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Dignidade da Pessoa Humana como conceito jurídico indeterminado

TÍTULO I – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

2. DIGNIDADE SOCIAL DA PESSOA HUMANA

3.1 Dignidade da Pessoa Humana como conceito jurídico indeterminado

Nos termos do que já se mencionou, os princípios são dotados de certo grau de indefinição prévia. Não obstante revelem um núcleo fixo com maior grau de definição, há sempre uma zona periférica que dá margem a dubiedades e discussões quanto ao seu conteúdo e extensão.292

Os conceitos jurídicos indeterminados, por sua vez, são justamente aqueles em que, estruturalmente, essas zonas periféricas “apresentam-se de forma extensa e difusa e as zonas nucleares de forma reduzida”293. Conforme Karl Engish, são conceitos jurídicos cujo

289 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 258. Nesse ponto, é interessante observar que “a imprecisão não se encontra nos signos abstratos da comunicação, nem nos objetos concretos (coisas, fatos) que existem ou ocorrem, mas na subsunção aos signos desses múltiplos objetos que cotidianamente com eles desejamos indicar”. ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Discricionariedade e motivação do ato administrativo. In. LIMA, Sérgio Mourão Corrêa (Coord). Temas de Direito Administrativo: estudos em homenagem ao Professor Paulo Neves de Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 110.

290 ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 10. ed. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 2008, p. 208. 291 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 133-134,

292 Pode-se afirmar, assim, que “todos os conceitos revelam uma zona fixa (um núcleo) e uma zona periférica. No domínio do núcleo conceitual são estabelecidas as certezas; onde se inicia a zona periférica, as dúvidas começam”. LAMY, Marcelo. Conceitos indeterminados: limites jurídicos de densificação e controle. Revista. Internacional d´Humanitats. Barcelona, ano XIX, n. 31, 2007, p. 54.

293 CORREIA, José Manuel Sérvulo Correia. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos. Coimbra: Almedina, 1987, p. 120. Essa afirmação encontra ressonância com a doutrina de Philipp Heck, que aponta um núcleo fixo (Bregriffkern) ou zona de certeza e um halo conceitual (Begriffhof) ou zona de dúvida, vago e nebuloso nos conceitos jurídicos indeterminados. HECK, Philipp apud ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, p. 209.

“conteúdo e extensão são em larga medida incertos” 294, cabendo à interpretação

contextualizada o esclarecimento, em cada situação, de seu significado concreto.295

Muitas vezes somente se faz possível identificar-se uma zona nuclear de certeza negativa (o que não é) de determinado conceito - permitindo afastar as claras violações - mas não se mostra viável, ao menos de forma geral, verificar uma zona de certeza positiva (o que é), persistindo, assim, uma grande zona cinzenta de situações limítrofes e duvidosas.

É justamente nesse contexto que se apresenta a dignidade da pessoa humana como conceito jurídico-normativo.

Pelo fato da dignidade da pessoa humana ser um conceito filosófico e universal, ela relaciona-se e é utilizada como fundamento de múltiplas visões e ideologias políticas, econômicas e sociais, o que, paradoxalmente, produz a constatação que ela não tem, a priori, um conteúdo ou significado concreto ou essencial único ou geral, aplicável a toda e qualquer hipótese concreta296.

Configura a dignidade “uma noção intuitiva, mais fácil de ser percebida do que definida” 297, razão pela qual há uma facilidade maior – ou, na verdade, uma dificuldade

menor – de se fixar um núcleo de identificação negativa, no sentido de ser apurado, em cada

294 ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, loc. cit.

295 Convém destacar, nesse ponto, que há certa controvérsia terminológica na designação de conceitos jurídicos dotadas de abertura e indeterminação de conteúdo. Dentre as várias expressões comumente utilizadas, pode-se lembrar: “conceitos elásticos, conceitos-válvula, órgãos respiratórios, conceitos com sentido em branco, noções de conteúdo variável, hipóteses típicas abertas”, dentre outras (cf. JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas gerais e o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 22). Há, particularmente na doutrina civilista brasileira, o uso comum da expressão “cláusula geral” para designar tais conceitos, inclusive no que diz respeito especificamente à dignidade da pessoa humana, destacada por vezes como “uma cláusula geral de tutela da pessoa humana” (cf. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003 p. 117) ou “verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana” (cf. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 47-50). Há ainda doutrina, também de matiz civilista, que destaca fundamentais diferenças entre os dois institutos, havendo inclusive a tendência de identificar como “cláusula geral” exatamente o que ora caracterizamos como “conceito jurídico indeterminado”. (cf. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 2000, p. 326; ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 164; SOARES, Renzo Gama. Breves comentários sobre a função social dos contratos In: NERY, Rosa Maria de Andrade (coord.). Função do direito privado no atual momento histórico. São Paulo: RT, 2006, p. 442) Nesta discussão, porém, é utilizada a nomenclatura de “conceito jurídico indeterminado” para a dignidade da pessoa humana, em consonância com o doutrina constitucionalista destaca ao longo do texto.

296 Nesse tocante, vale destacar a lição de Chaim Perelman: “o respeito pela dignidade humana é considerada hoje um princípio geral de direito comum a todos os povos civilizados. Mas esse acordo geral só diz respeito a noções abstratas, cujo caráter vago, e mesmo confuso, aparecerá imediatamente quando se tratar de passar do acordo sobre princípios para as aplicações particulares”. PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 400.

297 JORION, Benoît. La dignité de la personne humaine ou la difficile insertion d’une règle morale dans le droit positif. Revue du droit public. Paris: LGDJ, 1999, p. 215. .

caso concreto, se determinada conduta comissiva ou omissiva desconsidera a dignidade da pessoa humana.298

Embora tal constatação possa parecer a grande vulnerabilidade da dignidade da pessoa humana e servir como argumento daqueles que criticam a dignidade como um cânone vazio, há de se ter em conta que os conceitos jurídicos indeterminados de valor – como a dignidade da pessoa humana - servem justamente como meio de tratar de uma esfera de realidade cujos limites não aparecem bem delimitados e que essencialmente não admitem outro tipo de determinação mais precisa.299

Essa abertura, na verdade, é sua maior qualidade, pois garante sua transcedência a qualquer delimitação espacial, espacial ou mesmo pessoal, uma vez que não se refere a um tempo, local ou condições individuais. Em outra palavras, embora seja realmente difícil a proposição de um conceito exato de dignidade da pessoa humana, é justamente tal fato que permite sua verificação nas manifestações ontológicas, fenomênicas, traduzidas em quaisquer tipos de ações que possam vir a vulnerá-la. Por isso mesmo, não é papel da Constituição ou da norma legal estipular, aprioristicamente, o que vem a ser a dignidade da pessoa humana, delimitando o seu conteúdo e fixando suas características, sob pena de vulnerar sua própria força normativa300.

Ademais disso, a indeterminação de conceitos no âmbito normativo não traduz uma indeterminação concreta da idéia de dignidade. Diante de situações fáticas especificas, os conceitos jurídicos indeterminados adquirem concretude e univocidade301, sendo sempre

possível verificar quando há ou não há violação da dignidade, ou quando determinada conduta promove ou diminui a dignidade.

298 Como bem destaca Beniît Jorion, “ é mais fácil dizer quando a dignidade humana é violada do que definir o que ela significa”. Idem, p. 216. . Por isso mesmo – como de resto fazem vários dos autores que trabalham a temática – a dignidade é fixada a partir de um conceito negativo, que identificam ofensas à dignidade (capazes de converter o homem em objeto) a fim de caracterizá-la. Nesse sentido, observa Ingo W. Sarlet: “não restam dúvidas de que a dignidade é algo real, algo vivenciado concretamente por cada ser humano, já que não se verifica maior dificuldade em identificar claramente muitas das situações em que é espezinhada e agredida, ainda que não seja possível estabelecer uma pauta exaustiva de violações da dignidade” SARLET, Ingo W. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. 2007, p. 364. 299 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNANDÉZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. São Paulo: RT, 1991, p. 393.

300 Para Theodor Heuss, a dignidade humana necessariamente deve ser indefinida e compreendida como uma “tese não interpretada”, o que serviria justamente para intensificar seu conteúdo normativo. HEUSS, Theodor apud BADENHOOP, Nikolai; BARBOSA, Ana Paula;. A dignidade humana e os nos direitos no direito comparado. Diretos fundamentais & Justiça., n. 17, out/dez 2011, p. 230.

301 MORAIS, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. São Paulo: Dialética, 1999, p. 58.

Conforme já estabelecido, a imprecisão de um princípio não retira sua normatividade jurídica: apenas resulta em características peculiares, dentre as quais sua natureza de direito

prima facie, cuja concretização está sujeito a uma decisão particular, dentro de um contexto de

otimização. Pra esse fim, o conceito jurídico de dignidade da pessoa humana deve ser integrado “consoante os influxos sociais e circunstâncias do caso concreto”, dentro de um “processo indefinidamente aberto”.302

Esse processo, contudo, não pode dar margem à adoção de um conceito ambíguo de dignidade, dissociado de elementos filosóficos, normativos e sociais e sujeito à plena liberdade subjetiva do aplicador da norma, sob pena de tornar-se arma retórica disponível para defesa suas próprias preferências e interesses.303