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CRÍTICA OU DIATRIBE?

No documento Tributação no Brasil e o Imposto Único (páginas 125-127)

Marcos Cintra

Folha de S. Paulo, 19/7/92

No último dia 7, em "Ajuste ou marketing?", José Serra discorreu sobre alguns pontos do projeto de reforma fiscal do governo. Propôs-se a fornecer aos leitores desta Folha um resumo das "dúvidas e inquietações sobre o ajuste fiscal desperta- das pela leitura dos jornais e revistas do fim de semana".

Várias de suas observações mostram-se amplamente procedentes. A reforma fiscal implica um elevadíssimo número de emendas constitucionais. As mudanças não poderiam ser realisticamente discutidas e aprovadas fora da revisão constitucional de 1993. As críticas ao novo imposto sobre o patrimônio das empresas também se mostram pertinentes.

Infelizmente, contudo, o autor não teve o mesmo êxito em outras passagens de sua coluna. Mostrou-se desinformado acerca de importantes detalhes dos projetos fiscais em análise. E ainda ousou propor idéias temerárias e até desconcertantes.

José Serra afirmou que "em matéria de cumulatividade (ou efeito "cascata"), trocar o Finsocial por esse ITF (Imposto sobre Transações Financeiras) equivale a trocar seis por meia dúzia".

Ignorando-se o indisfarçável tom de desdém, só resta dizer que, neste ponto, José Serra confunde germano com gênero humano.

Deixa entender que o efeito cascata, tout court, representa um grave defeito do Imposto sobre Transações Financeiras - e conseqüentemente de seu irmão gêmeo, o Imposto Único sobre Transações -, e que o efeito cascata é um mal em si mesmo, e que deve ser intransigentemente renegado, sem necessidade de nenhuma qualificação ou justificativa.

Infelizmente, o colunista ignora os recentes resultados de pesquisa obtidos a partir da literatura conhecida como "tributação ótima". Não se pode precipitadamente inferir

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implicações normativas acerca das distorções alocativas de impostos em mercados imperfeitos.

Como um bom estruturalista, José Serra não ousaria afirmar que a economia brasileira funciona em regime competitivo perfeito, razão pela qual sua ojeriza por impostos em cascata não encontra, a priori, justificativa suportada pela moderna teoria das finanças públicas.

Além disso, do ponto de vista de eficiência alocativa, a comparação da magnitude das distorções causadas por impostos cumulativos versus impostos sobre valor adicionado depende não apenas da natureza do tributo (cumulativo ou não), mas sobretudo das alíquotas marginais aplicadas em cada caso. Assim, um imposto sobre valor adicionado com alíquotas altas pode introduzir distorções mais fortes do que impostos cumulativos com alíquotas baixas.

Indago se não poderiam ser este o caso com o ICMS e o IPI que têm alíquotas extremamente elevadas e que, se unificadas, como pretende a Comissão de Reforma Fiscal do governo, poderiam chegar a 25% ou 30%.

Ademais, a cumulatividade é hoje uma das mais marcantes características do sistema tributário nacional. O ISS é cumulativo. Até impostos teoricamente não-cumulativos como o ICMS se tornam cumulativos quando a cadeia de crédito/ débito se rompe, como é comum em vários setores, como, por exemplo, a agropecuária.

A seguir, José Serra reproduz um questionamento, formulado pelo professor Chico Lopes, sobre o potencial de arrecadação do imposto sobre transações. Neste exercício, simplesmente se extrapola a arrecadação do Finsocial para concluir que o grosso da receita de um imposto sobre transações bancárias acabaria incidindo sobre o mercado financeiro, mais especificamente sobre "os tomadores de empréstimos em moeda indexada, principalmente o governo...".

Este raciocínio mostra a enorme desinformação que acomete muitos dos partícipes desta polêmica. O Finsocial não arrecada por ser um imposto declaratório - preferido dos "papirófilos" na expressão do deputado Roberto Campos - e ter abrangência limitada.

O problema não está apenas na evasão da economia informal, mas também na sonegação da própria economia formal e em sua abrangência não-universal.

Como o imposto sobre transações seria arrecadado diretamente nas operações bancárias, o fator de projeção tomando por base a atual arrecadação do Finsocial não pode ser apenas a parcela da economia representada pela economia informal, mas deve incluir também os índices de sonegação dos setores formalmente constituídos, além da parcela da economia não incluída na base de cálculo daquele tributo.

Ademais, para não incorrer no mesmo equívoco do ex-ministro Maílson da Nóbrega que, ao criticar o Imposto Único, desavisadamente ignorou que nas operações financeiras o tributo incidiria apenas sobre os rendimentos reais, cabe alertar que o alegado impacto nas taxas de juros dos títulos públicos simplesmente não ocorreria.

Também combato e critico a reforma tributária do governo, e em especial o uso indevido que fazem da proposta do Imposto Único. Porém, por razões totalmente diferentes das de José Serra.

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Para finalizar, o autor faz uma proposta no mínimo aberrante, ou seja, retirar o capítulo tributário da Constituição. Com isto, segundo José Serra, “a reforma (fiscal) seria feita através de leis complementares e ordinárias, caminho mais flexível e racional”.

É simplesmente estarrecedor que se proponha algo tão discricionário em uma fase da vida nacional onde o cidadão e o contribuinte são constantemente violentados pelo governo e por isso mesmo buscam garantias de seus direitos na própria Constituição.

Relegar o poder de tributar no Brasil à legislação ordinária, depois de tudo o que passamos e estamos passando, é uma proposta no mínimo autoritária e desrespeitosa para com os direitos dos cidadãos.

Em nome de quê? Flexibilidade? Racionalidade? Uma decisão tão importante como uma reforma tributária deve tomar tanto tempo quanto necessário para que a sociedade a discuta e possa conscientemente deliberar através de seus mecanismos decisórios. Sem pressa nem açodamento. Com paciência e responsabilidade.

MÁRIO HENRIQUE SIMONSEN

No documento Tributação no Brasil e o Imposto Único (páginas 125-127)