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CAPÍTULO 2: Conflito Interétnico: uma revisão bibliográfica

2.3 O conflito interétnico e a Antropologia no Brasil

O que levou a Antropologia no Brasil a elaborar uma discussão em torno do contato e, deste, ao fator de conflito interétnico? Quem dá atenção ao problema e como faz para concebe-lo? Um levantamento bibliográfico indica que somente a partir de Darcy Ribeiro (1950 – 1960) é que podemos começar a ter uma percepção deste objeto.

No entanto, ainda não havia uma teorização como bem fez o sociólogo e antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira [Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade de Brasília] (1928-2006) quanto a práticas, conflitos e junções – negativos e positivos, na obra O índio e o mundo dos brancos (1964). Este assim o fez para pensar formalmente a sociedade nacional, seu processo expansionista e seu desenvolvimento. Não poderíamos deixar de mencionar a antropóloga Tereza Caldeira (1989), pelo seu trabalho de revisão da Antropologia americana.

Há também a concepção de Eduardo Galvão (1979) sobre indigenismo como conjunto de idéias relativas à inserção de povos indígenas no Estado nacional. Em seu volumoso livro que se encontra dividido em duas expedições, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) comunica os diários de campo elaborados no período de 1949 a 1951 nas aldeias Urubus- Kaapor, que, segundo diz no prefácio que escreveu, foi feito do que via e ouvia, ou seja, uma etnografia do aparente. Outra referência imprescindível é João Pacheco de Oliveira (1988) por apontar e incluir muito bem, conflito interétnco com colonização e territorialização. E por fim, numa profunda e competente análise das relações entre índios e não índios, o Dr. Paulo

José Brando Santilli [Universidade Estadual Paulista] e colaborador dos povos indígenas de Roraima. Isto foi suficiente para a pesquisa teórica e prática desenvolvida por mim, porque como eu disse antes, havia no plano de pesquisa, aspectos de um conflito não reconhecido socialmente.

Quanto ao trabalho de Darcy Ribeiro “Diários Índios” (1996) a minha intenção é de esclarecer que, mesmo identificando situações de conflito, como veremos adiante, Ribeiro elege por base elementos visíveis. Mas conflitos só podem ser reconhecidos se captados pela visão?

Quanto à estética anunciada por Darcy Ribeiro, assinalo algo interessante: no texto inteiro podem ser identificadas três pessoas verbais: eu (primeira pessoa do singular); você que no contexto, não consiste em pronome de tratamento, mas uma espécie de pronome pessoal, que me leva a interpretar por seu uso, um diálogo que pretende estabelecer com o leitor, um igual. E por fim, o ele ou ela (também usados no plural), querendo dirigir-se ao outro, mas não na indeterminação do sujeito, pois, cada um e cada uma com quem manteve diálogo, teve seu nome anotado e características físicas predominantemente detalhadas.

Mantive na elaboração do meu diário de campo, conforme apresentação à parte, o seguimento, data a data, adotado por Ribeiro. Fiz isso visando a permitir uma leitura didática do texto e não na intenção de fazer o leitor viajar [grifo meu] comigo, como fez Ribeiro no Prefácio: “Agora, convido você a me dar a mão e vir comigo para percorrer, de novo, suas aldeias. Boa viagem” (RIBEIRO, 1996, p. 13), por que considero isto impossível e inadequado, para não dizer, inútil. No entanto, há uma abordagem em Ribeiro que muito me inspirou na tomada da realidade do campo na Maloca do Barro: suas ênfases ao cenário ambiental, seja à terra ou ao espaço, seres vivos e inanimados. Foi-me bastante útil [e como], dada à peculiaridade da relação social em conflito estabelecida pelas etnias em estudo.

Fui procurar logo pelas fontes que pudessem tornar perceptíveis contatos e conflitos interétnicos. Apenas poucas delas indicavam situação de contato a que eu chamaria de contato de retorno onde o seu colaborador Max Boudin [lingüista] “retorna à civilização” (RIBEIRO, 1996, p. 406), enquanto as demais fotos se restringem à exibição de pessoas sozinhas ou em grupo, objetos, espaços habitados ou não.

Reporto-me agora a alguns casos de contato e de conflito interétnico citados por Ribeiro. Em seguida, analiso esses casos.

a) Caso dos Tembé:

Em 1934 na ilha Marajupema, morava um madeireiro de nome Luiz Carvalho, natural de Grajaú, já falecido. Viviam e trabalhavam com ele alguns índios timbés (sic) e uma índia, Dominga Chaves, sua amásia. Mas Luiz desejou a mulher de um índio, Sabino, que vivia na ilha e começou a persegui-la de todos os modos. Primeiro espancou sua própria mulher, ameaçou matá-la, exigindo que trouxesse Ana, a mulher de Sabino para sua rede (...). Luiz não se conformava. Um dia muito embriagado, mandou domingas procurar Ana e trazê-la a qualquer custo. A mulher fez o que pode, mas voltou sem Ana. Aí Luiz saiu armado com rifle e terçado para a casa de Sabino. Vendo que ele se aproximava com seus capangas, Ana saiu em disparada pela mata, com o filhinho nos braços, perseguida por Luiz e seus homens. Conseguiram pegar Sabino depois de persegui-lo por muito tempo, mas Ana desaparecera na mata que margeia o rio. Luiz mandou amarrar Sabino no fundo da canoa, passar manilhas em suas munhecas e desceu o rio espancando-o para que chamasse a mulher, que ele imaginava estar escondida na barranca, ou dizer onde ela se metera. O índio Sabino estava amarrado no fundo da canoa junto com Domingas, que estava toda pisada de pancadas. Luiz tirou a faca e foi furando o couro do pescoço de Sabino, espetava o couro e levantava, o homem já estava todo coberto de sangue e as varejeiras começaram a dar... (idem, p. 25).

b) Caso da criação do Posto Pedro Dantas:

Construído o rancho da ilha, defronte à margem maranhense, os trabalhadores abriram uma picada de quinze quilômetros mata adentro, ao fim do qual colocaram o primeiro tapirizinho de brindes (“cena”), na banda direita do Gurupi. A primeira “cena” foi encontrada pelos poucos índios depois de preparada. Os índios quebraram o jirau e todos os brindes, exceto alguns medalhões de metal com a efígie de José Bonifácio que levaram consigo – aproximadamente novembro de 1927. [...] A segunda “cena” foi colocada na mesma picada, porém mais próxima da margem: uns doze quilômetros. Os índios levaram todos os brindes, não deixando flechas ou qualquer outro objeto deles em retribuição. [...] Ao tempo da quarta “cena”, os índios fizeram alguma zoada na mata, mais perto de casa, e atiraram umas dez flechas, mas nitidamente em sentido amistoso, pois atiraram para cima e não diretamente. Caíram no telhado e no terreiro (idem, p. 26).

c) Caso da festa da Coroação do Imperador:

A festa é muito interessante. Não imaginava que se tratasse de uma forma local das Festas de Coroação do Imperador ou da Imperatriz. Mas é essencialmente isso. É incrível como esses negros, mais que ninguém, cultuam (sic) nosso Império escravista, que caiu com a Abolição. [...] Dançaram três velhas tocando três tambores que levavam a tiracolo, acompanhadas de três mocinhas, cada uma delas fazendo par com uma tocadeira nos movimentos da dança. As moças conduziam bandeiras. Além dessas, tinha ainda uma moça que conduzia um estandarte vermelho com uma aplicação, em recorte, de fazenda branca, em forma de pomba do divino [...]. A figura principal, representando a imperatriz, era uma menina de doze ou treze anos, branca, de tipo delicado, contrastando com os demais figurantes. Vestia uma toalha bordada de crivo e tinha às costas, um manto de seda. Levava uma bandeja muito bem trabalhada, com uma enorme coroa e um cetro, todos decorados com recortes e entalhes de Pombas do Divino. Tudo em metal amarelo. Na hora da coroação, depois de rufos de caixa, cantos e danças, uma velha negra, enorme, vestida de vermelho (a pajé) toma a coroa e a sustenta pouco acima da cabeça real. Tudo isto é tão inocente que a seriedade com que representam não faz graça, antes provoca ternura (RIBEIRO, 1996, p. 59).

d) Caso da Pacificação:

Os moradores de uma aldeia que ficava num braço do Maracaçumé estavam em festa, bebendo cauim, quando chegaram os brancos. Ninguém viu. Somente uma mulher que foi ao córrego voltou contando que um homem de chapéu, um karaíwa [grifo do autor], estava do outro lado. Tinha feito sinais para ela, convidando-a a ter relações com ele, mas ninguém levou a sério. [...] Quando os índios foram percebidos, um dos homens saiu com terçados e panos na mão gritando: “Temos terçado. Temos panos. Temos miçangas, tudo para você”. [...] Os brancos, lá dentro [do curral], gritavam que tinham presentes para eles e que parassem de flechar, senão os matariam a balas. A certa hora, começaram a atirar contra os índios e feriram um que subira numa árvore para atingi-los com flecha por cima do cercado. Este morreu. Era aquele Na-irã, que foi o primeiro a aproximar-se e a atirar nos brancos. À noite, os brancos fugiram, deixando a casa cheia de coisas que os índios carregaram: terçados, facas, tesouras, miçangas, panos, tudo vermelho de sangue. Anos depois, no Felipe Camarão, um dos índios da aldeia vizinha reconheceu em Miguel Silva o matador de Nã-irã, mas o velho disse que foi um Timbira que atirou, ele estava lá, mas não deu tiros (idem, p. 252).

e) Outros casos de conflitos na aldeia:

Nunca ouvia falar de um companheiro que tivesse assassinado outro, somente se lembra daquele caso do índio que foi atacado por um branco a bala, tomou a arma e o matou. Chegando à aldeia, foi contar a façanha. Então, manobrou a arma como havia visto o Karaíwa [grifo do autor] fazer. Nisso, um outro chegou os olhos bem na boca do cano para ver o que havia lá e a arma disparou, prostando-o (sic). Contam que muitas vezes, um fica com raiva do outro, podem brigar até, mas nunca se matam. Quando um espanca o outro, ninguém toma conhecimento disso, é um assunto particular que os interessados resolverão. O capitão não pode intervir nestes casos, senão para apaziguar. Não castiga ninguém. Um homem pode ficar iarõn (raivoso) por infidelidade da mulher, morte de parentes ou outra razão. Dirá que está neste estado – ihen-ia-rõn-té. Todos se afastam dele, evitando qualquer contato, ainda que o raivoso tome um terçado para cortar os esteios, derrubando casas e para cortar os punhos das redes. Todos ficam distantes, esperando que se acalme. A única válvula legítima que a cultura lhes proporciona é ir a um grupo estranho, inimigo, antigamente os brancos e negros, hoje os Guajá, e entrar em luta com eles (idem, pp. 282-3).

f) Um dos casos de aculturação:

Em Pindaré, vive um rapaz guajajara, de dezoito anos, com a família de brancos que o criou. Fala fluentemente a língua, embora tenha saído da aldeia aos cinco ou seis anos. Considera-se índio, vem ao posto às vezes, ficando hospedado com os índios, e, provavelmente, se casará aqui, mudando-se então para cá. [...] Que fatores interferiram em sua educação tão fortemente que não lhe permitiram adquirir as aptidões e as atitudes de um civilizado? Fatores psicológicos – personalidade básica, já definida nos anos da vida tribal – ou fatores sociais – o preconceito, a atitude dos criadores para com ele, o índio, fazendo-o sentir cada dia, em cada gesto, seja quando castigado, seja quando o aprovavam, sua qualidade de índio (RIBEIRO, 1996, p. 310).

g) Um caso de terrorismo Tembé:

Ontem, à noite, tivemos uma longa conversa, começamos falando das mentiras que os Tembé vêm contando aos índios daqui e de suas conseqüências trágicas. Já lhe disse que aterrorizam os que moravam com Domingos, remanescentes da aldeia de Maíra, marido da velha – com uma história de bombardeio aéreo -, para obrigá-los a ir morar com Bem, no Jararaca, e servi-lo como dependentes. Agora, tenho novos pormenores da trama. [...] Começaram dizendo que estavam

juntando resinas porque o sol ia apagar-se (sic) , depois veio a história do bombardeio aéreo e o estouro do sol. Seria um cataclismo do qual não escaparia ninguém – a menos é óbvio, que estivessem juntos de bons pajés como Domingos e Leandro. O desespero a que os índios chegaram foi tal que Sereno, o mais calmo deles, queimou sua casa e todas as suas coisas, mas disse que ficaria ali mesmo, para morrer na roça que fizera para alimentar seus filhos. Passarinho destruiu seu patuá cheio de adornos preciosos e seguiu Domingos. Um outro índio (capitão Urubu, genro do capitão velho), desesperado, veio para cá. Cada vez que via um avião dos que passam frequentemente por aqui ficava louco, acabando por se matar com uma faca que enfiou no pescoço (idem, p. 454).

Recuperei esses sete casos mencionados por Darcy Ribeiro (1996) por duas razões: primeiro, para ilustrar bem que havia um contato interétnico, ora índio com não índio, ora índio com índio, que poderia gerar na organização social Kaapor, uma situação promotora de uma inquietação cultural local, como no caso em que se encontravam envolvidos Sabino e sua mulher - (a); este, movido por um interesse exógeno à etnia; Já no caso do Posto do Serviço de Proteção ao Índio - (b); temos um caso que classificaria como conflito positivo, entre índios e não índios. Em se tratando do que eu classificaria de um caso de conflito cultural, a adição de uma representação não-indígena a uma indígena – festejos - culminante com a Festa do Imperador - (c); que pode ser considerada como uma demonstração de conflito positivo (e não um atrito positivo) já que a “incorporação” [destaque meu] dar-se-ia eventualmente, uma clara habilidade de convivência com o diferente; Não o caso Pacificação (d) que, ao contrário dos dois últimos (b e c), configuraria numa das possíveis expressões de atrito dada a durabilidade atingida, visto que inscrita na memória coletiva, embora tivesse ocorrido a negação da participação de Miguel Silva, o matador. Quanto à situação em que o próprio Ribeiro reconhece como conflito (e), destaco uma situação em que recomendo relativização.

O próprio Ribeiro foi capaz de, refletindo sobre a ação, compreender e agir relativizando, pois o que, segundo seus padrões culturais, consistia um conflito manifesto no aspecto psicológico, estava ali diante de uma situação socialmente conflituosa: alguém que, por razões diversas, encontrava-se na condição reguladora de limites políticos e morais, o que reconheceria na proibição de aproximações ao sofredor. O seguinte (f), nomeado pelo próprio Ribeiro como aculturação, pode ser reconhecido, obviamente, como uma condição do contato interétnico. Mas, como encontrar uma conexão desta com o sentido de conflito? Ele estaria presente a uma ação externa em resposta a uma condição interna: o preconceito, resultado do não reconhecimento identitário da aldeia às novas atitudes do “intruso” [o etnógrafo]. E, finalmente, a situação de terrorismo que, quase automaticamente, é reconhecido e classificado como a mais extrema expressão de conflito. Chamo atenção para o último dos casos (g) e sua

inclusão entre as práticas de conflito socialmente criadas como fim e como meio, quanto à questão de se obter a adesão de opositores pela manipulação dos saberes ali geridos.

O que importa no trabalho de Ribeiro (1996) é sua capacidade de identificar variantes de manifestação de conflitos interétnicos. Isto pode ser considerado um avanço para a compreensão sociológica e antropológica no Brasil, visto que a produção nacional até então, no máximo, reconhecia o problema entre índios e não índios. Com Ribeiro, fica mais do que provado o controle social através do conflito interétnico, inclusive entre uma e outra etnia. No entanto, não pode ser percebida nenhuma teoria sobre conflito interétncio em Ribeiro. Isto só virá com o trabalho de Roberto Cardoso de Oliveira.

Para o filósofo, sociólogo e antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira39, as situações de relações intertribais e, consequentemente, de conflito interétnico, dadas à duração e características, seriam sim entendidas na categoria de fricção interétnica. Para ele, é:

Um modelo de investigação que denominamos fricção interétnica, como uma maneira de descrever a situação de contato entre grupos étnicos irreversivelmente vinculados uns aos outros, a despeito das contradições – expressas através de conflitos (manifestos) ou tensões (latentes) – entre si existentes (CARDOSO DE OLIVEIRA, Nota 14, 1976, p. 120).

Carece uma correspondência entre essa concepção de fricção interétnica com a de contato interétnico, igualmente de Roberto Cardoso de Oliveira. Para ele, contatos interétnicos são: “as relações que têm lugar entre indivíduos e grupos de diferentes procedências “nacionais”, “raciais” ou “culturais”” [destaque do autor] (RIBEIRO, 1996, p. 117). Se há contato interétnico, é porque há grupos étnicos, pois, para este Autor, todo contato é, sobretudo grupal.

Portanto, partindo de Fredik Barth (1969) que concebe contato como “organizational type”, toma por referência uma definição consensual, conforme pode ser deduzida da literatura antropológica. Segundo essa definição, um grupo étnico designa uma população que:

“a) se perpetua principalmente por meios biológicos”; b) “compartilha de valores culturais fundamentais, postos em prática em formas culturais num todo explícito”; c) “compõe um campo de comunicação e interação”; d) “tem um grupo de membros que se identifica e é identificado por outros como constituinte de uma categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem” [destaques do Autor] (BARTH, 1969, pp. 10-11).

39 Trabalho de sua primeira experiência de campo entre os Terena, grupo indígena localizado no estado do Mato Grosso do Sul. Sua pesquisa focava a assimilação dos Terena na sociedade nacional brasileira e, em 1960, ele publicou seu primeiro livro com os resultados desta: “O processo de assimilação dos Terena”.

Tomando por princípio analítico a compreensão precedente, ou seja, de contato interétnico, Cardoso de Oliveira identifica uma condição que se faz interessante para teorizar as noções anteriores. Para ele,

a peculiaridade da situação que engendra a identidade étnica é a situação de contato interétnico, sobretudo – mas não exclusivamente – quando esta tem lugar como fricção [grifo meu]. A conscientização dessa situação pelos indivíduos inseridos na conjunção interétnica é que seria o alvo preliminar do analista. Um estudo do “modelo consciente”, na acepção de Lévi-Strauss, dos indivíduos atuantes no cenário interétnico. Uma tal consciência, etnocêntrica em larga escala, estaria pautada por valores e se assumiria como ideologia (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 120).

Se assentássemos a essência dos acontecimentos citados nas literaturas e relatos orais por mim pesquisados, ficaríamos muito próximo de classificá-los como um caso de fricção interétnica entre Makuxi e Wapixana, à guisa, da concepção de Roberto Cardoso de Oliveira. Porque as informações de fontes históricas dão conta de relações interétnicas conturbadas entre as referidas etnias. Mas, por que, com a pesquisa de campo que fiz, não devo associar- me à premissa de Roberto Cardoso de Oliveira? Porque, apesar de duradouro – uma das condições da fricção interétnica – este conflito não produz uma relação de repulsa ou rivalidade. Há uma relativa convivência entre Makuxi e Wapixana, principalmente em eventos públicos40, embora as situações de conflito estejam mais manifestas em pequenos espaços. Então, não havendo como descobrir uma total correspondência com as características da fricção interétnica de Roberto Cardoso de Oliveira, a quem firmar vínculos?

Em 1978, prefaciado pelo Darcy Ribeiro, veio a público a reedição de boletins escritos pelo Prof. Eduardo Enéas Gustavo Galvão (1921-1976) - [UFRJ/UNB/Museu Emílio Goeldi] –– bacharel em História e Geografia, em formato de livro, obra considerada não apenas relevante para a Antropologia do Brasil, mas principalmente para a Antropologia da Amazônia. Ao todo, está composto de treze capítulos em que o Autor percorre desde “apontamentos sobre os índios Kamaiurá” à apresentação e análise sobre “o artesanato indígena na Amazônia brasileira”. Para o estabelecimento de um aporte dialogal pertinente a este trabalho dissertativo, tomarei os quatro capítulos intermediários: “Mudança cultural na região do rio Negro”41 e “Estudos sobre aculturação dos grupos indígenas do Brasil”; No primeiro deles, se pode obter um contexto social similar ao que se assenta esta pesquisa. 40 Quando entrevistava lideranças indígenas e até de órgãos indigenistas, sempre tinha qualquer problema de relacionamento negado. Nas entrevistas feitas com alunos das duas escolas a José de Anchieta e do Centro de Formação e Cultura Indígena Raposa-Serra do Sol, a grande maioria dizia que sim. E somadas às minhas observações já relatadas anteriormente, seja da observação da dinâmica das pessoas nas ruas e trilhas da Maloca do Barro ou ainda no silêncio de algumas pessoas com quem conversava, isto ficava bem evidente.

Trata-se, segundo Galvão, de uma superfície de 300.000 km², com cerca de 25.000 habitantes à época, composta de rios e estradas que põem em contato a sociedade urbana de Manaus e as sociedades tribais ribeirinhas ao Içana, Uaupés e afluentes, constituídas de caboclos, mestiços de índios e brancos (GALVÃO, 1978, p. 120). Sociedades em pleno contato, formadas de