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A EUTANASIA TRIBUTÁRIA

No documento Tributação no Brasil e o Imposto Único (páginas 136-139)

Mailson da Nóbrega

Folha de S. Paulo, 7/2/93

Grande parte da classe política e milhares de empresários estão irmanando-se para defender a simplificação na cobrança dos tributos. Não é para menos. O sistema tributário virou um caos: exagerado número de impostos e contribuições; multiplicidade de livros, guias e notas fiscais; regras confusas e mudando a toda hora; pacotes de emergência; achaques de fiscais corruptos que deslustram a carreira.. Incentiva-se a sonegação e, com ela, a competição desleal. Desperdiçam-se energias que deveriam estar dedicadas à produção.

O Brasil já possui um sistema tributário sem essas mazelas. Entre 1965 e 1967 abandonamos o jurídico-formalismo socialmente inútil, seguimos as tendências internacionais mais modernas e adotamos tributos orientados pela funcionalidade, capazes de contribuir para o desenvolvimento econômico e social. Ainda havia defeitos na estrutura tributária: os impostos únicos sobre energia, combustíveis, minerais e mais tarde transporte e comunicações; o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e o Imposto municipal Sobre Serviços (ISS). Por isso não chegávamos a ter um sistema tributário ideal, isto é, aquele que produz as receitas necessárias a financiar um nível adequado de gastos públicos e ao mesmo tempo alcança dois objetivos: interfere o mínimo na atividade econômica (princípio da neutralidade dos tributos) e cobra segundo a capacidade contributiva dos cidadãos (princípio da justiça tributária).

A questão da neutralidade tributária é de longe a mais importante para o desenvolvimento. A justiça tributária é fundamental para atenuar o problema das desigualdades sociais. A neutralidade é obtida basicamente com a eliminação dos tributos em cascata, ou seja, os que incidem sobre si mesmos, nas sucessivas etapas de produção de um bem ou serviço. A justiça tributária vem com a progressividade prudente nos impostos diretos (renda e patrimônio); mais recentemente, a justiça tem sido também alcançada mediante seletividade nos impostos indiretos e maior abrangência na tributação, a qual permite redução nas alíquotas.

A economia mundial dificilmente teria experimentado seu espetacular desenvolvimento pós-guerra, notadamente a partir dos anos 50, não fosse a solução para o problema da neutralidade tributária. E que os impostos em cascata prejudicam o melhor uso alternativo dos recursos de uma sociedade (o que os economistas chamam de processo alocativo). Por exemplo, um dos fatores básicos para a expansão econômica dos países industrializados, além da educação e do desenvolvimento científico e tecnológico, foi a descentralização da produção. Os gigantes da indústria japonesa são um bom exemplo. A produção de milhares de itens (partes, peças, componentes, serviços) foi confiada a outras empresas, geralmente de pequeno e médio porte. Ganhou-se em eficiência, produtividade e competitividade. Essa estratégia, que no Brasil chamamos terceirização, não funcionaria se a cada etapa existisse um imposto a onerar a operação pelo seu valor bruto. O comércio

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exterior, outra alavanca da expansão econômica mundial (cresceu em média acima da evolução do produto interno nos últimos quarenta anos), também não se teria desenvolvido sem a solução para o problema dos impostos em cascata. Isso porque as mercadorias devem ser tributadas no local em que são consumidas (para evitar discriminação tributária entre produtos nacionais e importados). E preciso, assim, que as exportações sejam isentas de impostos indiretos, impossível quando existe a cascata.

Os impostos em cascata (cumulativos) são aparentemente simples. Cobram-se em cada venda e ponto final. Os impostos sobre o valor agregado (IVA), não cumulativos, tendem a ser complexos. Exigem livros para registro de créditos e débitos tributários, apuração periódica do resultado, cálculos para manutenção do crédito sobre os insumos nas operações que destinem mercadorias ao exterior e assim por diante. Resta saber se é melhor a simplicidade ou a eficiência na alocação dos recursos da sociedade. O crescente e amplo emprego dos tributos não cumulativos em todo o mundo é o grande veredicto: os países preferem a complexidade racional do IVA à simplicidade burra e aparente dos impostos em cascata.

O IVA foi adotado pela primeira vez na França. Provou-se tão eficaz que seu uso se espalhou pela Europa e se tornou regra para a harmonização tributária dentro da Comunidade Européia (CE). Com a recente desintegração da União Soviética, a construção de um sistema tributário digno desse nome incluiu a adoção do IVA, já em uso pelo menos na Rússia. O Brasil foi um dos pioneiros na aplicação das teses que em várias partes do mundo mostravam as vantagens do IVA. Adotamos o imposto indireto não cumulativo (o ICM e o IP!) em 1967, antes da maioria dos europeus, e servimos de exemplo para nossos vizinho da América Latina. Itália, Irlanda e outros países europeus passaram a usar o IVA na década de 70, Espanha, Portugal, Grécia, México e Argentina somente nos anos 80.

Enquanto os outros copiavam o Brasil, nós regredíamos. Restabelecemos a incidência em cascata com o PIS/Pasep. Depois, demos outro passo rumo ao atraso: criamos outro tributo em cascata, iníquo, regressivo, anti-social, curiosa- mente denominado Finsocial. A Constituição de 1988 foi a "pá de cal". De bom, extinguiram-se os impostos únicos sobre certos bens e serviços. O mais veio para piorar. Criou-se um imposto municipal sobre a venda de combustíveis (IVV). Os Estados foram autorizados a cobrar um adicional de Imposto de Renda. Perdeu-se a chance de integrar o ISS, o ICM e o IPI em um IVA universal. Não se tentou encontrar alternativas racionais para o PIS/Pasep e o Finsocial. Agora, se passar o malsinado IPMF, a situação piora com mais um imposto em cascata.

A mudança dos critérios de partilha de recursos em favor dos Estados e municípios complicou ainda mais esse quadro. Realizou-se sem a contra partida da transferência de responsabilidades. O governo federal perdeu tributos para os governos subnacionais, que, além" disso, aumentaram muito sua participação na receita do Imposto de Renda (47%) e do IPI (57%). O excesso de vinculações aumentou a rigidez orçamentária. A União quebrou financeiramente. Para fugir às transferências aos Estados e municípios, buscou-se o aumento ou a criação de tributos e contribuições não partilháveis, quase todos em cascata: IOF, Finsocial e contribuição social sobre o lucro. O governo federal passou a depender cada vez mais de pacotes tributários de fim-de-ano, preparados de afogadilho e alterados à última hora pelo Congresso. Resultado: leis malfeitas, mudanças intempestivas das normas, indignação dos contribuintes, criação de ambiente para milhares de ações judiciais contra a União, estímulo à desobediência civil.

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Nossos vizinhos latino-americanos evoluíram. Praticamente todos aderiram ao método do valor agregado. A Argentina, além de concentrar esforços na consolidação do IVA, extinguiu o imposto sobre cheques. Na contramão, o Brasil mergulhou numa tremenda confusão tributária, o que tem dado lugar ao surgi- mento de propostas salvadoras como a do Imposto Único sobre Transações Financeiras (IUTF). Há outras, como a dos impostos insonegáveis, que procuram fugir da fragilidade conceitual do IUTF e da falsidade de suas premissas. Qualquer uma delas ampliaria a incidência em cascata. Atentaria contra a federação e a necessidade de descentralização tributária. Apesar disso, tais propostas encantam os empresários. Muitos chegam a financiar o seu proselitismo. No caso do IUTF, organizam carreatas e outras demonstrações públicas para convencer o Congresso da necessidade de sua aprovação.

Na realidade, as idéias em discussão no Congresso fazem muito sentido para as empresas. A arrecadação acontecerá em uma única ou em poucas fontes. Para a maioria esmagadora das empresas desaparece a chateação do pagamento de impostos. Não haverá mais papelada nem despesas com administração tributária. Não será mais preciso ir à Justiça nem corromper fiscais. As vantagens de nível micro são tantas que os aspectos macroeconômicos relevantes são inteiramente ignorados. Desanimados com a inflação, a recessão e a corrupção, os empresários não conseguem refletir serenamente sobre as conseqüências dessas propostas. Não ligam para o fato de que elas piorariam a alocação de recursos e impediriam a desoneração de tributos indiretos nas exportações. A indústria brasileira perderia para os produtos importados, que chegam sem tributos na origem e não seriam aqui tributados (o Imposto de Importação é impróprio para compensar ineficiências oriundas da tributação). O Mercosul seria inviabilizado pela impossibilidade de harmonização tributária, a menos que os nossos parceiros também entrassem em desespero e aderissem a essas propostas (o que parece não ser o caso, já que o Paraguai está adotando o IVA e a Argentina livrou-se do imposto sobre transações financeiras).

As novas propostas conseguem ganhar crescente adesão. Seus autores e simpatizantes estão honestamente convencidos do caminho que defendem. Afirmam que as chances de sua aprovação no Congresso são muito grandes. Mesmo os que aceitam a existência de riscos se declaram convictos de que a corrupção e o subdesenvolvimento cultural impedem a existência entre nós de um sistema tributário moderno. Complexo, esse sistema não fincaria raízes no Brasil. Degeneraria. Assim, é melhor assegurar a arrecadação e livrar as empresas dos inconvenientes do hospício tributário em que vivemos. Segundo esse raciocínio, a simplicidade (ou simplismo?) é preferível, ainda que em prejuízo da racionalidade.

Tudo isso é inaceitável se pensarmos que a ainda frágil democracia brasileira pode inviabilizar-se se não nos reencontrarmos com a estabilidade e o cresci- mento. A estabilidade ficará mais difícil com um sistema tributário ineficiente. Não haverá desenvolvimento sem uma integração adequada com a economia mundial, a qual é inviável com as propostas tributárias em andamento no Congresso. Deve- mos lutar pela eliminação do que existe de impostos em cascata e não para generalizá-los. Um dos líderes da vanguarda tributária em época recente, o Brasil não pode agora ser o pioneiro do retrocesso, utilizando vãs justificativas da era eletrônica. Ao apoiar as propostas salvadoras, os empresários podem estar optando pelo subdesenvolvimento movidos pela atraente mas enganosa solução para suas aflições cotidianas. Querem um caminho que os livre do

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sofrimento imposto por um Estado desorganizado e falido. Buscam, na verdade, uma morte indolor. Querem uma eutanásia tributária.

UM PRECEDENTE

No documento Tributação no Brasil e o Imposto Único (páginas 136-139)