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Ary Oswaldo Mattos Filho

No documento Tributação no Brasil e o Imposto Único (páginas 44-49)

Entrevista concedida à Nely Caixeta e Cintia Sossa - Revista Exame, 19/2/92

Aos 52 anos, dezessete dos quais dedicados ao Direito Tributário, o professor e advogado Ary Oswaldo Mattos Filho está retornando ao seu ramo original. Depois de quase dois anos à frente da Comissão de Valores Mobiliários, período em que promoveu uma sacudida no mercado de capitais, ele deixa o posto de xerife para tentar melhorar a saúde fiscal da nação.

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Desde o final de janeiro, esse paulista afável no trato e de gestos elegantes é o novo coordenador da proposta de Reforma Fiscal que o presidente Fernando Collor de Mello quer entregar ao Congresso até agosto próximo. Dono de uma das maiores bancas de advocacia do país, Ary Oswaldo adiou o seu retorno à iniciativa privada para tentar diminuir os estragos que a Constituição de 1988 provocou no sistema fiscal do país. Em troca de um salário de 3,5 milhões de cruzeiros - mais de duas vezes o que recebia na CVM -, ele vai ter a difícil tarefa de tentar redefinir quem fica com o dinheiro que o governo federal, os Estados e os Municípios arrecadam, e o que cada um pode fazer com ele.

De quebra, Ary Oswaldo vai procurar ainda facilitar a vida de milhões de contribuintes que, ao prestar suas contas ao Fisco, se perdem no cipoal de impostos, taxas e contribuições que lhes infernizam a vida. Na semana passada, enquanto montava a equipe com que irá trabalhar nos próximos sete meses, Ary Oswaldo recebeu a editora de EXAME em Brasília, Nely Caixeta, e a editora assistente Cintia Sasse para a seguinte entrevista:

EXAME - O que o levou a aceitar o cargo de coordenador da comissão de reforma fiscal?

OSWALDO - Eu iria deixar o cargo na CVM em março, quando terminava o prazo de dois anos que acertei com a ex-ministra Zélia ao ser convidado para ele. O ministro Marcílio, então, chamou-me para essa tarefa, que é o tipo da coisa não só bonita como importante. É um bom desafio, porque a gente não vive só de ganhar dinheiro. Como o presidente estabeleceu um prazo que é bastante curto, resolvi aceitar.

EXAME - O senhor, de fato, tem prazo até o dia 31 de julho para entregar suas recomendações ao ministro Marcílio Marques Moreira. E suficiente para montar a ampla reforma que a sociedade vem pedindo ou vai haver mais um arremedo para buscar objetivos de curto prazo?

OSWALDO - O tempo, realmente, é bastante apertado. Mas já faz algum tempo que se vem discutindo a reforma fiscal no Brasil. Na elaboração das várias Constituições, no meio universitário, as discussões ocorrem já há bastante tempo. Por isso, a idéia não é reinventar a roda. O trabalho dessa comissão, inclusive em face do tempo de que ela dispõe, é coordenar todos esses esforços que já foram feitos na busca de uma maior racionalização do sistema tributário do país.

EXAME - O que garante que essa não vai ser uma reedição da “reforma tributária” encaminhada ao Congresso no ano passado, que não passou de mais um tapa-buraco para socorrer as contas da União?

OSWALDO - A diferença é que no ano passado não se fez uma reforma fiscal, mas sim um ajuste fiscal, que fundamentalmente mexeu com o imposto de renda. A reforma fiscal é algo diferente. A premissa básica é adequar receitas e despesas. É preciso haver compatibilização entre as obrigações que tem de cumprir cada ente da federação - União, Estados e Municípios - e as fontes de receitas de que eles podem dispor para esses gastos. Além disso, é preciso amarrar as regras orçamentárias, para que receitas e despesas possam andar de passos casados e não uma andar para a direita e a outra para a esquerda, ou seja, fecham-se as portas às possibilidades de gastos sem fontes concretas, sem dinheiro em caixa.

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OSWALDO - A grande definição final vai ser dada pelo presidente da República. Porque, no fundo, reforma tributária é política, no sentido de que se está discriminando rendas e dizendo quem é que vai pagar a conta.

EXAME - E quem vai pagar a conta?

OSWALDO - Isso vai ser decidido pelo presidente da República e pelo Congresso. Ou seja, por aqueles que têm mandato popular. A parte técnica se incumbe apenas de compatibilizar as decisões políticas. Mas o governo não está pensando em promover novos aumentos de impostos.

EXAME - O que pode ser feito, então, para resolver a situação de penúria dos cofres públicos?

OSWALDO - Ainda é cedo para entrar no detalhe das propostas. Assumi no final de janeiro. Por enquanto as premissas são razoavelmente genéricas. Uma das hipóteses é tentar encontrar mecanismos para desonerar a pessoa jurídica, reduzir o número de impostos, simplificá-los e tentar aumentar o universo de contribuintes pessoas físicas. Deve-se avaliar, por exemplo, a lista das imunidades fiscais contidas na Constituição e as isenções previstas em lei, que deixaram de fora algumas fundações, certos juízes e atividades empresariais toca das por cultos religiosos.

EXAME - Existem outras propostas na mesa?

OSWALDO - O professor Mário Henrique Simonsen sugeriu, em artigo publicado em EXAME, que o buraco nas contas da Previdência seja financiado por uma elevação temporária na alíquota do ICMS, porque todo mundo pagaria. A Previdência funciona no regime de caixa. O que entra hoje serve para pagar o benefício do dia seguinte. A conta, então, não fecha nunca.

EXAME - A reforma estrutural da Previdência entra na reforma fiscal?

OSWALDO - Não é bem assim. Elas estão sendo tratadas separadamente, mas há pontos de convergência. Por isso vamos ter reuniões com o pessoal do Ministério da Previdência, trocar informações e apresentar sugestões.

EXAME - O que o senhor acha do atual sistema fiscal e tributário?

OSWALDO - Ainda é fundamentalmente o sistema da reforma tributária de 1967. De uma forma ou de outra ele se mostrou inoperante, e o Estado começou a aumentar a sua massa de recursos através das contribuições sociais. Hoje, o orçamento da seguridade social é quase tão relevante quanto o da União. Houve um desbalanceamento nas proposições aprovadas na Constituição de 1988. A ênfase foi generosa do lado da despesa. Mas, talvez por falta de tempo, não houve uma arrumação compatível do lado da geração df} receita. De lá para cá, esse descompasso está ficando cada vez mais evidente. E o que provoca os problemas nos pagamentos dos hospitais e dos aposentados. Portanto, qualquer reforma que for apresentada, quer pelo Executivo, quer pelo Legislativo, tentará casar esses descompassos.

EXAME - Há quem se pergunte: de que adianta o governo tentar modernizar o sistema tributário, se a máquina da Receita Federal, que arrecada, está emperrada?

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Com todas essas mudanças em estudo, o governo não corre o risco de nadar para simplesmente morrer na praia?

OSWALDO - A grande tarefa do secretário Nacional da Fazenda, Luiz Fernando Wellisch, vai ser reestruturar a máquina da Receita Federal. Obviamente, no momento em que o contribuinte perceber que não está sendo fiscalizado, ele não vai ser tão generoso no seu tempo para preencher notas fiscais ou sua declaração de imposto de renda. O contribuinte tem de ter uma noção de crime e castigo. O que aconteceu no curso dos anos? Manteve-se a mesma estrutura, que foi perdendo a eficiência, ao passo que se aumentavam periodicamente as alíquotas. Isso levou alguns tributos ao paradoxo. Quanto maior a alíquota, maior a propensão marginal à sonegação. Sonegar passou a valer a pena.

EXAME - O excesso de impostos atrapalha?

OSWALDO - Atrapalha, porque gera uma legislação muito prolífica. Cada imposto desse tem uma legislação própria, o que exige um acompanhamento muito grande por parte do governo e do contribuinte. Esse grande número de leis gera um custo operacional elevado para a empresa e ao mesmo tempo exige uma máquina de arrecadação superdimensionada. Há casos em que o custo da arrecadação é maior ou igual ao montante arrecadado.

EXAME - Qual é a saída?

OSWALDO - À medida que se reduz o número de impostos, simplifica-se a vida do contribuinte, o custo operacional da máquina tributária diminui sem afetar necessariamente o montante arrecadado. Existe uma economia funcional dos dois lados.

EXAME - Alguns dizem que o ideal é ter no máximo seis impostos, outros afirmam que um só tributo é suficiente. O senhor tem idéia de qual é o número de impostos ideal para o país?

OSWALDO - Vamos começar pelo princípio. O que o Estado se propõe a fazer enquanto União, Estado e município? Quanto dinheiro precisa para desempenha r suas funções? Vamos transportar isso para um exemplo mais bizarro. Quem está em casa não pensa se precisa de um ou dois empregos. O sujeito pensa: para ter isso, preciso ganhar aquilo. Com a nação é exatamente a mesma coisa.

EXAME - O que precisa ser feito então?

OSWALDO - O que estamos fazendo é tentar ver o que a nação brasileira pressupõe que seja tarefa do Estado, enquanto ente político, e o que seja tarefa da iniciativa privada, isto é, do cidadão, enquanto ser privado. Delimitado o que é tarefa do Estado - educação, saúde, transportes -, vamos ver quem deve incumbir- se dessas prioridades. A União? Os Estados? Os municípios? Feito isso, quanto custa? Vamos ver quais são os tributos que podem ser arrecadados com mais eficiência pela União, pelos Estados e pelos municípios.

EXAME - Como assim?

OSWALDO - E viável, por exemplo, tirar o IYfU do município e passar para a União? Não, porque a União não vai conseguir jamais lançar esse tributo, pois não sabe qual é o valor venal de um apartamento em São Paulo ou no Rio de Janeiro. A partir daí,

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entra a seguinte pergunta: que impostos é possível aglutinar, o que dá para retirar, o que dá para simplificar? Mas esse já é o fim do processo.

EXAME - Existem propostas em discussão na sociedade, entre elas algumas polêmicas, como a da criação do imposto único, que ficou para ser debatida agora pela comissão. O que o senhor pensa a respeito dessa proposta?

OSWALDO - A minha sensação é de que essa é uma discussão inevitável, porque ela tem adeptos e críticos nos mais diferentes partidos políticos no Congresso. Se a comissão não colocar essa discussão, o Congresso a coloca. Recebi recentemente parte de um estudo feito pelo Federal Reserve Board, dos Estados Unidos, contra essa proposta, quando foi apresentada lá. Tenho conversado também com Martín Redrado, presidente da CVM da Argentina e meu amigo. Na Argentina, esse imposto foi instituído e em julho vai ser abolido. A experiência não deu certo lá. Mas não tenho parti pris a favor nem contra.

EXAME - Na Argentina aconteceu o que se teme que ocorra no Brasil- que o imposto único seja mais um tributo, acrescentado aos que já existem. Ao que tudo indica, na Argentina não houve a tal simplificação prometida.

OSWALDO - Talvez possa ser dito que na Argentina o imposto único surgiu com uma alíquota muito alta, de 4%. Por outro lado, mesmo o pessoal que é a favor da idéia no Brasil tem certo receito de desmontar todo um sistema tributário existente e implantar um novo, que não se sabe exatamente como vai comportar-se.

EXAME - Pode-se dizer então que mudanças muito abruptas estão descartadas? OSWALDO - Um dos cuidados que estamos tomando na nossa construção de hipóteses é manter, o mais possível, uma estrutura que o povo já conheça. Se se desmancha uma estrutura tributária e criam-se impostos completamente diferentes, perde-se toda uma cultura assentada não só por parte dos contribuintes, mas por parte da máquina arrecadadora. Todo empresário, bem ou mal, tem idéia do que seja o ICMS. O contador, o fiscal, o juiz sabem como ele funciona. Se houver mudanças, quanto tempo vão precisar para reaprender tudo? A sociedade convive mal com muita mudança ao mesmo tempo, principalmente em matéria tributária. Tanto é que existe um ditado chinês muito antigo que diz: o imposto bom é o imposto velho. Então, simplificar é uma premissa. Não conturbar ou conturbar o menos possível o ambiente é outra premissa.

EXAME - O posto de xerife do mercado de capitais foi um desafio para o senhor?

OSWALDO - Eu assumi no período pós-crise do caso Nahas. O mercado estava desmontado. As bolsas, operando no vermelho e demitindo pessoal. Havia várias corretoras e distribuidoras quebradas. Outras corretoras estavam fechando os seus departamentos de ações. As empresas não estavam lançando muitas debêntures. Era um negócio muito precário. A CVM tinha uns dez computadores de 8 bits de memória e mais nada. Foi uma tarefa enorme reconstruir o mercado. O empresário brasileiro tem hoje no mercado de capitais um instrumento muito mais eficiente do que há dois anos. Há um número muito maior de alternativas de captação e o volume de investidores cresceu. Só no mercado de ações, as transações diárias saltaram de 5 a 6 milhões de dólares para a média de 150 a 180 milhões de dólares verificada em janeiro.

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EXAME - Que legado o senhor está deixando para o mercado?

OSWALDO - Tentei dar uma cara mais moderna para o mercado. Promovemos a abertura dos portos, fazendo com que o Brasil se comporte como uma nação adulta. Hoje as bolsas podem receber recursos não só dos que moram no exterior, mas daqueles brasileiros que têm recursos fora. Criaram-se mecanismos para que empresários brasileiros pudessem lançar valores mobiliários no exterior. Outro avanço foi interligar as bolsas dos países do Cone Sul, fundamental para consolidar um mercado comum. Novos instrumentos foram criados, como os commercial papers, cuja emissão interna já alcança mais de 200 milhões de dólares. Mas a tarefa de estar sempre acompanhando a evolução do mercado não acaba nunca. Se ficasse à frente da CVM, faria um segundo plano diretor do mercado de capitais.

AS CARICIAS

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