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CAPÍTULO 1: História de um percurso

1.6 A etnia Wapixana

Outro trabalho que impõe a necessidade de exame é a tese do professor e ex-colega de Departamento, Dr. Carlos Alberto Marinho Cirino (UFRR). Um aspecto que chamou atenção de imediato, foi quando o Autor abriu seu texto pondo uma epígrafe que diz “O povo indígena traz na sua raiz uma religião forte que é a própria vontade de viver” (ALVINO, apud Cirino, 2000, s.p.).

Logo em seu Resumo, Cirino aponta para seu objetivo que é “delinear o processo de evangelização católica na região do Rio Branco [...] as alterações que esse processo provocou na cultura do grupo indígena Wapichana no decorrer do século XX”.

Para tal empreendimento, refere-se à situação política econômica da região e a estrutura organizacional marcadamente em três datas: 1909 – disputa pela área; 1915 – ano em que missionários da Ordem de São Bento deixam a região e 1948 – ano de entrega da área pela Ordem de São Sento à Ordem Consolata.

Da Introdução de seu trabalho identifico o fator que o levou a atentar-se para tal pesquisa: a tradução em Wapischana do evangelho de São Marcos produzido pela Diocese de Roraima. O texto segue apresentando todo o percurso percorrido até as referidas malocas (aldeias). Foi enfático ao dizer que, em todos os seus encontros com os habitantes, explicava o propósito de seus trabalhos sobretudo o de escrever acerca da atenção e desconfiança destes para com suas palavras; os momentos de fortalecimento de vínculos com seus informantes, no caso o padre Macuxi Alvino Andrade, ocasião em que ia conhecer a maloca do Moscou (CIRINO, 2000, p. 13).

Vale perguntar: estando em maior número, no passado anterior ao encontro interétnico que os Makuxi, o que teria levado os Wapixana a passarem da posição de líderes a liderados? Cirino sustenta a tese de que as hostilidades foram atenuadas com a evangelização católica, tornando possível a convivência pacífica de demarcação fronteiriça entre ambas. Acrescenta que, segundo dados da Fundação Nacional de Saúde, eram cerca de 6 mil índios Wapischana (sic) no lado brasileiro até 1995. E do lado da República da Guiana, segundo o Centro de Informação da Diocese de Roraima, até 1989 existiam 8.348 Wapischanas (idem, p. 64). Quanto à língua Wapischana (sic), segundo Brett (1868 – apud Cirino, 2000, p. 68) é uma

indígena do Sul da Guiana Inglesa numa expedição (1913-1916) patrocinada pelo Museu da Universidade da Pennsylvania e publicada no trabalho de Currtis Farabee.

Ainda considerando a reconstrução sócio-política do Professor Cirino, ele recorre a Farabee, e cita que uma outra etnia integrante do ciclo social Wapixana - os Atorais - “tinham abandonado quase por completo o velho dialeto para só falar ‘ouapichiane’. [...] Não mais existiam como grupo separado e nem tampouco falavam sua própria língua” (FARABEE, apud Cirino, 2000, p. 69). Por outro lado, os missionários beneditinos classificavam a língua Wapischana como um dialeto da língua Tupi ou Nhenhegatu, pelo que consta na anotação de D. Béda Goppert (1910 – apud Cirino, p. 69). Porém, segundo Ildefonso – índio Macuxi da região do Surumu –, depoimento coletado por D. Béda Goppert, o Nhenhegatu desaparecia junto com os mais velhos e pelo desprezo dos Wapischana (sic) mais novos. Este foi o fato que levou os beneditinos a concluir, erradamente, que as línguas Wapischana (sic) (Aruak) e Macuxi (Karib) eram sim, dialetos Nhenhegatu. E para uma “melhor compreensão” [grifo meu] o “desaparecimento lingüístico” [idem, ibidem] teria ocorrido pela “dispersão contínua dos índios, o desaparecimento dos antigos missionários que falavam a língua, as epidemias, o desenvolvimento da região do Rio Negro e a extração da borracha” (CIRINO, 2000, p. 70).

Cirino, descreve o espaço físico habitado pelos Wapixana, recorrendo a Henri Coudreau, que, acometido de febres, permaneceu entre Wapischana na maloca “Maracachite” em 1987[?]. Sobre as moradias Wapischana, ele constatou que os indígenas:

tinham o hábito de construir suas malocas a cerca de meia hora de caminhada das margens dos rios ou igarapés, precavendo-se das constantes enchentes no período de inverno. A maioria das casas tinha formato redonda ou oval (sic), mas era possível encontrar algumas de forma retangular. As casas tinham apenas uma porta, de mais ou menos um metro de altura, com telhado em forma de cone e coberto com folhas da palmeira buriti (COUDREAU, apud Cirino, p.71).

Sobre os traços humanos, acrescenta, que características físicas dos Wapischana [Cirino grafa a etnonímia com os fonemas scha. No entanto, todos os Wapixana por mim entrevistados, grafaram com x. Por tal motivo, todas as vezes que quero me referir a esta etnia, emprego assim como os próprios] do final do século XIX e XX. O Autor menciona o próprio Coudreau, Gillen (1963), Brett (1868), Farabee (1918), Koch-Grünberg e D. Bonaventure Barbier (1911), para indicar traços físicos da etnia: poucos pêlos no queixo e lábio inferior, estatura baixa, mas robusta, pele escura, cabeça longa e face redonda, nariz aquilino, ocaa pequena, olhos retos, pés e mãos pequenos, pulsos e tornozelos finos, de corpo parcialmente pintado de jenipapeiro; mulheres e crianças de cabelos cortados à tesoura, porém um pouco mais longos do que os dos homens.

As atividades econômicas dos Wapischanas (sic) encontravam-se caracterizadas, segundo Cirino, de roças [mandioca, tabaco, milho, cana de açúcar, banana, ananás, inhame, batata e jerimum], cerâmica, tecelagem (exclusivas de mulheres), pesca, caça e fabricação de instrumentos de trabalho (exclusivas de homens). O excedente da farinha de mandioca era exportado para abastecer, regularmente, o mercado de Boa Vista, cujo processo de produção da farinha já fora descrito por D. Eggeerath (1924). Somada ao milho, a mandioca também era empregada na produção de uma bebida denominada “caxiri”, bem descrita por Coudreau (1887) e qualificada por Koch-Grünberg como refrescante, resultado da fermentação obtida da mastigação de pedaços de cana-de-açúcar ou pedaços de bolo de farinha e cuspidos dentro de uma gamela, acrescidos de água e abafado com folhas de bananeiras, para posterior cozimento e coagem. Um processo “verdadeiramente repugnante” (D. EGGERATH, apud Cirino, 2000, p.78).

Necessitando de alguma remuneração, era comum a prestação de serviços no município de Boa Vista, o que já fora percebido e descrito por Coudreau e por Koch- Grünberg. Isto era para atender à aquisição de fuzis, chumbo, facas, machados, tecidos, etc. Para o segundo, tratava-se de trabalho escravo em fazendas e comércios, gerando quase sempre endividamento. Segundo Cirino, uma “inserção numa nova ordem econômica” (CIRINO, 2000, p. 81). Tal situação denunciada em crônicas beneditinas ao bispo do Amazonas, D. Frederico Costa, dava conta de maltratos de índios Wapischana (sic) por fazendeiros e comerciantes que “chegavam a retirar à força, de arma em punho, os índios das malocas [...] quando se rebelavam contra a exploração, eram chicoteados nas margens dos rios. Quando fugiam, eram capturados por homens especialmente treinados pelos fazendeiros e comerciantes” (idem,, p. 82).

Segundo os beneditinos, em conseqüência da acessibilidade e vulnerabilidade dos Wapischana (sic) à “civilização” [grifo do Autor] que para Cirino, corresponde a uma “interpretação etnocêntrica dos missionários [que] os impedia de admitir a sua capacidade de formular um pensamento lógico e racional” (idem, p. 83). Entretanto, se as denúncias eram feitas pelos missionários, estes não deixavam de se beneficiar do mesmo modelo relacional, pois, “encontravam-se na companhia de duas domésticas e duas crianças que trabalhavam na missão [...] trabalhando na cozinha da missão, outras duas no jardim e duas outras como serradores na marcenaria e outros ‘kurumys’ encarregados de capinar, cultivar a terra, cuidar do rebanho e da limpeza da missão” (CIRINO, 2000, p. 84).

natural para a relação entre Wapixana e Makuxi, aliás, o mesmo princípio tomado por Lemos para explicar a perda da etnia Makuxi em relação aos portugueses, como uma condição da ação missionária católica. Pois, se assim fosse, se não tivessem de enfrentar as ações dominantes dos Makuxi invasores, os Wapixana necessitariam resistir ao uso da força de não índios, fazendeiros, comerciantes e, mais tarde, mineradores e à própria igreja católica, sem deixarem por extinguir a língua e a organização política, de modo geral, a cultural, mesmo que para isto adotassem estratégias de “convivência pacífica” com todos eles. Nesta tarefa, concordo com Cirino, principalmente quando ele ratifica o entendimento de Coudreau sobre os Wapischana (sic), ao fato de que o Tuxáua – chefe da maloca, e o pajé – curandeiro e detentor do conhecimento e da religião, conseguiam mantê-los unidos e este último, tinha um “verdadeiro poder de mando [...] sendo suas qualidades socialmente reconhecidas: a inteligência, energia, autodomínio, conhecimento das plantas medicinais e das lendas que glorificavam o seu povo e o seu poder” (idem, p. 86).

Assim, a vida na maloca desde as constatações de Coudreau, era tranqüila. Wapixana levantava cedo antes do nascer do sol. Havia dias de fartura e de escassez, quando se alimentavam apenas de beiju. Para Coudreau (1887), “a maior parte de suas vidas passava dentro de uma rede, a se balançar, fumando ou passeando uns com os outros, conversando e bebendo caxiri” em meio a animais domésticos como cães e tartarugas tidos mais como “ornamentos vivos” até mesmo nas festas constantes em que se acrescia a embriaguez e a mistura de sons instrumentais vindos de flautas, o teiquiem, o yéoué, o yaté, cabaças cheias de seixos e o tilelé feitos de uma dezena de talos de cana, que animavam a dança Parischara (COUDREAU, apud Cirino, 2000, p. 91-92).

Cirino esclarece que a referida dança originou-se de uma lenda Wapischana (sic), “quando um pajé recebeu dos animais os instrumentos mágicos da caça e da pesca, mas teve de devolvê-los, por causa de uns parentes mal intencionados” (idem, p.92), tornando-se assim, uma dança-ritual festiva também executada, segundo Herrmann [1947] (apud Cirino) na fertilização da caça e da pesca e por nascimento de criança do sexo masculino, talvez por que ocupasse uma posição hierárquica superior na estrutura política local, merecendo o cuidado de todos (CIRINO, 2000, p. 94), inclusive para o ensinamento das atividades paternas para os meninos (brincadeiras de arco e flecha). No entanto, não são mencionadas ocupações das crianças meninas.

Há ainda duas competentes análises que ao meu entendimento dialogam entre si e que não podem deixar de ser relacionadas com essa discussão. No ano de 2001, o problema do conflito interétnico é, enfim, posto em foco pelo antropólogo Paulo Santilli, no trabalho muito

bem escrito, “Pemongon Patá”, a cujos tópicos não apenas fiz referência quanto procurei aplicar concomitante a Oliveira Filho (1988; 1998) com os quais junto a elementos da pesquisa realizada por mim, apresentei no primeiro capítulo deste trabalho.

Por fim, Victor Hugo Veppo Burgarth (2006) em sua tese de Doutorado em História, intitulada “Bravas Gentes - Cotidiano, Identidade e Representações na Terra Indígena Raposa/Serra do Sol e Parque Nacional Canaima: ambiências de Boa Vista (Brasil) e Cidade Bolívar (Venezuela)”, reconhece que artimanhas estabelecidas entre fazendeiros, pecuaristas e Wapixana em terras Wapixana eram tão intensas que “um favor aqui, outro acolá, um batizado de criança indígena aqui mais um compadre ali. Desta forma, foi menos problemático o avanço do gado na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (BURGARTH, 2006, p. 78), concordando com Santilli (1994), para explicar que “o termo compadre conota, neste contexto, uma relação de intimidade, e ainda, alguma permissividade, que variava, conforme o status respectivo de compadres, de uma condição igualitária a uma distância que impunha o reconhecimento da hierarquia” (SANTILLI, 1994, p. 57).

Como se pode notar, a devida atenção e reconhecimento da existência de relações interétnicas conflituosas pela Antropologia no Brasil só transcorrerão com os trabalhos de Cardoso de Oliveira, Oliveira Filho e Santilli. Com Lemos, Cirino e Bougarth surge o contexto roraimense. Empreendem um excelente trabalho não apenas etnográfico, como também de atuação profissional entre as etnias Makuxi e Wapixana, porque não dizer, entre os povos indígenas de todo o Estado. Vale salientar que os trabalhos desses professores são mais do que pesquisas acadêmicas. São provas de que há um conflito dentro de um conflito, em cujas estratégias propõem acrescentar, não apenas colaboraram para que o Estado de Roraima tenha os contornos que tem hoje com suas respectivas fronteiras, como também participam ativamente para a garantia destas, ao contrário do que é propagado pela imprensa: uma ameaça à soberania nacional.

No capítulo 3 proponho uma atualização quanto à organização social dos habitantes da Maloca do Barro, estabelecendo comparação entre as descrições feitas por Lemos (1998) e Cirino (2000), sob as categorias alimentação, atividade econômica, habitação, cotidiano, festas e brincadeiras.

Assim sendo, fica claro que as relações sociais entre os Makuxi e os Wapixana foram e ainda são historicamente estabelecidas. No interior da T. I. Raposa-Serra do Sol, essas relações não apenas se ampliaram como se intensificaram. Se antes ocorria embate bélico, inclusive com registro de mortes, mudaram para casamento intertribal, ora cedendo terras, ora

é estendida. Representam-se em fóruns próprios quando participam de encontros e eventos indígenas e não indígenas dentro e fora de sua terra, assinam comunicados públicos, organizam festas e outros atos para tratarem de diferentes assuntos, fazem denúncias à órgão legais como delegacias e organismos internacionais, adquirem bens de uso coletivo, emprestam utensílios, entre outras ações.