angel Alegre. La dignidad de la persona como fundamento del ordenamiento constitucional español. León: Universidad de León, 1996, p. 19.

157 Sobre o tema, Michael Sandel observa que “se o governo fosse realmente neutro quanto ao valor moral de todos os relacionamentos íntimos voluntários, então o Estado não teria fundamento para limitar o casamento à duas pessoas; a poligamia consensual também se qualificaria. Na verdade, se o Estado realmente quisesse ser neutro e respeitar quaisquer escolhas que os indivíduos desejassem fazer (..) deixaria o encargo de conferir reconhecimento a qualquer casamento. (..) Então, quando olhamos de perto o caso do casamento de pessoas do mesmo sexo, concluímos que não pode fundar-se nas idéias de não discriminação e liberdade de escolha. Para decidir o que deveria qualificar-se como casamento, temos que analisar o propósito do casamento e as virtudes que ele honra. E isso nos leva a um polêmico terreno moral, no qual não podemos permanecer neutros quanto à concepções concorrentes da boa vida”. SANDEL, Michael J. Justice: What’s the right thing to do? New York: Penguin Books, 2009, cap. 10. No momento da elaboração deste texto, o tema encontra-se sob exame da Suprema Corte dos EUA, nos casos United States v. Windsor, No. 12-307 e Hollingsworth v. Perry, No. 12-144. O Supremo Tribunal Federal do Brasil, por sua vez, reconheceu a “união estável” entre pessoas do mesmo sexto no julgamento, em 5/5/2011, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132. Disponíveis em: www.stf.jus.br

158 Em sentido oposto, Ronald Dworkin destaca que a autenticidade – tida como pressuposto da dignidade – requer que o indivíduo busque um modo de vida que pareça certo para si, que esteja em conformidade com sua situação e valores que acha apropriado, e não um que seja derivado sem reflexão de convenções ou das expectativas ou demandas dos outros. Assim, embora admita a impossibilidade de se escapar das influências sociais e culturais nos modos de vida que se escolha, diz que “embora não possamos escapar das influências, devemos resistir a dominação”. Por isso, independentemente da gama de opções de escolha de vida oferecida ao sujeito, não haveria autenticidade – e, por conseqüência, dignidade – “se outros proíbem a ele algumas opções que, de outra forma, estariam disponíveis, porque eles consideram tais opções indignas. (..) A autenticidade é vulnerada quando uma pessoa é forçada a aceitar o julgamento de terceiros em vez do seu próprio sobre os valores ou metas que sua vida deve exibir”. DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 209/212 .

promoção de solidariedade social, dentre outros, que nos permitem “identificar uma sociedade política ligada por valores sociais e morais comuns”.159 Uma sociedade orientada

pelo respeito à dignidade humana deve ter como objetivo o bem comunitário, que implica respeito mútuo entre as pessoas, iguais em dignidade. Então, é justamente em virtude de sua plenitude individual que os seres humanos têm obrigações na ordem social, embora, pelo mesmo motivo, não se possa admitir sua anulação como pessoa pela submissão integral à ordem social. 160

A dignidade social como heteronomia, pois, deve ser compreendida a partir da possibilidade de limitações individuais em virtude de sua vida comunitária, que, nas palavras de Oliveira Ascensão, implica “a responsabilização de cada membro pelos fins da comunidade e impõe eticamente a sua participação nos esforços coletivos”. O mesmo autor conclui, com acerto, que “a realização humana que se supõe não é uma realização egoísta, um abandono ao arbítrio ou um isolamento social” e sim “uma realização de valores e uma responsabilização pelos outros”. Como conseqüência, cada ser humano deve ser direcionado à “comunhão com os outros”, responsabilizado “pelos fins da comunidade” e eticamente vinculado a uma “participação nos esforços coletivos”. 161